1- Os principais problemas do direito processual civil de nossos dias – A evolução do processo não ocorreu descompassadamente da do direito material.
O processo civil de nossos dias encontra-se num estágio de modificação profunda, na mesma esteira do que precedentemente se tem verificado no mundo ocidental, consistente em colocar ao lado do que se pode designar como processo civil clássico (em sua estrutura) outros instrumentos, destinados a fazer frente às necessidades, que não datam de hoje, mas que são, cada vez mais agudas, nestes dias contemporâneos [1], conduzindo a uma espécie de convivência entre o processo civil clássico (já, em si mesmo, intrinsecamente alterado, em decorrência do descarte da inspiração individualista radical, assumindo uma absorção de valores sociais, que se impõem na sociedade contemporânea) e esse novo aparato hodierno resulta vitalmente dinamizada pela tutela de urgência. [2] Os pontos nodais, porque constitutivos de setores de estrangulamento do processo civil, que merecem destaque são os seguintes: 1) as custas judiciais, enquanto podem significar óbice de Acesso à Justiça [3]; 2) as Cortes menores, ou, mais especificamente, entre nós, os Juizados de Pequenas Causas e os Especiais [4]– [5]– [6], destinadas à ‘ absorção’ de contingentes imensos, que demandam Acesso à Justiça, segmentos sociais que estão se instalando dentro dos quadros de uma sociedade institucionalizada; 3) a ‘incapacidade’ ou a ‘inabilitação’ da parte, do ponto de vista de não lograr se defender (=acionar [ativamente] ou defender-se [passivamente], se acionada), o que também se sedia na temática do Acesso à Justiça; 4) a definição dos interesses difusos ou coletivos, para viabilizar que ‘interesses e direitos’ com nova configuração e fisionomia, possam ser defendidos, utilmente; [7] 5) a conflituosidade da sociedade contemporânea, porque muito mais intensa, está a exigir a idealização de outros meios de solução para muitíssimos dos conflitos, tais como a intervenção de leigos, com vistas à obtenção incentivada de transação —— o que pode ocorrer através de mediação —— , e, por intermédio de cujo processo, exercido de forma argumentativa e bilateralmente didática, em relação a ambas as partes, possível será, muitas vezes, que os contendores, mais facilmente cheguem a transacionar, porque entendam, ao menos, parcialmente, as razões do outro, ou compreendam os litigantes que a solução judiciária poderá não coincidir com aquilo a que aspiram. Ainda, dentro do âmbito dessa conflituosidade, identificam-se conflitos, ou, mais precisamente, ‘atritos permanentes’, qualitativamente diferentes, que, de uma parte, não deverão deixar de existir (porque isso se mostra impossível) e, por isso mesmo, não comportam uma pretensa ‘solução definitiva’ , própria do processo estatal, que os extinga. São, em verdade, tais conflitos/atritos, representados por relações duráveis e continuativas, que merecem ou precisam ser conservadas. Na verdade, caracterizam-se por sintomas ou aspectos que devem ser superados ou resolvidos, e, o grau de tensão neles existente não pode ou não deve conduzir a uma ruptura, mostrando-se que conservada a relação isso será melhor. Em realidade, configuram um grau de litigiosidade ” ‘menor’ e ‘menos intensa’ do que o clássico conflito de interesses “, propriamente dito, como também, apresentam-se com tendência incontida à repetição. Tais são, exemplificativamente, as dissenções ou tensões provocados pelo valor crescente, em termos de valor nominal, das mensalidades escolares, reivindicações salariais outras, pela mesma razão (mormente num país de inflação que se tem mostrado constante, ainda que nos últimos anos, de 1994 até hoje, tenha se logrado um controle apreciável sobre a inflação), como ainda, do acesso à escolaridade, de segmentos mais carentes; assuntos relativos à vivência em fábricas (o que, entre nós, tenderá a aumentar em sua problematicidade) e os pertinentes à convivência em condomínios de apartamentos. São, de certa forma e em alguns casos mesmo, tensões ou atritos provocados por uma instabilidade externa aos litigantes, como, por exemplo, a conjuntura econômica, como o que, em parte, resultou do contrôle da inflação, que, sendo muito bom por um lado, angustia pela menor disponibilidade de numerário (ou, como na hipótese da vivência num condomínio de apartamentos, similar a inumeráveis outras hipóteses), mas dentro da qual, inevitavelmente, todos ou muitos, tem de viver. Para estas relações preferíveis são organismos informais que exerçam funções de mediação constante entre pessoas que esteja em conflito, ou, em relação a grupos opostos, pois, geralmente, tais tensões são engendradas entre grupos que se opõem (ou, dentro do próprio grupo), mas que tem de inevitavelmente conviver próximos, como se percebe dos exemplos fornecidos, e outros mais, intuitivamente perceptíveis. É certo que isto será possível diante de um juízo arbitral, menos formal do que o existente, ou mesmo por outro meio, ainda mais flexível, porém, mais operativo e funcional.
