O art. 273 do CPC não dá margem a dúvidas: a antecipação da tutela deverá ser precedida de requerimento da parte (“o juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I – haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou II – fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu”). Logo, a princípio, à luz da dicção literal do dispositivo, o magistrado não poderia antecipar os efeitos da tutela sem requerimento da parte, não havendo espaço para discutir a possibilidade da antecipação da tutela de ofício.
Esse entendimento é reforçado por outros argumentos, calcados nos princípios tradicionais do processo como o da demanda ou da iniciativa da parte, da adstrição do juiz ao pedido e o princípio dispositivo, previstos, inclusive, no CPC (“art. 2o. Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais”; “art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte”).
Sustenta-se ainda que, se o juiz tomar a iniciativa de antecipar a tutela, sua imparcialidade estará sendo comprometida.
Além disso, argumenta-se que, como os eventuais danos decorrentes da execução da medida deverão ser suportados pela parte, tal como ocorre no processo cautelar (art. 811), somente ela – a parte – deveria escolher se pretende ou não correr o risco de obter a antecipação da tutela.
Por todas essas razões, tanto a doutrina quanto a jurisprudência são praticamente unânimes em reconhecer a impossibilidade de se antecipar a tutela sem que haja requerimento expresso nesse sentido.
A matéria, porém, não é tão simples. Há algumas vozes (poucas, é verdade) que insistem na possibilidade da antecipação da tutela sem que haja requerimento expresso da parte interessada. Faço parte desse minoritário clã e passo a expor as minhas razões.
Primeiramente, o instituto da tutela antecipada tem fundamento constitucional, pois decorre do direito fundamental à tutela efetiva (art. 5o, inc. XXXV, da CF/88: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), sendo certo que o direito fundamental consagrado no dispositivo garante ao jurisdicionado não apenas o direito formal de propor a ação, indo muito mais além, pois assegura o direito a uma tutela adequada e efetiva. Desse modo, considerando que uma das principais características que o moderno constitucionalismo reconhece aos direitos fundamentais consiste na sua aplicabilidade imediata, o juiz, no atendimento concreto das providências que se revelem indispensáveis para concretizar um dado direito fundamental (no caso, o direito à tutela efetiva ou à ação), pode (e deve) atuar independentemente e mesmo contra a vontade da lei infraconstitucional, pois, para efetivar os preceitos constitucionais, não é preciso pedir licença a ninguém, muito menos ao legislador.
Em segundo lugar, a circunstância de uma norma ser, a priori, válida não inibe a possibilidade de, no caso concreto, ser afastada a sua incidência, desde que sua aplicação acarrete uma flagrante injustiça. A lei, como norma genérica e abstrata, por mais útil e correta que seja, pode na casuística levar a situações absurdas, vez que é impossível ao legislador prever a totalidade dos casos particulares e querer esgotar por completo a atividade criadora do aplicador do Direito. Portanto, antes de aplicar acriticamente os “rigores da lei”, tal qual um poeta parnasiano do século passado, através do velho exercício mecânico da lógica formal de subsunção dos fatos à norma, o magistrado deve fazer uma análise tópica, buscando a máxima efetivação dos princípios consagrados na Constituição, nunca temendo decidir contra legem, desde que julgue pro Constituição. Na hipótese do prévio requerimento como requisito para a antecipação da tutela, embora se possa considerar sua exigência, em abstrato, válida, em certos casos específicos, pode vir ela a se mostrar desarrazoada e injusta, devendo o juiz, nestas situações, antecipar a tutela mesmo sem pedido expresso, a fim de dar cumprimento à norma constitucional que garante a efetividade do processo.
Terceiro, as verbas alimentícias (p. ex., as decorrentes de benefícios previdenciários ou assistenciais) trazem sempre consigo um clamor de urgência na sua obtenção. Desse modo, tratando-se de verbas dessa natureza, o pedido não precisa fazer menção expressa à antecipação de tutela ou ao art. 273, do CPC, pois está implícita a necessidade de sua concessão, sobretudo quando se trata de pessoa humilde, desamparada, idosa, que, em regra, não tem condições de contratar um bom advogado para representá-la.
