Resumo: O presente artigo tem como objetivo demonstrar as diversas respostas sobre a questão da legalidade do abortamento de fetos portadores de anencefalia. Os aspectos médicos, jurídicos e psíquicos são analisados, assim como, as duas vertentes doutrinarias sendo favorável e desfavorável, que travam o embate pela obtenção em nome da verdade. Para tanto, após a análise do conceito de anencefalia sob a ótica constitucional, é feita uma abordagem sobre as hipóteses legais do aborto, passando em seguida pelas questões polêmicas e posicionamentos jurídicos acerca do tema. Será, ainda, analisada, bem como o posicionamento do Supremo Tribunal Federal nos casos dos fetos portadores de anencefalia.[1]
Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 2.1. Definir anencefalia. 2.2. Alguns aspectos constitucionais. 2.2.1. Hipóteses legais de aborto. 2.3. Visualizando questões polemicas x posicionamentos jurídicos. 2.3.1. Noções de dignidade da pessoa: humana x direito a vida. 2.4. Anencefalia e o Supremo Tribunal Federal. 3. Conclusão. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo se propõe a enfocar a questão do Aborto de Feto Anencéfalo, que vem sendo muito analisado, provocando debates fervorosos entre os vários segmentos da sociedade, em especial a comunidade religiosa e jurídica. A polêmica surgiu por ocasião da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), em que se postula não se considerar aborto a antecipação terapêutica do parto de feto que apresente anomalia irreversível que segundo a ciência médica, certamente o levará a morte logo após o parto, como se observa nos casos de anencefalia, permitindo que as gestantes interrompam a gestação quando comprovada a anomalia por médico e exames especializados sem a necessidade de autorização judicial ou qualquer outra espécie de consentimento do Estado.
A questão é tormentosa, uma vez que expõe conflitos tanto de ordem moral como principalmente jurídica. Segmentos da sociedade, a exemplo de algumas comunidades religiosas, contrapõem-se radicalmente à interrupção, sustentando que a vida humana deve ser preservada a todo custo e sob todas as condições, num discurso mais que meramente jurídico religioso e até filosófico. Argumentam, sob o aspecto jurídico, que a vida surge desde a concepção e que a Constituição brasileira assegura o direito à vida como direito individual indisponível e irrenunciável (art. 5º), sendo inaceitável que se retire a própria vida, menos ainda a vida de outrem. Não por outra razão, a sociedade brasileira proíbe constitucionalmente a pena de morte e estabelece, através de um Código Penal, normas de punição àquele que mata alguém (art. 121), que comete ou provoca aborto com ou sem consentimento da gestante (arts. 125 e 126), ou ainda, que induz, instiga ou auxilia alguém se suicidar (art. 122) etc. Tais normas penais visam, em última instância, preservar a vida, confirmando seu caráter de bem de invariável valor na evolução histórica da humanidade.
Por sua vez, os que pregam a legitimidade da antecipação terapêutica em casos de anomalias congênitas irreversíveis, devidamente comprovadas por análise médica, como no caso de feto anencéfalico, também se esgrimam em argumentos de toda ordem, inclusive jurídicos, afirmando em especial que para se reconhecer a ocorrência de aborto é necessário que exista potencialidade de vida extra-uterina para o feto, o que não ocorre em tais casos; e que a Constituição garante, ao lado do direito à vida, o direito à dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro (art. 1º), sendo admissível, assim, que se prive a mãe do prolongamento da dor e do sofrimento decorrente da certeza psicológica de que está gestando ser que natural e “inevitavelmente” morrerá após o parto.
Diante deste quadro, a questão jurídica da tensão entre dois direitos humanos fundamentais deve ser solucionada. De um lado, o direito à vida a todos assegurada após a concepção, tal como tradicional e cientificamente aceitos; e, de outro, o direito à dignidade, expressamente consagrado na Constituição e que busca por a vida humana a salvo de todo tipo de dor e injustiça. Não basta viver, é necessário viver com dignidade. Direitos que naturalmente se completam, agora se conflitam, reclamando conciliação por parte do intérprete e operador do Direito para preservar seus núcleos mínimos de existência.
Parece não haver dúvida que a solução para a questão passa evidentemente pela técnica da ponderação do valor de tais bens a partir da observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que devem pautar a atividade de interpretação do direito. Entretanto, o cerne da questão é justamente saber qual é o ponto de equilíbrio entre estes dois direitos em aparente tensão. Deve prevalecer o direito do feto anencéfalo de viver, ainda que somente de forma intra-uterina ou por alguns instantes após o parto, mas sem perspectiva de desfrutar efetivamente da vida extra-uterina, porquanto desprovida de massa encefálica e, pois, de consciência, inconsciência e de todos os sentidos que, ao que tudo indica, dão razão à vida? Ou, de outra parte, deve prevalecer o direito à dignidade da mãe, que sabe por comprovação médico-científica que o ser que gera não poderá viver fora de seu ventre, de modo que deve ser colocada a salvo da dor e sofrimento que o prolongamento do processo de gestação lhe causará? Neste embate entre VIDA X DIGNIDADE, direitos igualmente fundamentais do homem, qual deve preponderar sobre o outro?