Praticamente as mesmas razões que inspiraram a obra, referida em a nota 2, levaram a outra obra, do mesmo autor e do Prof. J. A. Jolowicz.[8] Em seqüência a esta obra, seguiu-se outra onde, parcialmente, os mesmos temas são retomados, ao lado de outros. [9]
Estas verdadeiras premências, motivadoras dessas transformações, não datam de hoje, senão que, tiveram início perceptível, principalmente ao depois da segunda guerra mundial, e, entre nós, mais recentemente. Tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos, como aqui, verificaram-se pressões sociais, pela ‘reivindicação’ de ‘novos’ direitos, e, bem assim, detectou-se — talvez com perplexidade inicial, ao menos — a insuficiência dos instrumentos processuais existentes, de caráter estruturadamente individualista. [10] A mutação intrínseca dos sistemas jurídicos, abandonando o individualismo, como espinha dorsal desses, operou-se em diversos ramos do direito.
Referimo-nos a que os problemas que vieram, verdadeiramente ‘assolar’ o direito processual civil, não surgiram somente nesta seara do direito, senão que, emergiram em sintonia com problemas e conseqüentes modificações operadas no direito material.
No continente europeu, provavelmente já na década de 20 ou antes, era detectável o fenômeno da ascensão das massas [11], no sentido de que, com essa ascensão, já se percebia a turbulência social, que envolvia e acompanhava o fenômeno. Aquelas ascenderam da marginalização social, principalmente, por causa da revolução industrial (v. notas 1 e 2), com o que, deixando da integrar o rol dos que se encontravam nas periferias das sociedades e respectivas civilizações, não alcançadas, de fato, pelo aparelho do Estado, iniciaram um processo para forçar a entrada nos quadros melhores da civilização, com o que se colocou, de um lado, a insuficiência do aparato estatal e bem assim do sistema tradicional.
Possivelmente um dos setores mais modificados, no direito privado, foi o obrigacional. E, na raiz das modificações operadas no direito obrigacional — segundo pensamos — encontram-se em escala apreciável os mesmos fenômenos que levaram à necessidade de reequacionamento dos instrumentos processuais, motivadas aquelas e estes, pelo mesmo valor axiológico: um reequilíbrio dos que se defrontam na ordem jurídica. [12]
2 – A gravidade do fenômeno na América Latina
Fenômeno similar, bastante mais gravemente, ocorre na América Latina, mutatis mutandis, ainda que protraído no tempo, ou seja, especialmente, a contar de uma ou duas décadas, depois da segunda guerra mundial, o que se explica pelo descompasso do desenvolvimento do capitalismo, em nosso continente, o que estabeleceu momentos mais tardios para a ocorrência de tais reivindicações sociais e respectivas conseqüências. Em nosso continente, mais especialmente, no Brasil, simultaneamente e ao lado do fenômeno da ascensão das massas, verificou-se, com incrível intensidade um desdobramento, com gravidade cumulativa, ou seja, a vinda desses ‘peregrinos ascendentes’ em verdadeiras populações para os grandes centros; vale dizer, houve ascensão social, ou, mesmo quando esta não ocorreu, ainda assim, houve aglutinação nos grandes centros. É um fenômeno que subsiste, diante de fluxo contínuo para os grandes centros. Criaram-se megalópoles, as quais, correlatamente, vieram vertiginosamente a perder a qualidade de vida. [13]