Em quarto lugar, há o próprio despreparo de alguns advogados, que esquecem, por ignorância, de fazer o requerimento. Nos casos de ações de competência dos Juizados Especiais Cíveis ou da Justiça do Trabalho, em que é possível peticionar sem a representação técnica por advogado, também fica manifesta a desnecessidade de requerimento expresso de antecipação de tutela, já que seria cômico exigir que um sujeito de parca instrução saiba o que é a antecipação de tutela e, por conseqüência, venha a requerê-la. Lembra-se que o direito processual moderno pauta-se no princípio da instrumentalidade das formas e, como decorrência da instrumentalidade – corolário do princípio da efetividade e do acesso à justiça -, o magistrado é obrigado a sanar, sempre que possível, as atecnias cometidas pelas partes hipossuficientes. Qualquer comportamento excessivamente formalista por parte do juiz não seria legítimo, afinal a atenção à forma que não atenda ao ideal da instrumentalidade, na imagem de Liebman, não passará da mais solene deformação. Ou, como afirma Portanova, “nestes tempos de preocupação publicística e social do direito em geral e do processo em particular, o princípio da ação está a desafiar o processualista moderno. Não se pode esquecer que o pobre, por exemplo, desconhece seus direitos. Quando os intui, muitas vezes têm dificuldade de expressá-los. Assim, conseguir ter acesso ao Judiciário cível já é, para o pobre, uma grande conquista. Contudo, infelizmente, acabam representados por advogados pouco preparados ou ainda em preparação. Assim, seja por defeito de forma ou por desconhecimento do fundo, muitas vezes o verdadeiro direito do pobre só vai aparecer ao longo do processo. E é claro, não raro estará fora do pedido inicial. Nesses casos, o jurista está desafiado a informalizar de tal modo o processo e amenizar o princípio a ponto de, iniciada a demanda, seja viabilizado chegar-se com sucesso ao atendimento do real bem da vida pretendido pelas partes, independentemente dos limites do pedido” (PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil, p. 118.).
Uma outra hipótese em que se mostra desarrazoada a exigência de requerimento expresso ocorre nos casos de conflito de interesses entre o cliente e o advogado, fato corriqueiro nos feitos previdenciários. No caso, a antecipação da tutela seria do interesse da parte, que necessita do benefício até para garantir sua própria sobrevivência; para o advogado, contudo, a antecipação da tutela seria prejudicial, pois haveria redução do valor da futura execução, fazendo com que os ganhos do advogado se tornem menores, já que os honorários de sucumbência são, em regra, calculados com base no valor da condenação. Por isso, é comum se deparar com ações de revisão ou concessão de benefícios previdenciários em que não há propositalmente pedido de antecipação, mesmo sendo patente a verossimilhança das alegações e mais patente ainda a presença do periculum in mora, tendo em vista que a própria subsistência do segurado está em jogo. Condicionar a antecipação da tutela à manifestação expressa do advogado seria, nessa hipótese, uma grande injustiça para a parte, razão pela qual entendo ser perfeitamente possível a antecipação de ofício com fundamento no próprio princípio da dignidade da pessoa humana.
Por todas essas razões, creio ser possível a antecipação da tutela sem requerimento expresso, desde que, no caso concreto, não se mostre razoável a exigência.
Tenho me deparado com inúmeros feitos previdenciários em que a antecipação da tutela, de ofício, mostra-se não apenas útil como também fundamental. São processos que tramitam em primeiro grau há cerca de cinco anos e certamente levarão outros cinco anos nas instâncias superiores. Os autores são sempre bem idosos, pedindo uma simples aposentadoria rural por idade, pensão ou amparo assistencial, cujo valor corresponde a tão somente um salário-mínimo. A eficácia do provimento final estaria seriamente comprometida caso seus efeitos não fossem antecipados imediatamente, pois, não obtendo desde logo a tão sonhada aposentadoria, certamente a parte autora já haverá falecido quando a sentença transitar em julgado, o que, infelizmente, ocorre com certa freqüência. Por isso, sempre venho antecipando a tutela quando a verossimilhança é manifesta, demonstrada com farta prova documental e testemunhal do tempo de serviço rural necessário à obtenção do benefício.