Pretende-se, também, explicar a anencefalia conceituada na literatura médica como à má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico. Tal importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central, que é responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal.
Os dados apresentados neste artigo foram elaborados através de pesquisas bibliográficas, em consultas a doutrinas (livros de escritores renomados e especializados no tema, que buscam a solução das questões controvertidas) e jurisprudências. A coleta sobre o assunto se deu, através de artigos da Internet, jornais e revistas.
O desenvolvimento do artigo está dividido em cinco partes. A primeira parte define o que a anencefalia, já a segunda parte explica o tema proposto sob uma abordagem constitucional e suas hipóteses legais do aborto. A terceira parte aborda as questões polêmicas, os posicionamentos jurídicos acerca do tema e os princípios da dignidade da pessoa humana e o direito a vida. A quarta parte fala sobre o entendimento da questão pelo Supremo Tribunal Federal. É a ultima parte aborda a anencefalia no âmbito do Direito Penal.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. BUSCA DE DEFINIÇÕES DO ASSUNTO ANENCEFALIA
A anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico. Conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro”, a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal. Como é intuitiva, a anencefalia é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos.
Não há controvérsia sobre o tema na literatura científica ou na experiência médica. Embora haja relatos esparsos sobre fetos anencefálicos que sobreviveram alguns dias fora do útero materno, o prognóstico nessas hipóteses é de sobrevida de no máximo algumas horas após o parto. Não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro, o que torna a morte inevitável e certa. Aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) dos fetos anencefálicos morrem ainda no período intra-uterina.
A anomalia pode ser diagnosticada, com muita precisão, a partir de 12 semanas de gestação, através de exame ultra-sonográfico, quando já é possível a visualização do segmento cefálico fetal. De modo geral, os ultra-sonografistas preferem repetir o exame em uma ou duas semanas para a confirmação diagnóstica. A ressonância magnética, ao lado da ultra-sonografia de nível três, tem se mostrado importante meio diagnóstico na identificação desta e de outras malformações dos fetos. Ainda, constitui valioso auxiliar na identificação de outras afecções associadas, como a Espinha Bífida e a Raquisquise, presentes em grande parte dos casos.
A Espinha Bífida conciste na malformação congênita provocada por um fechamento incompleto do tubo neural embrionário, diferentemente da Raquisquise. A Raquisquise é definida abertura completa da coluna vertebral que, ao colocar em comunicação direta a medula espinal com o exterior, provoca a morte da vítima. Outras malformações freqüentemente associadas a anencefalia são as cardiopatias congênitas e as alterações do sistema gênito-urinário fetal. Em que pese a facilidade no diagnóstico por ultra-sonografia avançada, tem importante papel a elevação dos níveis de alfafetoproteína no líquido amniótico.
Uma vez diagnosticada a anencefalia, não há nada que a ciência médica possa fazer quanto ao feto inviável. O mesmo, todavia, não ocorre com relação ao quadro clínico da gestante. A permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-útero desses fetos. De fato, a má-formação fetal em exame empresta à gravidez um caráter de risco, notadamente maior do que o inerente a uma gravidez normal. Assim, a antecipação do parto nessa hipótese constitui indicação terapêutica médica: a única possível e eficaz para o tratamento da paciente (a gestante), já que para reverter à inviabilidade do feto? Não há solução?.
2.2. DA ANENCEFÁLIA E SEUS ALGUNS ASPECTOS CONSTITUCIONAIS.
Primeiramente, a fim de que se tenha domínio sobre o tema estudado, mostra-se indispensável à definição do que é a anencefalia[2]. Trata-se de uma má-formação congênita que ocorre por volta do vigésimo quarto dia após a concepção, quando o tubo neural (estrutura fetal precursora do sistema nervoso central) sofre um defeito em seu fechamento.
Tal defeito não pode ser ligado a causas específicas, sendo certo que vários eventos podem ocasioná-lo. Dentre eles pode-se citar a deficiência de vitaminas do complexo B, em especial o ácido fólico, a ingestão de álcool, o tabagismo, questões genéticas e, até mesmo, a submissão da gestante a altas temperaturas[3].
Deste defeito resulta que a estrutura encefálica é inexistente ou, caso existente, é amorfa, estando solta no líquido amniótico ou deste separada por uma membrana. Não há, portanto, a formação dos hemisférios cerebrais e nem do córtex cerebral (que constituem a estrutura cerebral). Quanto ao tronco cerebral (estrutura responsável pela respiração), por ser a estrutura encefálica mais interna, é possível que não apresente lesões, embora seja muito comum que as apresente.
Percebe-se, assim, que a anencefalia é uma má-formação que diz com a lesão de parte do encéfalo – a sua parte mais importante –, qual seja, o cérebro, não sendo possível observar nos fetos portadores desta anomalia qualquer sinal de “consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade”[4].