Foi depois da segunda guerra mundial que se vieram a perceber, com maior nitidez, pela sua gravidade e dramaticidade, os problemas que passaram a afligir as sociedades existentes e respectivos governos, os quais podem, sinteticamente, ser surpreendidos pelos seguintes indicativos: 1º) desequilíbrio entre os litigantes, constantemente defrontando-se um forte com um fraco (ainda que, na Europa, já em fins do século passado, não fosse esse fenômeno estranho à contextura social, o qual, no entanto e por isso mesmo já encontrava relativo remédio no sistema do Código de Processo Civil austríaco, mercê do reconhecimento de um juiz ativo, onde, sem embargo deste ponto pioneiro, dentre outros, dever tal Código, ainda, ser considerado um sistema mais afeiçoado ao passado) ; 2) convivendo com esse desequilíbrio, que vem subsistindo , passou-se a verificar precariedade, ou ausência mesmo, da possibilidade de Acesso à Justiça, para um grande número de pessoas, porque: a) não sabem que tem direitos; b) se, eventualmente tem consciência de que os têm, todavia, não tem condições de arcar com os custos de um litígio; c) e, em função de características, cada vez mais acentuadas, das sociedades moldadas pelo sistema capitalista, em grande número de hipóteses, muitos litígios acabam não sendo individualmente compensatório, mesmo que o lesado tenha consciência dos seus direitos, e, ‘teoricamente’ pudesse cogitar de arcar com os ônus de um litígio, como, exemplificativamente, nos casos de relações de consumo, que, frequentemente se caracterizam, da perspectiva do impacto individual como mini-lesões, ainda que, no conjunto dessas, somadas ou aglutinadas (o que é comum) o impacto social seja grande ou imenso . [14] Daí uma das razões de haverem de comportar um tratamento ou uma providência coletiva, de cujos reflexos hajam de emergir benefícios individualizados.
Consequentemente, a chamada igualdade formal, que se constituiu numa grande vitória (senão o núcleo vitorioso da Revolução francesa), na verdade — sem descarte de que tenha havido um progresso nessa equalização formal dos membros da sociedade — , nem por isto, todavia, proporcionou, esse parâmetro formal, uma almejada igualdade entre os homens [15] tal como se ‘prometia’ pela pregação ideológica liberal individualista.
Conquanto se tivessem verificado progressos na ordem social, particularmente em virtude da industrialização, este fenômeno — se, de um lado, proporcionou que maior número de pessoas pudesse participar de bens materiais, mercê do ‘abastecimento’ possível de grande massa de pessoas — acarretou alterações profundas nos segmentos sociais. Isto tanto mais se verificou porque o individualismo foi também elemento constante do rol de modificações aportadas pela Revolução francesa. [16]
Isto veio a significar que, o sistema jurídico todo, que fora construído com respeito às premissas de verdade do individualismo, o que, por isso mesmo, gerou profunda aversão pelo papel de grupos sociais —— começou a ser posto em dúvida. O esquema originário, no limiar e sucessivamente, na Idade Contemporânea, no processo civil e da ordem jurídica, era aquele em que indivíduo deveria se defrontar com indivíduo, ainda que um deles pudesse ser forte e outro fraco.
O perfil do processo civil, emergido do individualismo se traduziu em institutos jurídicos que consideravam o indivíduo, enquanto tal, agindo isoladamente. [17]
Pode-se dizer também que o próprio direito civil e comercial foram assim estruturados, tendo como autor sempre um indivíduo, ou seja, cogitava-se de um indivíduo, isoladamente. [18]
Isto quer dizer que esses ramos do direito privado desconheciam, em suas fisionomias clássicas outras realidades, que não fosse o indivíduo. E, mais, o ambiente absoluto em que deviam se confrontar os indivíduos era o da liberdade absoluta, o que, diante de um crescente desequilíbrio dos indivíduos, gerou o predomínio dos fortes sobre os fracos e, daí, conseqüentemente, a necessidade de intervenção do Estado.
Ocorre que, se durante muito tempo reivindicações de segmentos sociais desprotegidos (pelas mais variadas razões, rapidamente elencadas, nos seus aspectos mais evidentes), passaram despercebidas, mercê do avultado dos problemas engendrados, tais reclamos não mais poderiam ser ignorados.
