Resumo: O Princípio da Irrelevância Penal do Fato é um princípio relativamente novo no Brasil em sede doutrinária, mas, sobretudo, jurisprudencial. Este princípio não se confunde com o Princípio da Insignificância, uma vez que o Princípio da Irrelevância Penal do Fato incide nas infrações bagatelares impróprias e o Princípio da Insignificância incide nas infrações bagatelares próprias..O objetivo destes princípios é delimitar a área de atuação do Direito Penal como medida de justiça, porquanto o Direito Penal representa o mais drástico mecanismo de intervenção social, devendo, pois, em observância ao seu caráter fragmentário e subsidiário, intervir apenas quando estritamente necessário e quando os outros ramos do Direito se mostrarem ineficazes para a composição do conflito. Contudo, tais princípios têm campos de incidência distintos, os quais devem ser devidamente compreendidos e distinguidos, a fim de evitar suas errôneas aplicações.
Palavras-chave: Princípio da Irrelevância Penal do Fato. Princípio da Insignificância. Distinções. Infração bagatelar imprópria.
1.INTRODUÇÃO
O Direito Penal deve funcionar como última ratio. Sendo a reprimenda penal uma das formas mais drásticas de intervenção na liberdade, ela somente deve ser utilizada pelo Estado quando os outros ramos do Direito (civil, administrativo etc.), constituídos por sanções não-penais, se mostrarem incapazes para a resolução do litígio. Diante da atual realidade da justiça criminal, o Direito Penal mínimo busca a adoção de técnicas de descriminalização.
Desta forma, os Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato funcionam como princípios de política-criminal voltados para a revalorização do Direito Penal, na medida em que procuram reduzir o alcance do Direito Penal apenas às situações que necessitam da intervenção drástica e energética do Direito Penal, pois que resultam em significativa lesão ou ameaça de lesão aos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal. A aplicação destes princípios evita a tipificação penal em descompasso com a realidade social, bem como a aplicação da pena de forma desnecessária e desproporcional.
Vale ressaltar que a aplicação dos Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato deve se dar de forma criteriosa e casuística. Os requisitos necessários para a materialização de cada um deles devem ser analisados de acordo com as particularidades de cada caso concreto, a fim de evitar a banalização do Direito e a insegurança jurídica.
2. DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IRRELEVÂNCIA PENAL DO FATO
2.1- Princípio da Irrelevância Penal do Fato e infração bagatelar imprópria
O Direito Penal apenas protege os bens juridicamente relevantes, ficando afastado, pois, do bem jurídico considerado inexpressivo. Não é razoável a incidência do Direito Penal, o qual deve ser considerado a última ratio, em casos bagatelares[1]. Conforme ensinamento do professor Luiz Flávio Gomes[2], “infração bagatelar expressa o fato de ninharia, ou seja, de pouca relevância. A infração bagatelar é uma conduta ou um ataque ao bem jurídico tão irrelevante que não necessita da intervenção penal”.
Para melhor compreensão do tema, o professor Luiz Flávio Gomes divide a infração bagatelar em própria e imprópria. Luiz Flávio Gomes[3] assim ensina:
“A infração bagatelar deve ser compreendida em sua dupla dimensão: infração bagatelar própria e infração bagatelar imprópria. Infração bagatelar própria é a que já nasce sem nenhuma relevância penal: ou porque não há desvalor da ação (não há periculosidade na ação) ou porque não há o desvalor do resultado (não se trata de ataque intolerável ao bem jurídico). Infração bagatelar imprópria é a que não nasce irrelevante para o Direito Penal, mas depois verifica-se que a incidência de qualquer pena no caso apresenta-se como totalmente desnecessária (princípio da desnecessidade da pena conjugado com o princípio da irrelevância penal do fato).”
Do exposto, conclui-se que a infração bagatelar própria é aquela que já nasce ausente de relevância penal, o que justifica a não incidência do Direito Penal, devendo, pois, os demais ramos do Direto ocuparem-se de tais condutas. Assim a infração bagatelar própria está diretamente relacionada com a aplicação do Princípio da Insignificância, o qual implica na exclusão da tipicidade material e, consequentemente, do próprio fato típico.
Desta forma, diante de uma infração bagatelar própria não há que se perquirir a respeito de condições pessoais do agente, tais como vida pregressa, antecedentes criminais, culpabilidade etc, pois diante da infração bagatelar própria aplica-se o Princípio da Insignificância, afastando-se, consequentemente, o próprio tipo penal. A infração bagatelar própria e o Princípio da Insignificância lidam com critérios puramente objetivos[4].