Seu diagnóstico poderá ser feito, de forma inequívoca, já a partir do terceiro mês de gestação, utilizando-se, para tanto, de simples ultra-sonografia, eis que a estrutura craniana do feto portador desta má-formação é inconfundível: ela não possui o formato oval/circular, mas tem profunda depressão na parte superior.
Outrossim, poderá ser usado o exame de sangue para seu diagnóstico, eis que gestações destes fetos geram um significativo aumento de alfa-fetoproteínas no sangue materno. Quanto à incidência desta má-formação, é difícil precisar com que freqüência se ocorre, visto que muitas vezes o abortamento ocorre espontaneamente, não chegando aos órgãos responsáveis pelas estatísticas a informação desta gravidez.
Entretanto, números existentes apontam a incidência de 0,6 portadores de anencefalia para cada mil fetos nascidos vivos[5], sendo o Brasil o quarto país no mundo com o maior número de incidência de fetos anencefálicos, ficando atrás apenas de México, Chile e Paraguai[6].
A gravidez do feto anencéfalo resulta em inúmeros problemas maternos durante a gestação. A FEBRASGO – Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia enumera tais complicações maternas, dentre elas: eclampsia, embolia pulmonar, aumento do volume do líquido amniótico e até a morte materna.
Complicações maternas durante a gestação de fetos anencéfalos:
A) Prolongamento da gestação além de 40 semanas;
B) Associação com polihidrâmnio, com desconforto respiratório, estase venosa, edema de membros inferiores;
C) Associação com DHEG (Doença Hipertensiva Específica da Gestação);
D) Associação com vasculopatia periférica de estase;
E) Alterações comportamentais e psicológicas;
F) Dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo (parto entre 38 e 42 semanas de gestação, tempo considerado normal);
G) Necessidade de apoio psicoterápico no pós-parto e no puerpério;
H) Necessidade de registro de nascimento e sepultamento desses recém-nascidos;
I) Necessidade de bloqueio da lactação;
J) Puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina.
K) Maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstétricas do parto de termo.
Acrescente-se ainda que cerca de 15-33% dos anencéfalos apresentam outras malformações congênitas graves, incluindo defeitos cardíacos como hipoplasia de ventrículo esquerdo, coarctação da aorta, persistência do canal arterial, atresia pulmonar e ventrículo único.
Para a Medicina, existem dois processos que evidenciam o momento morte: a morte cerebral e a morte clínica. A morte cerebral é a parada total e irreversível das funções encefálicas, em conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionante. A morte clínica (ou biológica) é a parada irreversível das funções cardio-respiratórias, com parada cardíaca e conseqüente morte cerebral, por falta de irrigação sanguínea, levando a posterior necrose celular. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: ausência de atividade elétrica cerebral, ou ausência de atividade metabólica cerebral, ou ausência de perfusão sanguínea cerebral[7].
Segundo o CFM, em sua Resolução Nº 1.752/04, os anencéfalos são natimortos cerebrais, e por não possuirem o córtex, mas apenas o tronco encefálico, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica. Sendo o anencéfalo o resultado de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro, é considerado desde o útero um feto morto cerebral[8].
Essa é, pois, a realidade da anencefalia, que pode ser detectada, quando o feto ainda se acha no ventre materno. Mas, em 1940, quando editado o Código Penal brasileiro, não havia tecnologia suficiente para um diagnóstico de certeza, a respeito da malformação. Não é o que acontece, na atualidade.
Em primeiro lugar, é de se perguntar: a interrupção da gravidez de um feto anencefálico pode ser considerada prática abortiva?
Mais uma vez, a solução se acha em nossa ordem jurídica, precisamente em se respeitarem direitos e princípios constitucionais, que tem um custo muito alto a cada um de nós e a toda a sociedade: a) saúde; b) vida; c) dignidade da pessoa humana. Direitos e princípios detectados na Constituição Federal de 1988.
a) Discutindo os Direitos a Saúde:
O artigo 196, da Carta Magna, reza: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”[9].
Se a mulher, em gestação de um feto anencefálico, pode correr risco de vida, porque, segundo a literatura médica, cerca de cinqüenta por cento desses fetos têm morte intra-uterina, evidente que o direito à saúde da mulher deve prevalecer. Registram hospitais e clínicas médicas o profundo transtorno psicológico de que padece a mulher, quando aguarda o parto de um ser sub-humano, sem cérebro, com forma de gente, mas, sem a essência do humano. É evidente que a gestante, nessas circunstâncias, tem o direito de velar por sua saúde[10].
A argumentação expendida em defesa desta tese encontra guarida no fato de que o objeto de proteção jurídica no crime de aborto é o direito à vida. Mas para que esta possa ser protegida, é imperiosa a sua existência, ou ao menos sua potencialidade de existência, o que não se vê presente diante do feto portador de anencefalia.
A asserção do clássico Nélson Hungria, a respeito da gravidez extra-uterina e da gravidez molar, pode, perfeitamente, ser aplicada à hipótese do feto anencefálico: “O feto expulso (para que se caracterize aborto) deve ser produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto”[11].
b) Direitos à Vida:
O direito à vida é, mais do que isto é um direito a uma vida digna, com esteio nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade que faz com que se opte por não fazer a mãe correr riscos para preservar um ser que não tem cérebro e, por esta razão, obviamente, é um natimorto cerebral.
