Análise crítica da deserdação: doutrina e jurisprudência.

Resumo: O objetivo geral deste trabalho centra-se em analisar, por meio de uma pesquisa qualitativa, o instituto da deserdação. A problemática funda-se em investigar os meandres deste fenômeno através de uma análise crítica e comparativa entre textos doutrinários e jurisprudenciais, a fim de apresentar satisfatoriamente os diferentes posicionamentos. O presente ensaio estrutura-se na análise dos seguintes temas: o real sentido da sucessão em âmbito civil; apresentação breve da figura do herdeiro legítimo, como base para melhor compreensão do fenômeno aqui abordado; e, por fim, análise mais profunda da deserdação, tendo como foco a posição dos tribunais e as teorias da doutrina, na intenção de conceder maior base jurídica ao presente ensaio. Visa-se, assim, trazer um aprofundamento a respeito da deserdação e, igualmente, diante da inevitável impossibilidade de tratar exaustivamente o tema, instigar o seu aprofundamento, tanto do ponto de vista interno do sistema jurídico, quanto externo – de modo a tornar mais tangível seu uso pela população interessada.

Palavras-chave: Sucessão. Herança legítima. Exclusão. Deserdação.

Abstract: The aim of this work focuses on analyzing, through a qualitative research, the disinheritance Institute. The issue is based on investigating the Meandres this phenomenon through a critical and comparative analysis of doctrinal and jurisprudential texts in order to satisfactorily show the different positions. This paper is structured in the analysis of the following themes: the real meaning of succession in civil matters; brief presentation of the figure of the legitimate heir, as a basis for better understanding of the phenomenon addressed here; and finally, deeper analysis of disinheritance, focusing on the position of the courts and the theories of doctrine, intended to grant greater legal basis for this test. The aim is thus to bring a deepening about the disinheritance and also before the inevitable inability to thoroughly address the issue, instigating the deepening of both the internal point of view of the legal system, and external – in order to make it tangible use by the population concerned.

Keywords: Succession. Rightful inheritance. Exclusion. Disinheritance.

Sumário: Introdução. 1.  A sucessão. 2. Os herdeiros legítimos. 3. A deserdação. Conclusão

 

Introdução

No presente trabalho, far-se-á uma análise crítica dos artigos 1961, 1962 e 1963 do Código Civil Brasileiro, por meio da pontuação com visões doutrinárias e jurisprudenciais.

Para tanto, primeiramente, será apresentado o ramo em que esse instituto jurídico enquadra-se: o direito sucessório, apontando sua definição moderna e função no ordenamento.

Em um segundo momento, far-se-á uma breve explanação a respeito da figura dos herdeiros legítimos, dando-se enfoque aos herdeiros necessários, visto que são estes os atingíveis pelas disposições sobre a deserdação.

Feito isso, será estudado o instituto da deserdação, contrabalanceando posições doutrinárias e jurisprudenciais, de modo a se buscar um entendimento mais aprofundado e concreto a respeito do tema aqui proposto.

1. A sucessão

O termo sucessão, de acordo com o professor e doutrinador Cristiano Chaves de Farias(FARIAS; ROSENVALD, 2015), enquanto fenômeno jurídico, possui uma amplitude que transpassa os limites do direito sucessório.

Segundo sua etimologia, sucessão traz uma ideia de substituição (sub + cedere), seja do objeto, seja do sujeito da relação jurídica.

Assim é que, como bem aponta o supramencionado autor, pode ser ela classificada como sub-rogação real(troca do objeto da relação jurídica) ou sub-rogação pessoal (câmbio do sujeito), sendo cabível ainda uma subdivisão dessa última espécie em sub-rogação pessoal inter vivos ou sub-rogação pessoal causa mortis.

É essa última subespécie a que se refere o direito sucessório, ou seja, pode ser ele definido como o responsável por regular a  substituição do sujeito da relação jurídica patrimonial original em decorrência do fato jurídico morte, observadas as forças da herança (1.792, CC).