Já a infração bagatelar imprópria, concerne àquelas condutas que nascem relevantes para o Direito Penal, haja vista que ocorre desvalor tanto da conduta quanto desvalor do resultado. Porém, mediante a análise das peculiaridades do caso concreto, tais como vida pregressa favorável, ausência de antecedentes criminais, ínfimo desvalor da culpabilidade, reparação do dano, colaboração com a justiça, dentre outros, faz com que a incidência de qualquer pena ao caso concreto vislumbra-se desnecessária e desproporcional[5].
Nota-se, pois, que a infração bagatelar imprópria lida com critérios subjetivos e não puramente objetivos. Diante da infração bagatelar imprópria se aplica o Princípio da Irrelevância Penal do Fato. Fazendo uma análise das circunstâncias judiciais constantes do artigo 59 do Código Penal, o juiz fixará a pena de acordo com a necessidade e suficiência para prevenção e reprovação do crime; neste contexto, caso a conduta, o resultado e a culpabilidade forem bagatelares, a aplicação da reprimenda penal pode torna-se desnecessária e inadequada.
Neste sentido vale consignar o que dispõe o professor Luiz Flávio Gomes[6] a respeito:
“O Princípio da Insignificância está para a infração bagatelar própria assim como o da Irrelevância Penal do Fato (e da desnecessidade da pena) está para a infração bagatelar imprópria. Cada princípio tem seu específico âmbito de incidência. O da irrelevância penal do fato está estreitamente coligado com o princípio da desnecessidade da pena.”
Pelo exposto, nota-se que a infração bagatelar imprópria resulta na ofensa de bem juridicamente relevante para o ordenamento jurídico penal. Contudo, por uma questão de política criminal, mediante a análise de todas as circunstâncias judiciais que envolvem o caso concreto, a aplicação da pena torna-se desnecessária. É importante destacar que de acordo com o princípio da intervenção mínima, a pena somente será legítima quando se der nas circunstâncias estritamente necessárias para a proteção a um bem jurídico penalmente reconhecido.
Conforme já exposto, a aplicação do Princípio da Insignificância é amplamente aceita pela doutrina e jurisprudência. Contudo, no que concerne ao Princípio da Irrelevância Penal do Fato pouco tem sido sua aplicação, embora crescente sua evolução. Vale destacar que, o Princípio da Irrelevância Penal do Fato encontra-se em forte construção no Direito Italiano, sendo que o responsável pelo ingresso deste princípio no Brasil é o professor Luiz Flávio Gomes[7], mediante análise do caso paradigmático de “Angélica Teodoro”.
Angélica Teodoro mãe de um filho de 2 anos, doméstica desempregada, primária e portadora de bons antecedentes criminais ficou presa 128 dias e foi acusada de tentativa de roubo por ter sido surpreendida tentando subtrair um pacote de manteiga de 200 gramas corresponde na época ao valor de R$ 3,10 (três reais e dez centavos) [8]. Vale consignar o teor da decisão proferida pelo STJ no HC n°55909-SP, cujo Ministro relator Paulo Gallotti concedeu liberdade provisória para a impetrante Angélica Teodoro:
“HABEAS CORPUS Nº 55.909 – SP (2006/0052144-0)
RELATOR: MINISTRO PAULO GALLOTTI
IMPETRANTE: NILTON JOSÉ DE PAULA TRINDADE
IMPETRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
PACIENTE: ANGÉLICA APARECIDA DE SOUZA TEODORO (PRESA) DECISÃO
Cuida-se de habeas corpus impetrado em favor de Angélica Aparecida de Souza Teodoro, presa em flagrante e denunciada pelo cometimento do crime de roubo de uma lata de manteiga em um mercado. Ataca-se ato do Desembargador Relator do habeas corpus manejado no Tribunal de Justiça de São Paulo que indeferiu a medida liminar. Pretende-se a concessão de liberdade provisória, inclusive cautelarmente. Solicitadas informações, prontamente as prestou, com detalhes, o Dr. César Augusto Andrade de Castro, Juiz de Direito da 23ª Vara Câmara Criminal de São Paulo. Importante, para compreensão do que se está a decidir, relato do ocorrido. A paciente foi presa em flagrante, na manhã do dia 16 de novembro do ano passado, como se vê de cópia do respectivo auto, por infração, em tese, do art. 157, § 1º, c/c o art. 14, II, ambos do CódigoPenal, anotando-se que ela foi “surpreendida logo após ter subtraído mercadoria do interior de um mercado, situado na R. Erva de Santa Luzia, 511 – Jardim Maia – CEP: 08081-310 – S. Paulo – SP, quando, tão logo foi abordada e a subtração constatada, utilizou-se de grave ameaça contra o proprietário e um funcionário do estabelecimento, a fim de garantir a impunidade do delito”(…)