O argumento de que somente a parte poderia dizer se gostaria ou não de correr o risco de obter a antecipação, já que seria ela quem suportaria os eventuais danos decorrentes da execução da medida, em analogia com o que ocorre com a medida cautelar, não serve de fundamento para impedir a antecipação de ofício, já que também no processo cautelar se admite a concessão da medida liminar de ofício. Além disso, a tese não procede nos casos de recebimento de verbas alimentícias, como no caso de benefícios previdenciários ou assistenciais, pois é entendimento pacífico que tais verbas não podem ser objeto de repetição, salvo se houver má-fé. Como o beneficiário da antecipação da tutela estará recebendo os valores de boa-fé, ele não poderá ser condenado a devolvê-la; logo, não deverá suportar os danos decorrentes da execução da medida, caso, posteriormente, a tutela seja revogada.
Do mesmo modo, os tradicionais princípios processuais consagradores da inércia jurisdicional também não devem servir de escudo para um comportamento inerte e passivo do magistrado. O juiz, moralmente comprometido com a missão de realizar o justo, inquieto diante da complexidade procedimental, criará, ele próprio, alternativas propiciadoras da efetividade processual, não se tranqüilizando com auto-escusa calcada nas deficiências do sistema (Uma Nova Ética para o Juiz. Coor. José Renato Nalini. RT, p. 7). A imparcialidade do juiz, nesse caso, não estará abalada, como pensam alguns processualistas mais tradicionais. Na verdade, o magistrado não estará tomando partido em relação a esta ou aquela parte, mas tão somente agindo para concretizar um direito fundamental. Lembra-se que estamos vivendo a terceira geração (ou dimensão) dos direitos fundamentais. Por esse motivo, o direito (fundamental) de ação perde aquele caráter negativista de alhures e algures, onde seria apenas um comando proibitivo ao Legislativo (a lei não excluirá), para alcançar uma acepção positiva (afirmativa), abraçada ao princípio da igualdade e da solidariedade, e que gera ao Estado em sentido amplo – aqui incluído o juiz – o dever irrecusável (de cunho positivo) de prestar adequada e satisfatoriamente a tutela jurisdicional, mesmo que, para isso, tenha que agir ao léu das veleidades legais.
Se mesmo diante de todos esses argumentos ainda se insista na impossibilidade legal de antecipação da tutela sem pedido expresso, invoca-se o próprio Código de Processo Civil em favor da tese que ora se defende. Nos termos do artigo 461 do CPC, o juiz pode, na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, conceder a tutela específica da obrigação, liminarmente, se reconhecer o fundamento jurídico da demanda como relevante e existir justificado receio de ineficácia do provimento final, devendo tomar as medidas necessárias para a efetivação desta decisão. Veja-se que não há qualquer exigência de prévio requerimento da parte; pelo contrário, o §5o autoriza que o juiz, mesmo de ofício, determine as medidas necessárias para a efetivação da tutela específica ou para obtenção do resultado prático equivalente. Desse modo, voltando ao exemplo de pedido de concessão de benefícios previdenciários, por se tratar de obrigação de fazer (implantação do benefício), é possível a antecipação da tutela de ofício, em conformidade com o art. 461, do CPC.
Futuramente, se for aprovada a mudança legislativa consagrando a técnica da execução imediata da sentença, segundo a qual a apelação deverá ser, em regra, recebida somente no efeito devolutivo, vários problemas aqui apontados serão solucionados, já que a sentença, por si só, independentemente do trânsito em julgado, terá força mandamental. Porém, enquanto a mudança legislativa não vem, e sem precisar invocar a cômoda desculpa da “sugestão de lege ferenda”, é perfeitamente defensável, que, em nome do valor constitucional consagrador do direito à completa e efetiva prestação jurisdicional, possa o juiz antecipar a tutela independente de requerimento da parte, sobretudo nas situações extremas que se citou. Trata-se, sem dúvida, de uma visão um tanto quanto “avançada” para os padrões tradicionais do processo, que aprisionam o juiz com as frias algemas da lei. Mas o porvir há de demonstrar que essa conclusão é um corolário lógico da fase constitucional e humanística por que passa o direito, em que a sociedade espera do magistrado uma postura serena, altiva e corajosa na busca de soluções criativas capazes de concretizar a justiça social.
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