Violam-se, também, dois princípios fundamentais, que dizem respeito à legalidade e à dignidade da pessoa humana, previstos nos artigos 1.º, III, e 5.º, da Lei Máxima.
A ordem jurídica brasileira não impõe a qualquer gestante o dever de manter em seu ventre um feto anencefálico, porque esse feto não tem potencialidade de vida, porque, rigorosamente, lhe falta o encéfalo. Também, haverá desrespeito ao princípio de dignidade da pessoa humana a imposição à gestante de ter, em seu útero, um feto, durante o tempo normal exigido para um parto normal!
c) Que deseja com a Dignidade da Pessoa Humana:
O princípio da dignidade da pessoa humana se incorporou à maioria dos textos constitucionais, em todo o mundo, de forma expressa. Leiam-se os textos constitucionais da Alemanha de 1949, de Portugal de 1976, da Croácia de 1990, da Bulgária de 1991, da Estônia de 1992 e tantos outros, mas, detenhamo-nos na Constituição portuguesa de 1976, matriz da brasileira, que expressa em seu artigo 1.º: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”[12].
O professor Pietro Alarcón teve a oportunidade de afirmar: “De outro lado, a Carta Magna de 1988 abriga a dignidade, e nesse sentido, a dignidade é um bem jurídico a ser guarnecido pelo sistema. Por outra parte, é eixo de interpretação, atravessando o sentido de constitucionalidade que deve constar em qualquer sentença de juízes e tribunais pátrios. Não exageramos se dizemos, por esses motivos, que a dignidade da pessoa humana foi erigida a padrão de referência de todo o arcabouço jurídico brasileiro”[13].
Efetivamente, o princípio da dignidade da pessoa humana é básico na interpretação da ordem normativa e serve de luzeiro para desvendar caminhos, que alguns não vêem ou teimam em não vê-los, sob o enfoque de concepções que, contraditoriamente, negam o mencionado princípio. À gestante de um feto anencefálico basta que se lhe conceda a eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana. E, para assim agir, basta que se lhe reconheça o direito de interrupção terapêutica de uma gravidez, marcada pela patologia, que constrange e perturba a ciência e os homens.
O enfrentamento de tão grave lacuna legal presente em nosso ordenamento jurídico, faz com que este momento seja histórico no judiciário brasileiro.
Em boa hora, presta-se a cumprir o princípio fundamental do art. 1º da Carta Magna, respeitando “a dignidade da pessoa humana”, na medida em que assegura à gestante a liberdade de prosseguir ou interromper a gravidez na hipótese de anencefalia, bem utilizando a eqüidade para responder a uma necessidade social emergente.
Resta também contemplada, a imperiosa observância ao inciso I, do art. 5º da CF, não submetendo as gestantes, quando se deparam com o diagnóstico da anencefalia, a um tratamento cruel, desumano e degradante equiparado à tortura, como o que lhe é imposto com o dever de obter um alvará judicial autorizando a interrupção da gestação, submetendo-se a toda a delonga que assombra o judiciário brasileiro. Entende-se, pois, que, assim, está-se de fato realizando “Justiça”, pois estão em pauta questões referentes aos direitos humanos garantidores dos direitos fundamentais das gestantes, previstos pela própria Constituição e, por isso, não podem estar condicionados à edição de lei, eis que gozam de aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5º § 1º, da Lei Maior[14].
No caso da anencefalia, e tendo em vista os princípios fundamentais consagrados, há de se ponderar os valores em jogo, sem, contudo, esquecer que espécie de justiça legitima o aborto por estupro e não a interrupção da gravidez por anencefalia: de um lado está à obrigatoriedade da mulher manter uma gravidez que não tem por objetivo dar à luz e vida a uma criança e, de outro, está o respeito à dignidade da pessoa humana de quem optou por abreviar um sofrimento que, dentro das suas razões, e no seu entender, não terá sentido se o resultado final “morte” é imutável.
Justiça não pode olvidar essa realidade. Não se trata de interrupção de gravidez em razão de eugenia, seletividade ou de sentimentalismo, mas, sim, de circunstância indiscutível de que o feto não terá sobrevida, porque o feto é sub-humano ou inumano. Não se deve olvidar das palavras de Giovanni Berlinguer “O aborto é o desfecho trágico de um conflito em que está envolvido de um lado um ser em formação, do outro as aspirações e necessidades de uma mulher”[15].
Ora, se não há, em realidade, ser em formação, de um lado, e aspirações e necessidades de uma mulher, de outro lado, não há desfecho trágico, não há, portanto, aborto. Expele-se um ser malformado. Expele-se uma patologia.
O olhar da problemática da anencefalia com “olhos de ver” cristaliza o entendimento de que a manifestação favorável do Estado-Juiz para a realização do procedimento médico é a representação, a um só tempo, do respeito e observância do direito à saúde, do direito à liberdade em sua acepção “lato sensu”, do direito à preservação da autonomia da vontade, do princípio da legalidade e, acima de tudo, do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, pois a submissão à vontade estatal denegatória resulta em violência às vertentes do princípio em comento, de forma física, moral e psicológica[16].