Submetido ao magistrado o auto de prisão em flagrante com pedido de liberdade provisória, em 24 de novembro a custódia foi mantida em decisão do seguinte teor: “O fato descrito nos autos é típico e antijurídico. Caracterizada a situação de flagrância por ocasião da abordagem policial, não se podendo falar em ilegalidade da prisão levada a efeito. Teses acerca da culpabilidade do agente não impedem a caracterização do estado de flagrância. Ademais, quem profere ameaça para assegurar a detenção da coisa ou a impunidade do crime comete roubo impróprio, e não simplesmente furto. De outro vértice, sem que o pedido de liberdade provisória seja instruído com documentos que comprovam a existência de residência fixa e/ou exercício de atividade lícita, de rigor o seu indeferimento. A averiguada não trouxe aos autos documentação que comprove suas assertivas. Logo, temos que não há garantias de que, posto em liberdade, não evadirá do distrito da culpa, prejudicando as investigações. E, com seu comportamento, demonstrou personalidade violenta, a justificar a manutenção da custódia a despeito da aparente primariedade. A manutenção da prisão é, portanto, medida que se impõe, para garantia da instrução processual e da futura aplicação da lei penal. Ante o exposto, presentes os pressupostos autorizadores da manutenção da prisão do indiciada. Indefiro o pedido formulado.” No dia 5 de dezembro seguinte, o representante do Ministério Público ofereceu a seguinte denúncia contra a paciente: “Consta dos autos do incluso inquérito policial que, no dia 16 de novembro de 2005, às 10h, na Rua Erva de Santa Luzia, 511, nesta Capital, Angélica Aparecida de Souza Teodoro, qualificada à fl. 14, logo depois de subtrair para si coisa alheia móvel consistente em uma lata de manteiga aviação no valor de R$ 3,10 (três reais e dez centavos), empregou grave ameaça contra a pessoa de Dadiel de
Araújo, a fim de assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa para si ou para terceiro. Segundo apurou-se, no dia dos fatos, a denunciada, acompanhada de uma outra mulher não identificada, estava no estabelecimento comercial denominado Mercado Araújo Ltda. de propriedade da vítima Dadiel de Araújo. A mulher não identificada efetuou compras e as pagou normalmente deixando o estabelecimento. A denunciada, por sua vez, trazendo nas mãos um boné com o objeto subtraído envolto, saiu sorrateiramente do estabelecimento. Ao notarem o ocorrido, a vítima e um funcionário do mercado abordaram a denunciada já na calçada e constataram que ela havia subtraído do interior do estabelecimento uma lata de manteiga, marca Aviação, de 200g. A fim de garantir a impunidade do delito a denunciada, ao ser abordada, passou a proferir grave ameaça contra a vítima.
Ato contínuo, a vítima acionou uma viatura policial e foi dada voz de prisão em flagrante delito à denunciada. Diante do exposto, comprovada a autoria e materialidade do delito, denuncio a Vossa Excelência Angélica Aparecida de Souza Teodoro como incursa no artigo 157, § 1º, do Código Penal, e requeiro que, recebida a autuada esta, tenha início o devido processo penal, citando-a e intimando-a para interrogatório, prosseguindo-se com a oitiva de testemunha adiante arroladas, nos termos dos artigos 395/405 e 498 a 502 do Código de Processo Penal, até final sentença condenatória.”
Em 4 de janeiro e 2 de fevereiro deste ano, rejeitaram-se novos pedidos de liberdade provisória, assim vazado o primeiro desses provimentos:”Conduta grave, que obsta a liberdade provisória e impõe a manutenção da ré em custódia com o fim de preservar a coletividade contra pessoas potencialmente perigosas. Ainda, a imediata soltura seria contrária aos anseios da sociedade,
que clama por mais rigor na punição dos crimes praticados com violência contra as pessoas. Deste modo, havendo fundadas razões que sinalizem sua participação no crime em investigação, hei por bem em indeferir o pedido de liberdade provisória, como garantia da ordem pública e conveniência de instrução processual.” (…)
Em princípio, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não tem admitido o exame de habeas corpus que investe contra o indeferimento de medida liminar em ação idêntica deduzida perante Tribunal Regional ou Estadual. Tem-se proclamado, contudo, que, em hipóteses excepcionais, mostra-se possível e impositiva a atuação da Corte, quando o constrangimento ilegal a que alguém esteja submetido resultar evidente de um exame perfunctório dos elementos de convicção existentes nos autos. A meu ver, é o caso. Com efeito, não vislumbro razão para manter a prisão em flagrante da paciente. A prisão cautelar, exceção ao princípio da presunção de não-culpabilidade, está sempre atrelada, em compreensão moderna do tema, à demonstração de sua necessidade. No caso, foram apontados como motivos para a manutenção da segregação a gravidade do delito e a intranqüilidade causada na sociedade paulistana com a reiteração de práticas assemelhadas. Sem avaliar, por certo, a conduta atribuída à paciente, na forma descrita na denúncia, forçoso é reconhecer que a gravidade da infração – de duvidosa ocorrência com as ameaças que teriam sido proferidas pela acusada – por si só não autoriza a prisão antecipada. Além disso, certamente não são comportamentos como o atribuído à paciente que estão a intranqüilizar a cidade de São