Tal direito demonstra sua importância diante de seu fundamento constitucional no direito de propriedade, incisos XXII e XXX, CF(GONÇALVES, 2012).

2.Os herdeiros legítimos

A herança admitida no ordenamento brasileiro pode ser subdividida em legítima –  fruto de determinação legal – e a testamentária, sendo esta última decorrente de manifestação de vontade do autor da herança. (WALD, 2012).

Nesse sentido é o texto do Código Civil, em seu artigo 1.786: . “A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade”.

Tendo em vista o objetivo deste ensaio, será analisada aqui apenas a sucessão quanto aos herdeiros legítimos.

São chamados de legítimos, conforme dicção do código civil brasileiro, os herdeiros listados em seu artigo 1.829, quais sejam: o cônjuge, os ascendentes, os descendentes e os colaterais, tendo a efetiva sub-rogação dos bens do falecido dependente de sua posição na cadeia sucessória, como bem destacam o supramencionado artigo em conjunto com os artigos 1830 a 1844. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015).

Dentro desse rol de herdeiros, há um grupo especial chamado de herdeiros necessários, são eles: os ascendentes, descendentes e cônjuge, incluído, pela melhor leitura conforme a constituição, o companheiro(a) (FARIAS; ROSENVALD, 2015).

São assim denominados tais herdeiros por carregarem uma característica específica: a garantia da legítima, que nada mais é do que a reserva de 50% dos bens do de cujus, impossibilitando a disposição via testamentária desta parcela patrimonial (art. 1.846 c/c art. 1850, ambos do CC).

Isso, contudo, não impede que haja uma eventual exclusão destes legitimados. Nesse sentido, surge para o autor da herança a possibilidade de deserdar potenciais herdeiros em caso de seu enquadramento nos artigos 1.962 ou 1.963, ambos do CC.

3.A deserdação

Os artigos 1691 a 1695 do Código Civil brasileiro tratam da exclusão da sucessão dos herdeiros necessários, privados da legítima (art. 1846, CC), pela prática de atos graves previstos em lei desde que por ato de iniciativa do autor da herança – a deserdação.

De início, é importante trazer uma breve definição do Instituto aqui tratado. A Deserdação, com raízes no ex heredatio do direito romano, pode ser conceituada, segundo Carlos Roberto Gonçalves, como o ato unilateral reduzido a termo expressamente no testamento por meio do qual o testador exclui da legítima um herdeiro necessário pela prática de ato reprovável previsto em lei contra o autor da herança (GONÇALVES, 2012).

Interessante é a definição e as consequências apontas pelo seguinte julgado do TJPI ao tratar deste fenômeno:

APELAÇAO CÍVEL – AÇAO DE DESERDAÇAO – EFEITOS PESSOAIS – DESCENDENTES DO DESERDADO – HERDAM POR REPRESENTAÇAO – ART. 1816 DO CÓDIGO CIVIL – RECURSO IMPROVIDO. A deserdação é ato do testador que visa a afastar herdeiro necessário que se revelou ingrato. Na forma do art. 1816 do código civil, os efeitos da referida exclusão são pessoais, logo, os descendentes do herdeiro excluído sucedem. Decisão unânime. (TJ-PI – AC: 201000010002014 PI, Relator: Des. Brandão de Carvalho, Data de Julgamento: 23/02/2010,  2a. Câmara Especializada Cível, )”

Feito isso, passemos à análise do primeiro artigo aqui trazido à baila: o artigo 1961 do Código Civil.

Consta no referido artigo: “Os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão.”

Nesse artigo, faz-se um elo entre a deserdação e a exclusão por indignidade, contudo, para impedir possível confusão, é preciso deixar claro que, ao contrário do segundo instituto: a deserdação não se limita às causas do artigo 1814; não depende de sentença judicial para sua eficácia, uma vez que na exclusão é necessário o ajuizamento de demanda denominada ação de exclusão, operando-se, ao contrário, a deserdação unicamente por força de lei; e, por fim, só  pode ser praticada pelo testador e ninguém mais.