A estrutura do direito privado, como se disse, e, os próprios propósitos do legislador, em disciplinando determinados institutos, era a de, considerando somente indivíduo isoladamente, como o sujeito, por excelência, da vida social e econômica, acabar, virtualmente, vindo a favorecer aquele que tivesse bens. Desta forma, para nos servirmos de um exemplo que, pela sua importância prática na ordem econômica, pode-se asseverar, nessa perspectiva exemplificativa (dentre muitas) altamente expressivo; ou seja, o de que os Códigos clássicos foram diplomas feitos em favor do fabricantes e fornecedores [19], que eram os que detentinham o poder econômico e que, em função desse sistema, dele se utilizaram para a sua expansão econômica. Por outro lado, a própria responsabilidade, do fabricante, lastreada na culpa, pelos produtos que fabricava (ou pelos serviços que prestasse), não era uma modalidade de responsabilidade, de um teor tal, que viabilizasse, na ordem prática, que os compradores pudessem efetivamente obter indenizações pelos produtos que adquirissem, ainda que danos e prejuízos ocorressem. [20] Somavam-se, portanto, à luz deste exemplo, dois aspectos: 1º) o tipo de responsabilidade, só por causa de culpa, era em si mesmo — se comparado com a responsabilidade ‘objetiva’ ou pelo risco civil — inócuo; 2º) cumulativamente a isto, havia que se considerar que, pelos incômodos, dispêndios, perda de tempo, etc., não se mostraria compensatória a demanda individual, até mesmo supondo-se que o litigante individual (por exemplo, um consumidor), pudesse resultar vitorioso. [21] Em suma, de certa forma, até a vitória seria sempre uma derrota.
Quer para responsabilizar-se um vendedor, por um vício (=vício redibitório), pela exigüidade do prazo decadencial, em que o vício oculto haveria de ser identificado, quer, ainda, para se pretender responsabilizar um fabricante, por um dano ocasionado pela aquisição de uma coisa (=um dado produto), é de se ter presente que os diplomas de direito material não continham regras que ensejassem uma situação ou condições de viabilidade aceitável, seja para o desfazimento da compra de um produto, seja para o caso em que este produto causando danos, obter-se a reparação destes. Nesta última hipótese, a responsabilidade do fabricante era informada pela teoria da culpa e esta, certamente, comportando diversas excludentes, acabava resultando daí a existência de pouquíssimos responsáveis pelos danos. Por outras palavras, constatava-se um quadro literalmente adverso para que efetivamente pudessem ocorrer indenizações. Simultaneamente, as relações passaram a ser, crescentemente, entre o grupo de agentes econômicos que viria a ser denominado de fornecedores em relação aos que viriam a ser designados de consumidores. A intensidade ou o aumento desse relacionamento, criando o tecido do que viria a ser a chamada sociedade de consumo aumentou, imensamente, o número de negócios, no que estava implicado que, regular-se essa massa negocial pela teoria da culpa, significaria praticamente não responsabilizar o que vendia no consumo.
Quando se fala em vendedor, no plano do direito comercial, há que, no plano teórico e também no patamar da lei e do sistema do Código do Consumidor, que se traduzir esta expressão, como a significar toda a cadeia de produção, para que na ordem prática, se possam vir a obter resultados que, à luz da consciência contemporânea se reputem aceitáveis e justos.