Paulo, mas sim a prática dos mais variados crimes, quase sempre cometidos com armas de fogo e o emprego de violência. Finalmente, impossível deixar de remarcar que se está a cuidar da subtração de um pote de manteiga avaliado em R$ 3,10, sendo a acusada, ré primária, que admite o furto, mas nega as ameaças, lamentavelmente, vítima de um perverso quadro social que não oferece oportunidades concretas, a ela e a milhões de outros brasileiros, de uma vida digna. Diante do exposto, defiro a medida liminar, até o julgamento do mérito do habeas corpus, para que a paciente seja posta, imediatamente, em liberdade provisória, se por outro motivo não estiver presa, assinando o respectivo termo de comparecimento a todos os atos do processo. Dê-se imediata ciência ao Tribunal de Justiça de São Paulo e ao Juízo de Direito da 23ª Vara Criminal da Capital. Publique-se”. Brasília (DF), 23 de março de 2006. MINISTRO PAULO GALLOTTI, Relator (PAULO GALLOTTI, 29/03/2006)
No julgado acima, o Ministro Paulo Gallotti concedeu liberdade provisória devido à desnecessidade da segregação cautelar diante das circunstâncias do caso concreto. Afirmou o Ministro que a conduta realizada pela impetrante não representa grave intranquilidade para a sociedade, vez que se trata de pessoa primária e de bons antecedentes “vítima de um perverso quadro social que não oferece oportunidades concretas, a ela e a milhões de outros brasileiros, de uma vida digna”.
Conforme se observa do teor do julgado acima, a análise do caso concreto é de fundamental importância para a aplicação do Princípio da Irrelevância Penal do Fato. Como cabe ao juiz uma alta carga de valoração na análise do ínfimo desvalor da culpabilidade e de todas as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, a aplicação deste princípio deve se dar de forma restrita, casuística e com a observância rigorosa de todas as particularidades do caso concreto, pois deve-se ter cuidado para que a aplicação deste princípio não sirva de estímulo para a reiteração de pequenos delitos.
O Princípio da Irrelevância Penal do Fato objetiva possibilitar a concretização dos princípios da proporcionalidade, igualdade material e dignidade da pessoa humana, vez que vislumbra impedir a imposição de pena que seja desproporcional e desnecessária. Sendo assim, a aplicação deste princípio deve ser criteriosa e casuística, a fim de evitar grave insegurança jurídica e a banalização do Direito.
O ilustre professor Luiz Flávio Gomes[9] estabeleceu da seguinte forma os critérios de distinção entre o Princípio da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato:
“Os princípios da insignificância e da irrelevância penal do fato, a propósito, não ocupam a mesma posição topografia dentro do Direito Penal: o primeiro é causa de exclusão da tipicidade material do fato (ou porque a conduta não é juridicamente desaprovada ou porque há o desvalor do resultado jurídico); o princípio da irrelevância penal do fato é causa excludente da punição concreta do fato, ou seja, de dispensa da pena (em razão da sua desnecessidade no caso concreto). Um afeta a tipicidade penal (mais precisamente, a tipicidade material); o outro diz respeito à (desnecessidade de) punição concreta do fato. O princípio da insignificância tem incidência na teoria do delito (aliás, afasta a tipicidade material e, em conseqüência, o próprio crime). O outro pertence à teoria da pena (tem pertinência no momento da aplicação concreta da pena). O primeiro correlaciona-se com a chamada infração bagatelar própria; o segundo corresponde à infração bagatelar imprópria. O primeiro tem como critério fundante o desvalor do resultado e/ou da conduta (ou seja: circunstâncias do próprio fato), o segundo exige sobretudo, desvalor ínfimo da culpabilidade (da reprovação), assim como o concurso de uma série de requisitos post factum que conduzem ao reconhecimento da desnecessidade da pena no caso concreto.”
Conforme consignado acima pelo professor Luiz Flávio Gomes, os Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato são princípios distintos, sobretudo, porque a aplicação do Princípio da Insignificância resulta na exclusão da tipicidade material do fato, enquanto que a aplicação do Princípio da Irrelevância Penal do Fato resulta na não exigibilidade da aplicação da pena, em decorrência da desnecessidade da punição concreta do fato pelo Direito Penal.
O Princípio da Irrelevância Penal do Fato tem seu fundamento jurídico no artigo 59 do Código Penal, in verbis:
“Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I – as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;
IV- a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.”
Desta forma, incumbe ao juiz a análise de todas as circunstâncias judiciais contidas no artigo 59 do Código Penal, a fim de averiguar a respeito da necessidade e suficiência da pena, sendo esta exigível apenas quando necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.