No tocante ao artigo 1962, por sua vez, traz ele a seguinte redação:

“Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes:

I – ofensa física;

II – injúria grave;

III – relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto;

IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade”.

No que se refere ao inciso I, deve-se ater ao fato de sua ocorrência poder derivar de mera lesão simples, independente de condenação penal, segundo Venosa, ante à previsão do artigo 935 do Código Civil, que prevê a independência entre as responsabilidades civil e penal (VENOSA, 2011).

No entanto, entende Gonçalves que tal violência deveria submeter-se às causas de exclusão da ilicitude penais (GONÇALVES, 2012).

Não se compartilha aqui da ideia de Salvo Venosa, uma vez que, diante dos danos que a exclusão da herança pode trazer ao indivíduo, seria mais justa e devida a ocorrência de prévia condenação criminal no tocante à lesão corporal para dar eficácia ao ato de privação da legítima.

Quanto ao inciso II, deve-se ter em mente qual o arcabouço probatório para a demonstração da injúria como causa de deserdação. Isto é, seria suficiente o mero inquérito policial ou o ajuizamento da queixa-crime, ou ainda seria indispensável o trânsito em julgado da sentença penal condenatória?

Quanto a esse ponto, entende-se como o melhor posicionamento a utilização de interpretação restrita do texto, de modo a evitar a limitação desarrazoada da vontade do testador, concluindo-se pela desnecessidade de sentença transitada em julgado. Nesse sentido,  o seguinte julgado, extraído do Diário de Justiça do Estado de São Paulo:

“A segunda hipótese (de deserdação) é a injúria grave, também não exigindo o Código a sentença condenatória penal para tanto, como fez quando assim pretendeu (1.011, § 1º; 1.521, VII; 1.573, V; 1.637, parágrafo único; 1.735, IV). Ademais, o art. 1.814 já havia previsto que os crimes contra a honra (dentre os quais se inclui a injúria) eram causa de indignidade (e, portanto, de deserdação). Se a lei exigisse a condenação como hipótese de deserdação, não precisaria prevê-la novamente no art. 1.962 (Gustavo Rene Nicolau in Direito Civil -Sucessões – Série Leituras Jurídicas – Provas e Concursos, v. 9, Atlas, 2005, p. 158). Dessa feita, tratando-se de hipótese fática de deserdação e não de crime contra a honra, a injúria grave apontada pelo incisoIIdo art.1.962doCódigo Civil prescinde da instauração de inquérito policial ou de açãopenalpara que seja apta a ensejar a deserdação, de forma que não o seu reconhecimento sem que haja condenação criminal transitada em julgado não ofende ao princípio do estado de não culpabilidade previsto no inciso LVII do art.5ºdaConstituição Federal. (Página 2076 Judicial – 1ª Instância  – Interior – Parte III ,16/07/2012,  DJSP)” (grifo nosso)..

Contudo, apesar desse entendimento, deve-se destacar a necessidade de descrição minuciosa do fato da injúria para justificar a medida privativa. Nesse sentido:

A deserdação por injúria grave exige a mesma precisão da injúria que caracteriza o delito penal e, por esse motivo, deve o ofendido descrever os fatos de maneira precisa e completa, para propiciar ao suposto ofensor o exercício da ampla defesa, direito de índole fundamental. (…)Desta forma, sem a comprovação dos motivos alegados pelo testador para deserdação, esta é ineficaz, não ficando prejudicada a legítima do deserdado” (Página 2076.Judicial – 1ª Instância – Interior – Parte III16/07/2012DJSP)”.

Apesar disso, em uma visão pró-herdeiro, pode-se ver como temerária essa compreensão, vez que um herdeiro pode ser prejudicado por alegação falsa do autor da herança, o qual, simplesmente por um desejo próprio, intenciona excluir da sucessão pessoa da qual não possui grande afeição, removendo deste direito subjetivo definido em lei.