De outra parte, a evolução da sociedade veio a identificar outros bens jurídicos a respeito dos quais se pode asseverar que, mais antigamente, eram praticamente inexistentes, ou, ao menos, eram desconsiderados pelas ordens jurídicas. De certa forma, pode-se dizer que eram bens a respeito dos quais não ‘ocorriam problemas’. É de se ter presente, por outro lado, que essas novas realidades, que vieram a obter guarida e proteção, por parte do direito contemporâneo — porque transformados em bens objeto de submissão à categoria dos interesses e direitos difusos — em verdade, em tempos mais antigos, eram incomparavelmente menos duramente atingidas.[22] E, acentue-se que essa realidade, quando resultou assumida pelos legisladores, o foi, desde logo, destacada e privilegiadamente, passando a refugir ao âmbito do direito privado, uma vez que essas relações, antes disciplinadas pelo direito privado, quando desse egressas ingressaram numa área intermediária entre o direito público e o direito privado, a que se pode designar como direito social, regida por normas de ordem pública. [23]
Estes bens são os relativos ao meio ambiente [24], ao consumidor [25], a bens e direitos de valor artístico, histórico [26], turístico e paisagístico. Recentemente, entre nós, acrescentou-se ao rol de tais bens a possibilidade de proteção a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, com o que se constata uma abertura do sistema jurídico a realidades antes não cogitadas pelo legislador. Ou seja, esta abertura, vem a significar uma ‘válvula’ num sistema jurídico que não mais se reputa ‘fechado’, dado que está receptivo, não só para interesses e direitos difusos, já dele nominalmente constantes, bem como para quaisquer outros. O âmbito da tutela do direito civil é diferente da tutela do meio ambiente, de que cogitamos. Na Itália isto restou bem claro, ao se dizer que “do ponto de vista civilístico, a disciplina do ambiente se circunscreve à tutela da propriedade, tendo em vista imissões”. [27]
3 – Elenco e sucessividade das modificações verificadas no direito processual civil —— Perspectivas defluentes do nosso direito constitucional
As primeiras grandes modificações sofridas pelo direito processual civil — sem ainda, considerarem-se a incorporação ao sistema processual, das ações coletivas — consistiram, fundamentalmente, nos seguintes pontos:
1º) manter, em escala apreciável, o modelo estrutural legado pelo século passado, ainda que com modificações, alteradoras da fisionomia individualista, neste mesmo inseridas: a) o juiz não deve ser um espectador do litígio, senão que deve ser um juiz ativo, o que se traduz na possibilidade de determinar provas, para que tenha condições de conhecer a verdade, da mesma forma que é ao juiz que cabe conduzir o processo [28]; b) o critério, mercê do qual deve o juiz apreciar as provas é o do seu livre convencimento, o que significa e importa, também, modificação do próprio valor que, em outros tempos, aprioristicamente, era atribuído a muitas provas, mercê do que estas deveriam prevalecer, ainda que o juiz, intimamente, pudesse estar convencido de não traduzirem elas a verdade; com isto, afetou-se mais poder ao juiz, com vistas à apuração de uma verdade, dita ‘verdade real’; c) distinguida a relação processual, ou o processo, do seu conteúdo, aquela fica, fundamentalmente, sob a fiscalização do juiz, quer no que diz respeito ao respectivo andamento, quer, ainda e principalmente, no que atine com os requisitos gerais de sua formação, resguardando-se espaço para as partes no que diz respeito ao objeto do litígio, propriamente dito; 2º) se, de uma parte, estas alterações procuraram reequilibrar o processo tradicional, envergando o juiz de maiores poderes, passando e devendo este ser um juiz ativo, de outra parte, todavia, não resolveu os problemas maiores, que constituem na possibilidade de equacionar a defesa de várias situações sociais: A) a dos mais enfraquecidos socialmente; B) aqueles que difusamente são os ‘titulares’ de determinados bens, tais como o meio ambiente, os bens estéticos, artísticos, etc., e, mesmo, quaisquer outros ‘interesses’ que possam merecer proteção jurídica; C) ainda, de uma maneira especial, o consumidor, estava inteiramente desprotegido, pelo sistema individualista.
É certo que essas situações, se são diferentes no que diz respeito aos bens tutelados, encontraram, no que diz respeito à sua proteção (rectius, desproteção) pelo direito material e pelo direito processual clássico, um denominador comum. Ou seja, ‘cumulavam-se’ ausência de proteção pelo direito material e pelo processual, para todas estas situações. [29]
Este denominador comum consistiu, precisamente, na carência de proteção, propriamente dita, e, mais, ou, por isso mesmo, na ausência de uma pauta ou mesmo de indicativos, de como tais bens poderiam ser efetivamente protegidos.