2.2.1. HIPÓTESES LEGAIS DO ABORTO.
Considera-se aborto a interrupção da gravidez, com a conseqüente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intra-uterina[17] xvi.
O Aborto é um crime de ação livre “que é aquele que pode ser praticado por qualquer meio de execução, uma vez que a lei não exige um comportamento específico”, podendo a sua provocação ser realizada de diversas formas, seja por ação, seja por omissão.
O art. 128 do CP prevê duas hipóteses nas quais a interrupção da gestação ou aborto não sofrerá punição. Uma das hipóteses é o aborto necessário (art. 128, I do CP), que é a interrupção da gravidez realizada pelo médico quando não há outra forma de salvar a vida da gestante, ou seja, quando a continuidade da gestação levará, sem sombra de dúvidas, à morte da gestante e inexistir outro meio para salvá-la.
A segunda hipótese prevista no referido artigo é o aborto humanitário, sentimental ou ético (art. 128, II do CP). Trata-se de aborto realizado pelos médicos nos casos em que a gravidez decorreu de um crime de estupro, sendo requisito indispensável que a gestante consinta com a prática abortiva[18].
Nota-se que, se a interrupção da gestação for embasada nos fundamentos que veremos agora ou em qualquer outro fundamento, a conduta será tida por ilícita, sofrendo o agente a incidência da pena cominada pelos artigos 124 a 126 do CP[19].
O artigo 124 do CP cuida do aborto provocado pela própria gestante, “aborto consentido”, que consiste ainda no consentimento da gestante para que um terceiro nela pratique o aborto.
A segunda hipótese prevista é a do artigo 125 do CP, que trata do aborto provocado por terceiros sem o consentimento da gestante. É a forma mais gravosa do delito de aborto, não sendo preciso que haja o dissenso expresso da gestante, bastando o emprego de meios abortivos por terceiros sem o seu conhecimento.
Outra previsão é a do artigo 126 do CP, que cuida do aborto provocado por terceiros com o consentimento da gestante. Aqui há um consentimento válido, isto é, a gestante deverá ter capacidade para consentir, levando-se em conta a sua real vontade, sendo possível ainda vislumbrar a hipótese do concurso de pessoas nos caos em que há auxílio à conduta do terceiro que provoca o aborto[20].
Do que acima foi dito, resulta que não mais haverá discussão quanto à legalidade do abortamento de anencéfalos se a gestação puder ser enquadrada nas hipóteses literalmente previstas no CP de inaplicabilidade da pena.
Entretanto, em não sendo possível tal enquadramento, restará a necessidade como definir se aquele que pratica do abortamento de fetos com esta característica restará submetido à incidência da norma incriminadora ou poderá, a exemplo dos demais casos, ser beneficiado, tendo sua conduta como permitida.
2.3. VISUALIZANDO AS QUESTÕES POLÊMICAS X POSICIONAMENTOS JURÍDICOS.
Questões polêmicas acerca do tema envolvem importantes reflexões conceituais sobre o início da vida, direitos humanos e as conseqüências negativas da aplicação da lei, considerada por muitos ultrapassados.
Ao falar do tema, discuti-se a possibilidade favorável ou contrária da autorização ou interrupção da gravidez. Muitas são as contendas que o tema remete. Ademais, toda esta polêmica movimentação que gira em torno do assunto, nos leva a perceber que a legislação penal pátria, datada de 1940, em se tratando origem, não previu a possibilidade de autorização de aborto para fetos anencefálicos. Assim, o estudo do tema é de suma relevância para o aprendizado, e, projeção para a pesquisa científica.
O tema provoca várias divergências, muitos se posicionam de maneira favorável e outros são contrários à perspectiva de autorização do aborto anencefálico.
Os que se posicionam a favor do aborto anencefálico enfatizam que se trata de procedimento necessário, pois o feto é indubitavelmente incapaz de sobreviver. Além disso, outro argumento utilizado é que o aborto anencefálico significaria um benefício para assegurar de forma indestrutível a vida da mãe, e, além disso, poderia, e na verdade pode minimizar o sofrimento da família, visto que, sabe-se que mesmo nascendo o feto não logrará vida por muito tempo.
A corrente que se posiciona a favor do aborto nos casos de anencefalia, baseia-se no Código Penal, para tecer uma crítica, averbando que o Direito deve acompanhar a sociedade e sua evolução, pois se entende que a Ciência Jurídica sempre deve caminhar evolutivamente com a sociedade. Assim, pelo fato do Código Penal ser datado da década de 40 do século XX, fica inviável discutir a anencefalia pautando no Código Penal, haja vista que na época inexistia a possibilidade tecnológica de diagnosticar a anencefalia através de exames, durante a gravidez.
Além disso, a corrente favorável leva em consideração o posicionamento da medicina, já anteriormente estudado, sobre a questão, pois, sabe-se que o feto anencefálico não logrará êxito em termos de sobrevivência.