Sendo assim, a exigência de sentença transitada em julgado permitiria a certeza – ou algo mais próximo desta possível – quanto à ocorrência da conduta grave da injúria, submetendo o caso à análise de um juiz competente no trato da questão penalista.

Ainda nesse ponto, interessante a decisão do Superior Tribunal de Justiça quanto à inserção ou não como injúria de ato de herdeiro com o objetivo de interditar o testador:

“RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE DESERDAÇÃO – MERO AJUIZAMENTO DE AÇÃO DE INTERDIÇÃO E INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE DE REMOÇÃO DA HERANÇA, AMBOS EM DESFAVOR DO TESTADOR SUCEDIDO – “INJÚRIA GRAVE” – NÃO OCORRÊNCIA – EXPEDIENTES QUE SE ENCONTRAM SOB O PÁLIO DO EXERCÍCIO REGULAR DO DIREITO DE AÇÃO – DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA – EXIGÊNCIA DE QUE A ACUSAÇÃO SE DÊ EM JUÍZO CRIMINAL – AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE QUE AS AFIRMAÇÕES DO HERDEIRO TENHAM DADO INÍCIO A QUALQUER PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO OU MESMO AÇÃO PENAL OU DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA CONTRA O SEU GENITOR – INVIABILIDADE, IN CASU, DE SE APLICAR A PENALIDADE CIVIL – RECURSO IMPROVIDO. 1. Se a sucessão consiste na transmissão das relações jurídicas economicamente apreciáveis do falecido para o seu sucessor e tem em seu âmago além da solidariedade, o laço, sanguíneo ou, por vezes, meramente afetuoso estabelecido entre ambos, não se pode admitir, por absoluta incompatibilidade com o primado da justiça, que o ofensor do autor da herança venha dela se beneficiar posteriormente. 2. Para fins de fixação de tese jurídica, deve-se compreender que o mero exercício do direito de ação mediante o ajuizamento de ação de interdição do testador, bem como a instauração do incidente tendente a removê-lo (testador sucedido) do cargo de inventariante, não é, por si, fato hábil a induzir a pena deserdação do herdeiro nos moldes do artigo 1744, II, do Código Civil e 1916 (“injúria grave”), o que poderia, ocorrer, ao menos em tese, se restasse devidamente caracterizado o abuso de tal direito, circunstância não verificada na espécie. 3. Realçando-se o viés punitivo da deserdação, entende-se que a melhor interpretação jurídica acerca da questão consiste em compreender que o artigo 1595, II, do Código Civil 1916 não se contenta com a acusação caluniosa em juízo qualquer, senão em juízo criminal. 4. Ausente a comprovação de que as manifestações do herdeiro recorrido tenham ensejado “investigação policial, processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa” (artigo 339 do Código Penal) em desfavor do testador, a improcedência da ação de deserdação é medida que se impõe. 5. Recurso especial improvido.(STJ – REsp: 1185122 RJ 2010/0047028-8, Relator: Ministro MASSAMI UYEDA, Data de Julgamento: 17/02/2011, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/03/2011)”.

Outrossim, quanto ao inciso III, fala-se da relação ilegal entre o descendente do   autor da herança e o cônjuge desse.  Nesse ponto, Cristiano Chaves inclui também, por meio de uma interpretação teleológica, a relação com o companheiro(a) da mãe/pai (FARIAS; ROSENVALD, 2015).

Dessa forma, na mesma lógica da citada interpretação, devem ser incluídas as relações da filha(o) com o pai/mãe, uma vez que a não inclusão da dita relação incestuosa no rol da deserdação mostrar-se-ía desarrazoada ante à maior gravidade do ato em comparação com o relacionamento entre o descendente e pessoa com a qual apenas possui parentesco civil( companheiro(a) do ascendente, madrasta ou padrasto).