O Princípio da Irrelevância Penal do Fato pode ser aplicado perante uma infração bagatelar imprópria, isto é, aquela que nasce relevante para o Direito Penal, mas em virtude das circunstâncias do crime e das condições subjetivas do acusado serem extremamente favoráveis (ínfimo desvalor da culpabilidade), a imposição da pena ao réu revela-se mais agressiva aos valores tutelados pela sociedade do que a própria imposição da reprimenda penal.
Ao contrário do Princípio da Insignificância, o qual diz respeito à própria tipicidade do fato, o Princípio da Irrelevância Penal do Fato é causa excludente da punição do fato. No Princípio da Irrelevância Penal do Fato o crime existe para o ordenamento jurídico- penal, contudo há a desnecessidade da pena em virtude do ínfimo desvalor da culpabilidade do agente[10]. Deve-se, pois, de acordo com as circunstâncias específicas de cada caso concreto, distribuir a cada indivíduo o que lhe cabe. O juízo de culpabilidade deve recair sobre o autor do fato delituoso, a fim de analisar se em razão do fato por ele praticado deve ou não suportar uma pena.
Segundo Rogério Greco[11] a culpabilidade cuida-se de pressuposto de aplicação da pena. Culpabilidade é juízo de censura e de reprovabilidade que recai sobre a conduta do agente, com o propósito de observar a necessidade da imposição da pena. Reunindo-se, pois, as circunstâncias do fato bem como as condições pessoais do agente favoráveis, pode-se vislumbrar no caso concreto a desnecessidade da aplicação da pena. Desta forma, conclui-se, que a culpabilidade é fundamento e limite da pena, sendo que o Princípio da Irrelevância Penal do Fato está diretamente relacionado com a ínfima culpabilidade do agente bem como com a desnecessidade da pena no caso concreto.
Indubitavelmente, a pena surge como consequência natural do cometimento de um crime. O Princípio da Irrelevância Penal do Fato objetiva evitar que recaía sobre o autor de um fato delituoso, portador de circunstâncias judiciais favoráveis, a aplicação de uma pena desproporcional e desnecessária.
A pena deve atender aos anseios da sociedade. Ela só deve ser legítima e aceita pela sociedade caso seja suficiente e necessária para tutela dos bens jurídicos indispensáveis para a manutenção da paz social. Neste sentido, Oswaldo Henrique Duek Marques[12]afirma o que se segue:
“Em sua aplicação prática, a pena necessita passar pelo crivo da racionalidade contemporânea, impedindo se torne o delinquente instrumento de sentimentos ancestrais de represália e castigo. Só assim o Direito Penal poderá cumprir a sua função preventiva e socializadora, com resultados mais produtivos para a ordem social e para o próprio transgressor.”
Não cabe ao Estado no exercício de seu poder punitivo impor penas desnecessárias, as quais não possuem potencialidade de cumprir suas funções, quais sejam: reprovação e prevenção do crime. Neste sentido, a jurisprudência gradativamente vem reconhecendo e aplicando o Princípio da Irrelevância Penal do Fato:
“PENAL E PROCESSUAL. ART. 334 DO CÓDIGO DE PENAL. DESCAMINHO. PRINCÍPIOS DA INSIGNIFICÂNCIA (ART. 20 DA LEI 10.522/2002) E DA IRRELEVÂNCIA PENAL DO FATO. APLICABILIDADE. CONDUTA ATÍPICA E DESNECESSIDADE DE PERSECUÇÃO CRIMINAL E DE PUNIÇÃO. 1. Na linha do entendimento consolidado pela colenda 4ª Seção desta Corte, quando o valor do imposto iludido for igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), nos termos do art. 20 da Lei 10.522/2002, com a redação dada pela Lei 11.033/2004, inexiste justa causa para a persecução penal pela suposta prática do crime de descaminho (art. 334 do CP), pois atípica a conduta. 2. Para aplicação do princípio da irrelevância penal do fato, imperiosa a conjugação de determinados fatores, tais como ínfima culpabilidade, perdimento dos bens em prol do fisco, primariedade do agente, dentre outros. 3. Sendo o fato típico, antijurídico e culpável mas preenchendo o acusado tais requisitos, por razões legais e de política criminal, também em face do princípio da proporcionalidade e irrelevância penal do fato, torna-se desnecessária a continuidade da persecução penal e da punição, consoante autorização expressa contida no art. 397, IV, do CPP, bem como na parte final do art. 59 do CP. (TRF4 COR 200904000235584, SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ, TRF4 – SÉTIMA TURMA, 21/10/2009)
PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CRIME DO ART. 273, § 1º-B, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PEQUENA QUANTIDADE DE MEDICAMENTO APREENDIDO. 1. Inexistindo ofensa ao bem jurídico tutelado, bem como ausente qualquer dano à saúde pública, torna-se atípica a conduta. 2. Em face do princípio da proporcionalidade e irrelevância penal do fato, torna-se desnecessária a continuidade da persecução penal e da punição. Recurso em sentido estrito improvido.