Aqueles que se manifestam de forma contrária à autorização do aborto anencefálico, guiam-se mais pelo direito positivo vigente que não prevê autorização para o caso em pauta – o aborto de feto anencéfalos. Assim, os seguidores da legislação vigente que se posicionam contra o aborto de anencéfalos, encontram abrigo tanto no Novo Código Civil de 2002 quanto no Código Penal. É considerando a possibilidade de que o anencéfalo pode chegar a viver (quer seja por um instante) que os contrários ao aborto se logram, tendo por base o Código Civil, que em seu artigo 2ª, afirma, “a personalidade civil da pessoa começada nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”[21].
O artigo em tela ressalta que independente da continuidade ou não da vida, desde que nasça com vida, a lei pôs a salvo os direitos daquele que vai nascer – o nascituro. Tal discussão gera polêmica nos diversos aspectos possíveis para discutir o tema seja pelo prisma étnicos, religiosos e até mesmo jurídicos. Nesta idéia de a lei por a salvo os direitos do nascituro, entende-se que, uma vez concebida a possibilidade do feto vir a nascer e viver, nem que seja por alguns instantes, estará patenteada a proibição do aborto anencefálico.
O Código Penal não faz menção em momento algum ao aborto anencefálico, o que o torna um fato antijurídico por não haver previsão legal a seu respeito. Então, a corrente contrária argumenta justamente nesta ausência de disposição normativa para o caso de anencefalia, conclamando inclusive o princípio da reserva legal, tocando na tese de que para poder realizar o aborto nos casos de anencefalia, deveria haver autorização legislativa[22].
Ademais, pelo fato da pesquisa ter optado pelo olhar apenas jurídico, a manifestação contrária ao aborto anencefálico, tocou apenas no aspecto da legislação não ter previsto esta possibilidade, no entanto, os que se posicionam de forma contrária, tocam também na questão religiosa, moral e ética quando se manifestam contrários à permissão do aborto anencefálico.
Além disso, outro apego normativo para amparar a corrente contrária ao aborto anencefálico é o caput do artigo 5º da Constituição Federal, que versa, “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida…”. É pensando na vida do feto anencefálico que a corrente contrária ao aborto nos casos de anencefalia sustenta que mesmo sendo pouco duradoura, a vida do anencéfalo deve ser respeitada.
2.3.1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA X DIREITO A VIDA.
Inicialmente tentarei definir o significado de vida para que possa emoldurar a abrangência e atuação de uma inquirição. É sabido que a tarefa de definir o sentido exato de vida revela-se por demais colossal, em virtude das dificuldades sobre o tema. Mesmo porque a vida está em constante movimento, acontecendo a todo instante diante de nós. Alguns estudiosos, sobretudo das Ciências da Saúde, dizem ser a vida a continuidade de todas as funções de um organismo vivo. Ou então o período compreendido entre a concepção e morte. Trata-se, como podemos inferir, de idéia muito vago, carecedora de precisão, não correspondendo a nenhum dado sensorial ou concreto, insuficiente para conceituar, por conseguinte, a proposição em comento. Em suma, a definição não consegue apresentar características individualistas, inequívocas, do que seja vida.
Por todo o respeito que a Constituição Federal de 1988 guarda ao bem-jurídico a vida, pela disposição do tema na legislação infraconstitucional, conseqüentemente, o aborto é na prática o afrontamento incisivamente o direito à vida, por razões que saltam à vista. O desrespeito aos direitos do nascituro, as funestas técnicas usadas para extirpar a vida humana de seu nascedouro, os medicamentos abortivos, são rotinas infelizes em hospitais e nos anais da polícia. É correto afirmar que o aborto, fora dos casos legais e morais, fere o direito fundamental à vida, deixando entrever casos de sua inexigibilidade jurídica. À luz do direito positivo ele se biparte em legalizado e criminoso, consoante seja ou não permitido pela lei, variável através dos tempos e no seio de todos os povos[23].
A prioridade que o legislador constitucional de 1988 imprimiu ao direito à vida é altamente relevante. Este se coloca à frente de outros e, a mens legistaroris, afigura-nos no sentido de que a vida humana seja considerada um ponto central e eqüidistante em relação aos demais direitos.É a coluna cervical do arcabouço jurídico, de onde emanam todos os demais direitos. O direito a vida está indiscutivelmente protegido no nosso ordenamento jurídico, onde está ressaltada sua inviolabilidade.
O conceito de vida estende-se, pois, desde a concepção até a morte. Interromper-se uma gestação, ocasiona um aborto. Se o feto é portador de anomalia incompatível com a vida, tem-se o aborto eugênico ou eugenésico. A eugenia é a ciência da melhora da linhagem humana. É ele, assim, assegurado, também ao nascituro, desde a concepção, sem distinção de qualquer natureza ou condições de maior ou menor vitalidade desse ser vivo, na fase intra-uterina, bem assim na vida extra-uterina, quer exista ou não probabilidade de duração breve.