É certo que a chamada dogmática, ou, preferivelmente designável como dogmática tradicional, não continha quaisquer parâmetros, sequer de ordem histórica, em escala apreciável, para se construir um sistema. Ou seja, não se tinham dados ou diretrizes, sequer, de um sistema histórico ou mesmo paralelo ao sistema tradicional, mercê do qual esses bens lograssem a vir obter proteção jurídica, sob os dois ângulos necessários, vale dizer, no plano do direito material e no patamar do direito processual.
Legou-nos essa dogmática clássica, todavia, dois dados, curiais, na verdade, mercê de cuja articulação, os bens podem ser objeto de proteção por parte do Direito.
Como primeiro dado, necessário é que o direito defina, ou, ao menos, considere suscetíveis de proteção, determinados bens.
Ou seja, como primeiro dado imprescindível é que determinadas realidade deixem de ser ‘bens’ (ou, realidades) indiferentes ao Direito, passando a ser, tais realidade, então, bafejadas pela ‘atenção’ do legislador, que venham a ser consideradas, bens jurídicos, propriamente ditos, agora, em função de um valor axiológico antes não cogitado ou não percebido.
Como segundo dado, todavia, mesmo que modificado o direito material, seria isso razoavelmente inócuo que aí existissem bens jurídicos, como tais consideradas na pauta do Direito posto, mas se, de outra parte, inexistissem instrumentos processuais eficientes para que esse reconhecimento pudesse ser efetivado na ordem prática.
Por isto é que dissemos que, sem a articulação do direito processual civil ao direito material, na ordem prática, a proteção, somente desta último, revelar-se-ia sem grandes objetivos práticos, porque não ancorada numa tábua instrumentos destinados a tornar eficaz o direito material, construída em torno de valores sociais contemporâneos, em que se pretende traduzir um sentimento mais adequado de Justiça.
POR ISSO, é insuficiente proteger no plano do direito material, se inexistirem formas de viabilizar essa proteção. [30]
Desta forma, os problemas que se colocaram foram os de proteger os que não tinham condições de se defender, pois, nem pelo fato de existirem instrumentos processuais adequados e funcionais, isto virá a significar a efetiva atuação, na ordem empírica, desses instrumentos.
A esta realidade, no Brasil, acorreu a instituição da justiça gratuita. Isto, todavia, tem sido insuficiente, porque muitíssimos, constantemente, não tem consciência de que têm direitos, e, se a tem, não tem condições de ‘tráfego’ social para lograr obter o patrocínio de um advogado.
A Constituição Federal de 1988 previu a criação da Defensória Pública para essa finalidade, com a ambição de poder ver, realmente institucionalizada, a proteção aos incapazes de se defenderem. É o que está previsto no texto constitucional, verbis:
“Artigo 134 – A Defensória Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
Parágrafo único – Lei complementar organizará a Defensória Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios, e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada aos seus integrantes a garantia de inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais”.
Ainda que isto se constitua numa promessa do legislador constituinte, revela-se como indicativa de consciência plena do reconhecimento dessa realidade de que, parcelas imensas da população são ‘indefesas’, e, evidencia que essa mesma realidade foi digna da atenção do próprio constituinte.
No que diz respeito aos outros bens jurídicos — meio ambiente, ‘bens e direitos’ de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico — ao lado da consideração em lei, nessa mesma lei, adjudicou-se competência a entidades de caráter público e privadas, de molde a que tais bens possam ser defendidos.[31]
4 – Um modelo de ações coletivas no direito brasileiro
O Código do Consumidor é representativo da forma de como se procurou criar largas condições para a defesa do consumidor em juízo.
O Código do Consumidor, em verdade, procurou estabelecer uma correlação ou articulação entre o direito processual e o material (modificando profundamente o direito privado=comercial) preexistente.
Ponto saliente é a sua disciplina de como restaram vedadas práticas abusivas dos fornecedores e estabelecidas, no seu artigo 51, XVI modalidades de nulidades, através de previsão das hipóteses e, a de número XV, estabelecendo que, qualquer violação ao CDC, importa nulidade. Em estabelecendo a responsabilidade pelo fato do produto (pelo risco civil, subtraindo a ocorrência de indenização por danos da esfera da culpa) e garantindo em escala apreciável o consumidor por proteção penal, cuidou, também, do estabelecimento de um sistema geral de ações coletivas.