Ocorre que, apesar disso, entende grande parte da doutrina e jurisprudência que esse tipo de norma, a qual traz restrição aos direitos do indivíduo, deve ser interpretada restritivamente, de modo a ser vedada a analogia in malam partem.

Dessa visão compartilha Euclides de Oliveira, ao afirmar que “constituem numerus clausus, por isso não admitem interpretação extensiva, para outros atos de ingratidão ou ofensa à pessoa do autor da herança”(OLIVEIRA, 2006, p. 54).

Disso surge então o dilema: permitir a aplicação ampliada do dispositivo, viabilizando maior proteção aos bens do testador, ou apenas aceitar a interpretação restritiva, excluindo a relação do ascendente com o companheiro do testador ou com o cônjuge pai/mãe do descendente.

Bem, entende-se aqui que o melhor seria ater-se à interpretação teleológica da norma, uma vez que se nota claramente sua intenção de proteger a moral familiar. Assim, tendo em vista que a união estável foi reconhecida como família, seria um retrocesso excluí-la da dita previsão, permitindo que relações ilícitas dessa espécie, do inciso III, agressoras da célula-mãe da sociedade, fossem tratadas com indiferença.

Por sua vez, o último inciso trata do desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade. Segundo Flávio Tartuce, o desamparo pode refletir-se em ausência de apoio moral, material ou espiritual:

“Entendemos que não se deve restringir a noção de desamparo apenas ao aspecto material, pois a lei não o qualifica. Na realidade, o abandono moral e afetivo pode ser pior e mais nefasto que o material. Além de constituir ato ilícito que gera a possibilidade, em nossa opinião, de indenização, o abandono moral e afetivo pode gerar ainda a deserdação. Trata-se do valor jurídico do afeto”(TARTUCE; SIMÃO, 2007, p. 82).

Nesse diapasão, mister mencionar interessante artigo de autoria de Tarlei Lemos Pereira, intitulado “Deserdação por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar”, no qual se questiona sobre a possibilidade de deserdação pelo abandono afetivo, entendendo a afetividade como princípio constitucional implícito (LEMOS, 2014).

Trata-se da análise de caso concreto no qual se buscou fundamentar a privação da   legítima de descendente com base na ausência de boa-fé e afetividade entre o legitimado e o autor da herança, trazendo como motivação o fato de o impetrante da ação de reconhecimento de paternidade sequer ter procurado o provável pai para lhe comunicar do suposto parentesco, demonstrando, pois, objetivos meramente patrimoniais, tudo isso por ser o demandado detentor de vultosa soma de bens.

Diante desse caso alarmante, o autor do artigo supramencionado busca justificar a necessidade da deserdação no desamparo listado no inciso IV do artigo 1962 do CC. Assim fundamenta sua visão:

“É que no atual período pós-positivista vem prevalecendo na doutrina e nos pretórios o entendimento de que não bastam os laços de sangue para a constituição de uma família dita nuclear, mas sim a capacidade de se estabelecer um vínculo de afeto, carinho e amor, é que deve prevalecer em todos os sentidos” (LEMOS, 2014).

Dessa forma, nota-se a grande proporção que nos dias de hoje alcançou a questão do abandono meramente afetivo no trato das questões cíveis.

Ademais, numa visão geral, é importante destacar que as situações de desamparo e abandono apenas são capazes de gerar a deserdação quando o descendente tiver condições  prestar a assistência, não devendo excluir-se da análise as reais condições do herdeiro.

No caso da alienação mental, especificamente, esta, por óbvio, apenas será aplicável, na prática, nos casos de problemas temporários em que o autor da herança, na hora de testar, recupera sua sanidade, sob pena de nulidade do testamento.

Por fim, com relação ao artigo 1963 do Código Civil, é ele, mutatis mutandis, o inverso do 1962, isto é, trata da exclusão do ascendente pelo descendente, de modo que não caberia maior análise do tema:

Art. 1.963. Além das causas enumeradas no art. 1814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes:

I – ofensa física;

II – injúria grave;

III – relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta;

IV – desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade”.