Não é possível deixar de fazer prevalecer o direito à vida do nascituro, visto que a vida e a saúde da gestante não correm perigo de grave dano, nem sua dignidade de pessoa humana é atingida pelo simples fato dessa maternidade, onde valor constitucionalmente exaltado. A gestante – em mantendo o feto anencefálico em seu ventre, até o nascimento, com vida, do filho por ela gerado, com a grandeza da humanidade e revestido da dignidade de ser humano, – não terá sua dignidade pessoal diminuída, na linha da magna compreensão desse valor na ordem constitucional, nem sua liberdade ameaçada ou comprometida, mas, ao contrário, – revestida do valor constitucional e humano que se confere à maternidade, – cumpre vê-la merecedora de mais respeito e admiração por seus concidadãos, o que significa ter sua dignidade pessoal elevada, porque, acima de tudo, soube amar até o fim e é somente pelo amor que o ser humano pode realizar sua perfeição e felicidade[24].
A violação à dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil (artigo 1°, III, da Constituição da República), consistiria no fato de se impor à mulher que leve adiante a gestação de um feto que certamente morrerá, causando-lhe dor, angústia e frustração. Haveria potencial ameaça à integridade física (pelos fatores de risco da gravidez de feto anencéfalo) e à integridade psíquica (pela convivência com a mórbida perspectiva do nascituro), sendo certo que “A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica”, ao passo que o artigo 5°, III, da Constituição da República veda qualquer forma de tortura[25].
O anencéfalo foi erigido à categoria de natimorto cerebral. Assim sendo, confirmou-se ausência de viabilidade de vida quando o feto não possuir atividade elétrica cerebral. Deste modo julga-se injustificável submeter à mulher aos riscos de uma gravidez e aos traumas psíquicos que dela podem advir, quando não houver qualquer expectativa de que seu filho nascerá com vida.
Sabe-se que os procedimentos empregados para a interrupção da gravidez possuem alta capacidade degradante no organismo da mulher, em razão de ser o útero um órgão muito vascularizado, o que aumenta a possibilidade de inflamação generalizada, se porventura o processo não for concluído devidamente. Não tendo pessoas capacitadas para tanto, o número de casos de aborto desastrosos é assustador, envolvendo desde a morte materna, até os casos em que o aborto não tenha sido consumado, tendo o bebê resistido e ficado com sequelas irreparáveis.
No Brasil cerca de três milhões de abortos ilegais são praticados por ano, sendo que 340 mil mulheres são internadas por complicações advindas deste procedimento. Segundo a OMS, o aborto é, na América Latina, a causa de 30 a 50% da morte das mulheres que engravidam. Isso tudo se deve pela total falta de higiene dos ambientes clandestinos que intervém indevidamente na gravidez. Os especialistas afirmam que toda a problemática ocorre, principalmente, devido às condições sócio-econômicas das gestantes. Desta forma, não nos parece eficaz para que a situação seja controlada, concentrar as discussões no campo tão-somente da moral. Há que serem discutidas questões éticas, jurídicas e, sobretudo, humanitárias[26].
Em seguida, é incompreensível o posicionamento do ordenamento jurídico em permitir o aborto em casos em que a gravidez tenha advindo de estupro, mesmo que este ato ponha em risco a higidez do feto, o qual, a princípio, é saudável. Os legisladores atenuaram o art. 128 do Código Penal justificando-se no fato da não aceitação da mulher em carregar um filho fruto de um trágico momento de sua vida. Ora, isso é no mínimo injusto.
Afinal, como pode uma mulher pôr termo à vida de um filho, a princípio saudável, pelo simples fato de rejeitar a forma como ocorreu a gravidez, e não poder uma outra abortar um feto que não terá qualquer expectativa de vida? Por vezes este último é tão mais indesejado que o primeiro, por, neste caso, a mulher carregar em seu ventre um filho que não terá condições de viver. Insistir no prosseguimento de uma gravidez sem possibilidade de êxito, quando há vontade contrária da mulher, segundo o Juiz Corregedor da Polícia Judiciária da Capital Paulista, Geraldo Francisco Pinheiro Franco, “representa capricho irresponsável do legislador e da sociedade que o apóia, pois este sofrimento poderá evoluir para um grave comprometimento psicológico”. Há, ainda, a possibilidade de risco à saúde da mulher, como já mencionado, com eventual reflexo em suas condições de vida. E isso deve ser impedido, no mínimo, por razões humanitárias[27].
Para que a lei penal fosse legítima além de legal far-se-ia a necessidade de reformulá-la. A legitimidade da norma emana da idéia que a sociedade faz do justo. E, certamente, a sociedade brasileira hodierna tem os seus conceitos de justiça alterados, desde o ano de 1940, quando o atual Código Criminal surgiu. Neste sentido, a modificação da lei é necessária para reajustar a expectativa da norma aos anseios dos sujeitos que por meio dela realizam o Direito. A eficácia da norma, nós sabemos, depende do consenso social em observá-la, o que ocorrerá quando esta refletir as vontades do seu público.