Este sistema geral de ações coletivas, pode-se acentuar, coincide com o sentido teleológico daquele estabelecido pela Lei da Ação Civil Pública, ainda que, nesta lei, originariamente, no que diz respeito ao consumidor, não se possa dizer que este, individualmente, estivesse protegido. Foi mercê da articulação da Lei da Ação Civil Pública com o Código do Consumidor, que este (ou, mais precisa e amplamente [32] as vítimas e sucessores destas), acabaram logrando uma proteção ‘cumulativa’, vale dizer, seja através da utilização das ações coletivas, tais como disciplinadas pelo Código do Consumidor, seja, ainda, pela própria procedência da ação civil pública, tendo-se em vista que o Código do Consumidor atribuiu a essa procedência eficácia suficiente para beneficiar individualmente, também. Não há referência mais extensa a consumidor, nos textos da parte processual do Código do Consumidor e da Lei da Ação Civil Pública (tal como alterada pelo Código do Consumidor), senão que a vítimas (e, aos sucessores desta), com o que se constata que se elegeu um designativo que, englobando a figura do consumidor, é, em verdade, mais amplo do que consumidor.
O que se verifica, portanto, é que para poder-se acorrer na defesa de determinados bens, tais como, o meio ambiente, bens de valor artístico ou estético, etc., da mesma forma que, para se poder lograr defender o consumidor, foi necessária a utilização de ações coletivas.
Sem tais ações coletivas, certamente, tais bens não seriam defendidos, à luz do que reclama a consciência social contemporânea. Muito improvavelmente, alguém — mesmo um cidadão consciente e zeloso — virá defender o meio ambiente, ou então, irá pugnar pela preservação de bens de valor artístico ou estético, sem se considerarem as imensas complicações, ou, a inviabilidade mesma, da legitimidade de um só indivíduo para essa finalidade. Da mesma forma, o consumidor isolado, normalmente, não arcaria com os incômodos, custos e tempo de um processo, para se defender de uma compra feita.
Por isto é que necessário se mostrou atribuir legitimidade também a entidades que, pela sua situação no organograma do Estado, e, bem assim, a entidades particulares, mas vocacionadas para a defesa de tais bens jurídicos, pudessem, agir. E, agindo, que o resultado prático viesse a ser compensatório do ponto de vista quantitativo, ou seja, tendo em vista o grande número de beneficiados.
Estas entidades atuam normas de direito material com outro vigor, porque são normas de ordem pública e porque infundem a consciência de vir a ocorrer efetiva responsabilidade, no que diz respeito à sua infringência.
Por isto é que se pode dizer, com propriedade, que a chamada dogmática clássica, inspirada e construída em função do individualismo jurídico e que resultou no positivismo jurídico, encontra-se superada e, esta situação ocorreu diante dessa não mais poder satisfazer às necessidades contemporâneas, animadas por uma consciência coletiva reivindicante e tendo em vista os reclamos de que todas estas situações viessem a ser protegidas. Em obra de nossa autoria e, em seqüência a outras, justificamos o nosso ponto de vista.[33]
5 – A vocação coletiva do processo contemporâneo – O contraste desse instrumental com a situação cultural brasileira, a indicar um rendimento lento e mesmo precário
O nosso legislador constitucional abriu, já nesse patamar constitucional, inúmeros caminhos à tutela coletiva de direitos. Assim, o mandado de segurança, marcadamente nascido com caráter individualista, passou, à luz do disposto no art. 5º, inciso LXX, a comportar, também, abertura à defesa coletiva.
No que diz respeito ao mandado de injunção, destinado à efetivação de norma constitucional programática, na forma do disposto no art. 5º, inciso LXXI, há que ser ele considerado como um meio relacionado com a efetividade do direito constitucional, podendo comportar tutela coletiva.[34]
No que diz respeito à ação de inconstitucionalidade, sofreu ela modificação operacional, porquanto abriu-se o espectro de legitimados, perante o Supremo Tribunal Federal, somando-se à conhecida modalidade de controle difuso, o da inconstitucionalidade por omissão (Constituição Federal de 1988, art. 102, § 2º); mais ainda, previu-se que os Estados Federados (art. 125, § 2º), hajam de prever o mesmo sistema, para controle das leis estaduais ou municipais, em face dos constituições dos respectivos Estados, “vedada a atribuição para agir a um único órgão”.