(TRF4 RSE 200870010002006, MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA, TRF4 – SÉTIMA TURMA, 04/06/2010)
PENAL E PROCESSUAL. ART. 334 DO CP. DESCAMINHO. INSIGNIFICÂNCIA. DESCABIMENTO. ART. 18, § 1º DA LEI 10522/02. CULPABILIDADE. PRINCÍPIO DA IRRELEVÂNCIA PENAL DO FATO. DESNECESSIDADE DE APLICAÇÃO DA REPRIMENDA NO CASO CONCRETO. 1. Materialidade e autoria devidamente demonstradas, uma vez que o réu introduziu em território nacional mercadorias de procedência estrangeira, desacompanhadas da documentação legal. 2. Incabível a aplicação do princípio da insignificância quando o valor dos tributos sonegados ultrapassa o parâmetro contido no artigo 18 § 1º da Lei nº 10.522/02. Precedentes do STJ. 3. Sendo a conduta típica e antijurídica e não havendo excludentes, mostra-se de rigor o reconhecimento da culpabilidade do agente. 4. Todavia, sendo favoráveis todas as circunstâncias judiciais, bem como ter sido esta a primeira e única vez que o agente se envolveu numa infração penal, além de ter respondido ao processo sem criar qualquer obstáculo, inclusive confessando expressamente o delito, por razões de política criminal e em face do princípio da proporcionalidade e da irrelevância penal do fato, excepcionalmente, torna-se desnecessária a aplicação da pena no caso concreto, conforme estatuído na parte final do artigo 59 do Código Penal”.(TRF4 ACR 200370030099216, ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO, TRF4 – OITAVA TURMA, 17/10/2007)
Do teor das jurisprudências acima expostas, pode-se afirmar que o Princípio da Irrelevância Penal do Fato implica na não aplicação de sanção penal perante crimes nos quais haja tamanha desproporcionalidade entre o mal proveniente do cometimento do delito e os consequentes efeitos socialmente danosos da aplicação da pena, de modo a torná-la contrária às suas próprias finalidades.
Ademais, vale ressaltar que o Princípio da Irrelevância Penal do Fato só será aplicado diante da inexistência de uma infração bagatelar própria, pois a esta, conforme já dito, aplica-se o Princípio da Insignificância. Neste sentido Luiz Flávio Gomes[13]:
“O princípio da irrelevância penal do fato tem como pressuposto a não existência de uma infração bagatelar própria (porque nesse caso teria incidência o princípio da insignificância). Mas se o caso era de insignificância própria e o juiz não a reconheceu, nada impede que incida a posteriori o princípio da irrelevância penal do fato. Há, na infração bagatelar imprópria, um relevante desvalor da ação assim como do resultado. O fato praticado é, por isso, em princípio, penalmente punível. Instaura-se processo contra o agente. Mas tendo em vista todas as circunstâncias do fato (concomitantes e posteriores ao delito) assim como o seu autor, pode ser que a pena se torne desnecessária.”
Pelo exposto, nota-se que os Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato são princípios de política criminal aplicáveis à infração bagatelar, mas não se confundem, sendo que cada qual tem seu campo de incidência próprio. Assim, para a infração bagatelar própria aplica-se o Princípio da Insignificância, já para a infração bagatelar imprópria aplica-se o Princípio da Irrelevância Penal do Fato. Cabe a doutrina e a jurisprudência delimitar seus campos de aplicação, a fim de evitar a aplicação equivocada de tais princípios, o que resultaria em grave insegurança jurídica.
2.2 Aspectos penais e processuais da aplicação dos Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato
De todo exposto, pode-se destacar, de forma sucinta e objetiva, visto que tais aspectos já foram trabalhados, as seguintes distinções materiais entre o Princípio da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato:
O Princípio da Insignificância não possui previsão expressa no Código Penal Brasileiro; versa sobre a teoria do delito, pois exclui a tipicidade material (o fato é formalmente típico, mas não materialmente típico); aplica-se à infração bagatelar própria, ou seja, aquela que já nasce insignificante para o Direito Penal; estrutura-se sobre o desvalor da conduta ou do resultado ou de ambos e só trabalha com critérios objetivos, não havendo aferição de critérios pessoais do agente.