A questão que ainda merece destaque nesse ensaio é a ausência de norma específica destinada ao cônjuge, que, segundo prevê o artigo 1845, CC, também faz ele parte do conjunto dos herdeiros necessários.

Conforme aponta Tartuce, tal situação gera a restrição da deserdação por atos graves cometidos pelo cônjuge contra o autor da herança àqueles previstos no artigo 1814 do Código Civil (TARTUCE; SIMÃO, 2007).

Nesse sentido, há projeto de lei destinado a ampliar aqueles alcançados pela medida sancionatória:

Art. 1.963-A. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação do cônjuge:

1—prática de ato que importe grave violação dos deveres do casamento, ou que determine a perda do poder familiar;

11— recusar-se, injustificadamente, a dar alimentos ao outro conjuge ou aos filhos comuns;

111 — desamparado do outro cônjuge ou descendente comum com deficiência mental ou grave  enfermidade” (NETO CARVALHO, 2013).

Conclusão

Por tudo o que aqui foi analisado, nota-se a importância do instituto da deserdação como meio de salvaguardar o auto da herança, através de testamento, contra atos violentos físicos e emocionais perpetrados pelos seus parentes.

A valia dessa ferramenta mostra-se diante da determinação de lei que priva o autor da herança de dispor de 50% de seus bens em favor da categoria de herdeiros tida como legítimos. Diante disso, nada mais justo é a previsão de norma legal destinada a coagir os futuros beneficiados da legítima a bem tratar o dono do patrimônio, bem como seus entes queridos próximos.

Dessa forma, a deserdação encaixa-se no ordenamento como um meio de contrabalancear e justificar a privação à liberdade do testador, através da razoabilidade de suas exigências.

Referência:
LEMOS PEREIRA, Tarlei.Deserdação por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3143, 8 fev. 2012. Disponível em:<http://jus.com.br/artigos/21035>. Acesso em: 20 mar. 2016.
TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. São Paulo: Método, 2007.
OLIVEIRA, Euclides de.  Inventários e Partilhas: Direito das Sucessões, teoria e prática. 18. ed. São Paulo: Ed. Univerdidade de Direito, 2006.
Página 746. Judicial – 1ª Instância – Capital04/06/2013DJSP. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/55092745/djsp-judicial-1a-instancia-capital-04-06-2013-pg-746>. Acesso em: 30 mar. 2016.
Página 2076.Judicial – 1ª Instância – Interior – Parte III16/07/2012DJSP. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/38708562/djsp-judicial-1a-instancia-interior-parte-iii-16-07-2012-pg-2076>. Acesso em: 07 abr. 2016.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. 11. ed. São Paulo, 2011
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. 6. ed. São Paulo: 2012.
BRASIL. Constituição, 1988.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Piauí. Acórdão na Apelação Cível nº 201000010002014PI. Relator: CARVALHO, Brandão de. Publicado no DJ de 23-02-2010. Disponível em: <http://tj-pi.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/15259762/apelacao-civel-ac-201000010002014-pi>. Acesso em: 07 abr. 2016.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Sucessões. São Paulo, Atlas: 2015.
WALD, Arnoldo. Direito Civil. Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2012.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2015.
NETO CARVALHO, Inacio de. NOVO PROJETO DE LEI PRETENDE CORRIGIR A SUCESSÃO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO. Disponível em: <http://portalrevistas.ucb.br/index.php/rvmd/article/viewFile/4474/3144>. Acesso em: 07 abr. 2016.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Artur Alves Monteiro Pessoa

 

Especialista em direito penal e processual penal; e com aperfeiçoamento nas áreas de licitação CTPS Relações entre direitos fundamentais e direito do trabalho legislação trabalhista; PIS-PASEP e em direito tributário

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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