As leis devem se adequar aos momentos sociais, históricos e políticos em que estão inseridas representando o clamor e anseios da sociedade. Razão pela qual o Pretório Excelso deve amoldar a legislação atinente ao aborto a fim de viabilizar a antecipação terapêutica dos partos de anencéfalos. O que não pode é o Estado se omitir e deixar de atender aos fins últimos colimados em qualquer lei, a apaziguação dos conflitos sociais e a busca do bem comum.
2.5. ANENCEFALIA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
O Supremo Tribunal Federal comparta-se como o “guardião” da Constituição, assim, o instituto máximo do Poder Judiciário, sempre contempla matérias que geram controvérsias nos tribunais inferiores.
Nesse sentido foi pesquisado sobre ações que chegam ao Supremo, e, tem-se que dia 18 de junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores (CNTS), emitiu nota ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que fosse autorizado o aborto de fetos anencefálicos, uma vez que estes, por vezes colocam a vida da gestante em risco diante dos diversos óbitos intra-uterinos que ocorrem. A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº. 54 teve como relator o Ministro Marco Aurélio.
No âmbito das discussões e contemplação da ADPF nº. 54, no dia 1º de julho a 20 de outubro de 2004, requerendo que este tribunal autorize em todo o território nacional a prática do aborto em casos de nascituros portadores de anencefalia, em qualquer idade gestacional. A ação foi pedida em nome da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, que justifica o pedido com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da legalidade, liberdade e autonomia da vontade, bem como o direito à saúde, onde o Ministro Marco Aurélio concedeu uma liminar pelo Supremo Tribunal Federal, que autorizava interrupção da gestação para as mulheres grávidas de feto com anencefalia, baseando-se nos princípios constitucionais da liberdade e preservação da autonomia da vontade, da legalidade, do direito à saúde e da dignidade da pessoa humana, argumentando no sentido de que diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos[28]:
Ele concorda com o argumento de que a antecipação desses tipos de partos não caracteriza aborto. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. Marco Aurélio conclui que manter esse tipo de gestação “resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina”.
A decisão foi um avanço para o processo civilizatório, e ainda que a medida tenha sido recentemente derrubada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, a atitude do ministro foi louvável por fazer retornar discussão tão necessária à conjuntura jurídica atual. E ainda, votaram a favor, no sentido da admissibilidade da ação, além do ministro Marco Aurélio (relator), Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Sepúlveda pertence e Nelson Jobim (presidente).
No dia 20 de outubro de 2004, o STF repeliu a decisão do Ministro Marco Aurélio que concedia a gestante o direito de antecipar o parto na gestação de fetos anencefálicos. Foram contrários negando seguimento à ação, os ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Carlos Velloso.
A entidade registra que o Judiciário vinha firmando jurisprudência, por meio de decisões proferidas em todo o país, reconhecendo o direito das gestantes de se submeterem à antecipação terapêutica do parto nesses casos, mas que decisões em sentido inverso desequilibraram essa jurisprudência.
A jurisprudência de nossos tribunais tem sido conflitante, assim como as decisões monocráticas de primeira instância. Freqüentemente, observam-se decisões que permitem o aborto em casos de anencefalia e outras em que esse direito é negado a mãe.
Em determinadas situações, os casos concretos foram levados até a mais alta corte da justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal. Entretanto, devido à demora na via crucis trilhada pelos pais, quando os casos chegaram ao Egrégio Tribunal, os processos perderam seu objeto, pois os fetos já haviam nascido e falecido em poucas horas após o parto. Assim, o STF ainda não teve a oportunidade de se pronunciar sobre o tema e de pacificar a controvérsia desta questão.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A solução desta questão, sem dúvida alguma, protegeria e privaria as gestantes de sofrimentos desmedidos, além de preservá-las e também os profissionais de saúde que participassem dos procedimentos de antecipação terapêutica do parto de serem acusados da prática do crime de aborto, daí, aliás, a razão de a ação ter sido proposta pela respectiva entidade de classe. No entanto, o desenlace deste nó e a última palavra competem agora ao Supremo Tribunal Federal.
Aos senhores Ministros da Suprema Corte brasileira cabe então o encargo quase celestial de decidir sobre a vida ou a morte, a dignidade ou indignidade, enfim, sobre os valores humanos que, no caso e só no caso, devem preponderar no seio de uma sociedade. Talvez esta seja uma das tarefas mais cruciais que o ofício lhes impõe, porquanto revela a importância e expõe o alto grau de responsabilidade de suas decisões para a vida dos homens.
Ressalte-se que se faz necessária à participação da sociedade na discussão sobre o tema, pois não se pode esperar que a Justiça seja obra de poucos, mas sim, obra de todos. Embora, felizmente, a anencefalia tenha uma incidência baixa, não distingue credo, raça, cor ou classe social; ninguém pode ter certeza que não enfrentará futuramente o problema. Além disso, e principalmente, ao se fazer a Justiça para um, em realidade, está se fazendo Justiça para todos. Todavia, delas não podem se furtar, restando à sociedade civil somente esperar que a questão seja bem refletida e sabiamente decidida à luz da inspiração divina.
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Bennett
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