Já o Princípio da Irrelevância Penal do Fato possui base legal no artigo 59 do Código Penal; versa sobre a teoria da pena, pois este princípio está diretamente relacionado com a desnecessidade da pena; o fato é formal e substancialmente típico, ou seja, constitui um fato punível; aplica-se à infração bagatelar imprópria, ou seja, aquela em que ocorre desvalor do resultado ou conduta concomitantemente com a irrelevância da culpabilidade, o que pode levar a desnecessidade da pena; análise detida da culpabilidade, levando em conta considerações pessoais e subjetivas, tais como antecedentes criminais, primariedade, motivos, reparação do dano, colaboração com a justiça, dentre outros.
Outro aspecto interessante diz respeito à atuação diferenciada do Princípio da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato perante a reincidência. Conforme entendimento majoritário consubstanciado pelos tribunais superiores, a reincidência, por si só, não impossibilita a aplicação do Princípio da Insignificância, já que não cabe a este princípio a análise de elementos subjetivos, vez que exclui o próprio fato típico. Quanto ao Princípio da Irrelevância Penal do Fato, a reincidência do agente é causa impeditiva da irrelevância penal do fato, pois este princípio leva em conta critérios subjetivos para sua aplicação.
Quanto à competência para a aplicação dos Princípios da Irrelevância Penal do Fato e da Insignificância, tal atribuição, em ambos os casos, compete ao juiz. Contudo, em momentos diferentes, visto que tais princípios têm implicações processuais distintas.
Sendo assim, a competência para a aplicação do Princípio da Irrelevância Penal do Fato cabe ao juiz quando da prolação da sentença, uma vez que compete a ele, no momento da aplicação da pena, analisar sua necessidade e suficiência. Ou seja, instaura-se contra o agente um processo e o juiz analisando as particularidades do caso concreto e o contexto probatório à luz do artigo 59 do Código Penal pode chegar à conclusão da desnecessidade da pena e absolver o sujeito[14]. Não se trata de perdão judicial extralegal, mas sim de caso de dispensa da pena, em virtude de sua desncessidade, com base no artigo 59 do Código Penal.
Neste sentido, o professor Luiz Flávio Gomes[15] afirma o que se segue:
“As circunstâncias do fato assim como as condições pessoais do agente podem induzir o juiz ao reconhecimento de uma infração bagatelar imprópria cometida por um autor merecedor do reconhecimento da desnecessidade da pena. Reunidos vários requisitos favoráveis, não há como deixar de aplicar o princípio da irrelevância penal do fato (dispensando-se a pena, tal como se faz no perdão judicial). O fundamento jurídico para isso reside no art. 59 do CP (visto que o juiz, no momento da aplicação da pena, deve aferir sua suficiência e, antes de tudo, sua necessidade).”
Quanto à competência para a aplicação do Princípio da Insignificância também compete ao juiz. Como o Princípio da Insignificância resulta na atipicidade do fato em decorrência da atipicidade material, caso o Ministério Público em sua peça acusatória não peça o arquivamento, cabe ao juiz, após resposta à acusação, absolver sumariamente o acusado em virtude de trata-se de fato atípico, conforme disposto no artigo 397 do Código de Processo Penal Brasileiro, in verbis:
“Art. 397. Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código,o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar:
I- a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fata;
II- a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade;
III- que o fato narrado evidentemente não constitui crime;
IV- extinta a punibilidade do agente. “
Confirmando este entendimento, têm-se os seguintes julgados:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. DESCAMINHO (ART. 334, CAPUT E § 1º, “D”, DO CÓDIGO PENAL). LEI 10.522/2002. VALOR DO TRIBUTO INCIDENTE SOBRE AS MERCADORIAS APREENDIDAS INFERIOR A DEZ MIL REAIS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA (ART 397, III, CPP). POSSIBILIDADE. APELAÇÃO DESPROVIDA. 1. No Direito Processual Penal a norma geral de Direito intertemporal é expressa pelo princípio tempus regit actum, previsto no art. 2º do CPP, segundo o qual “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. 2. A recente alteração do art. 397 do CPP, que se deu com a entrada em vigor da Lei nº 11.719/08, permite ao magistrado, após a resposta do acusado, a absolvição sumária do réu, quando se verificar que o fato narrado evidentemente não constitui crime (art. 397, III, do CPP). 3. Em se tratando de crime de descaminho, aplica-se o princípio da insignificância, em virtude da atipicidade, caso o tributo não recolhido seja inferior ao limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), fixado no art. 20 da Lei 10.522/02, com redação dada pela Lei 11.033/04. (Precedentes – STJ e STF). 4. In casu, o valor do tributo devido é inferior ao limite legal acima mencionado. Atipicidade da conduta em confronto com o art. 334 do Código Penal. Mantida a decisão que absolveu sumariamente o acusado. 5. Recurso não provido.
(TRF1 ACR 200638030076210, DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON QUEIROZ, TRF1 – QUARTA TURMA, 09/04/2010)
PENAL E PROCESSO. ART. 334, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. DESCAMINHO. APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.ATIPICIDADE DA CONDUTA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA QUE ABSOLVEU SUMARIAMENTE A RÉ.