A oferta de instrumentos processuais, existentes no direito brasileiro é grande, ao lado da GARANTIA NA LETRA DO TEXTO CONSTITUCIONAL de um imenso rol de direitos. Todavia, não é animadora a situação estrutural do Poder Judiciário, como também, precária é a situação de conscientização de grandes camadas da população.
Pois, na verdade, a agilidade do Poder Judiciário, o que exige o seu aumento físico, bem como uma melhoria significativa da consciência de que existem direitos, constituem dois pressupostos vitais, para uma real e efetiva atuação da ordem jurídica, mesmo que esta, como se disse, seja objetivamente rica, de meios processuais e ainda que as previsões de direito material estejam afinadas com as posturas contemporâneas, que se pretendem sintonizadas com um sentimento hodierno de realização de direitos, em nome da Justiça.
O Poder Judiciário não logrou obter, em face da Constituição Federal de 1988, uma verdadeira autonomia financeira. Em longa entrevista publicada o Des. e Prof. Regis Fernandes de Oliveira enfatiza essa realidade, observando que, em seu sentir, a parte do orçamento destinada às justiças — de um modo geral — ficam aquém da metade do que necessário seria.[35]
6 – O plano do direito positivo, o Estado e a realidade nacional
Se, no plano da ‘promessa da lei’ é grande a oferta, é certo, todavia, que essa ‘oferta’ somente será verdadeira, dependentemente da atividade do Estado, o que inclui o Poder Judiciário, da mesma forma que os demais poderes.
Seria uma profunda inutilidade, um trabalho deste jaez que, se alguma utilidade puder ter, será a de comportar uma ‘leitura iluminada’ — ou, com mais precisão, lamentavelmente ofuscada — pela nossa realidade.
Dissemos que toda a gama de direitos existentes, processuais e materiais, necessitam de um Estado para torná-los existente. Uma pesquisa realizada, na época em que se escreveu este trabalho, todavia, destaca um descrença no papel do Estado. [36]
No dia seguinte à notícia supra referida, noticiam os jornais um plano governamental, com vistas a uma expansão do consumo, mercê de aumento do poder aquisitivo dos salários, com o que se pretende que o comprometimento do acesso à justiça, à segurança e aos serviços básicos, por parte dos pobres, venha a ser superado, com o que se pretende recuperar a cidadania, a muitos segmentos.[37]
É esta uma diretriz correta, ainda que com resultados a muito longo prazo, porquanto o Estado nunca poderá ser forte e acreditado, enquanto não se lograr obter, entre nós, uma razoável ou ponderável homogeneidade social. É, a partir desta, que se poderá, realmente, cogitar com autêntica seriedade, de uma recuperação do perfil do Estado.
Por fim, em todos os campos — mas, isto vale de uma forma absoluta e plena para a atividade do Judiciário e para um reequacionamento do direito processual —, colocam-se como indispensáveis estatísticas idôneas e outros instrumentos de cognição real da realidade, porquanto, quaisquer reformas ficarão sempre, muito a desejar, na medida em que a realidade indesejada e que se pretende modificar, não esteja corretamente representada perante quem colime reformá-la. O não conhecimento da realidade conduz a reformas baseadas em meras intuições sempre unilaterais, calcadas num empirismo primário, com o risco sério, senão que quase certo de inevitável fracasso, com o que, aquilo que estava imprestável, continuará a não prestar ou não vir a ser bom, como se esperava. É só o pleno e verdadeiro conhecimento da realidade que enseja condições para que se possa reformar para o bom — mesmo com a consciência de que não se irá , ao menos a curto prazo, atingir o ideal .
Mas, por outro lado, somente poderá realmente se operar melhoria do Estado, na medida em que haja melhoria das condições de vida da população, ou seja, em função de uma melhoria da Nação.
Advogado em São Paulo — Professor e Coordenador dos Cursos Mestrado e Doutorado (Civil e Processo Civil) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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