1. Denúncia que narra a prática do crime definido no artigo 334, “caput”, do Código Penal. Sentença de absolvição sumária, sob o fundamento de que o fato narrado na peça acusatória seria materialmente atípico. 2. Para fins de aplicação do princípio da insignificância, no que concerne ao delito de descaminho, deve ser considerado o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), instituído pela Lei 11.033/2004, que alterou o artigo 20, da Lei 10.522/2002 (STF, HC nº 92.438-7/PR e STJ Resp 112.478-TO). 3. Valor do débito tributário inferior ao patamar legal. Ausência de habitualidade delitiva na conduta da ré. Manutenção da r.sentença que absolveu a ré por atipicidade da conduta. 4.. Apelação do MPF a que se nega provimento.
(TRF3 ACR 200860050009124, JUIZA ELIANA MARCELO, TRF3 – SEGUNDA TURMA, 09/09/2010)
PENAL. ATIVIDADE CLANDESTINA DE TELECOMUNICAÇÃO. “RÁDIO PIRATA”. ART. 183 DA LEI 9.472/97. BAIXA POTENCIALIDADE LESIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ATIPICIDADE. 1. Não se configura o crime descrito no artigo 183 da Lei 9.472/97 quando a conduta não tem potencialidade lesiva ao bem jurídico tutelado (sistema de telecomunicações), em decorrência da baixa potência do aparelho clandestino (até 25 watts). 2. Aplicação do princípio da insignificância, com a consequente absolvição sumária do réu, pela atipicidade da conduta. (TRF4 ACR 200771070044120, MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA, TRF4 – SÉTIMA TURMA, 04/06/2010)
Caso o Ministério Público ofereça denúncia em face de um crime insignificante e o juiz não absolva sumariamente o acusado, cabe a impetração de Habeas Corpus para trancamento da ação penal, face a existência de fato atípico.
Conforme posição majoritária, a autoridade policial não pode invocar o Princípio da Insignificância para deixar de instaurar inquérito policial. Tal afirmação decorre do fato da análise do caso quanto à insignificância competir ao titular da ação penal, o qual com base no inquérito elaborado terá maiores elementos para requerer o arquivamento, já que, se for caso de insignificância, resulta na atipicidade da conduta[16].
Sendo assim, caso o Ministério Público entenda que o caso trata-se de conduta insignificante deverá requerer ao juiz o arquivamento do procedimento. Aqui não se trata de hierarquia ou superioridade entre autoridade policial, ministério público e autoridade judicial, mas sim de observância as funções legalmente atribuídas a cada um deles.
É importante ressaltar que há doutrina possibilitando a aplicação do Princípio da Insignificância pela autoridade policial. Neste sentido Cássio Lazzari Prestes[17] afirma o que se segue:
“Se a insignificância do fato for patente, se de primeiro plano for verificado que se trata de um crime bagatelar, diante da atipicidade material do fato, a autoridade policial não deve instaurar o procedimento inquisitório, pois não há que se falar em infração penal a ser apurada. Ora, se o fato não lesiona de forma drástica nenhum dos interesses merecedores da tutela penal, ele, não obstante formalmente típico, será, materialmente atípico e não há o que ser apurado. Se o fato, do ponto de vista material, é visivelmente atípico, não há infração penal e então pergunta-se por qual razão deve-se instaurá-lo?
O inquérito policial pode ser definido como o procedimento policial de cunho administrativo, preparatório de eventual ação penal, que visa apurar a prática de eventual infração penal e sua autoria. Como se observa, tem por finalidade juntar elementos que comprovem a prática de um crime, bem como, de quem foi seu autor. Pois bem, se a atipicidade material do fato em razão, da sua escassa lesividade ao bem jurídico tutelado for detectada à primeira vista, ou seja, se a insignificância penal do fato for patente, a autoridade policial deve se recusar à instaurá-lo, alegando que o fato constitui crime de bagatela.”
Em que pese o entendimento exposto pelo autor, não cabe à autoridade policial a aplicação do Princípio da Insignificância. Tais argumentos não procedem, uma vez que a titularidade da ação penal não pertence à autoridade policial. Dispõe o Código de Processo Penal em seu artigo 17 que a autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito. Desta forma, mesmo que a autoridade policial esteja diante de um caso que lhe afigure tratar-se de insignificância deverá realizar o procedimento investigatório e encaminhá-lo ao Ministério Público (titular da ação penal)[18].
Neste sentido Ivan Luiz da Silva[19] afirma o seguinte:
“não pode a autoridade policial, mediante o argumento de que possui melhores condições de observar a realidade social e o efeito maléfico do processo penal, usurpar a atribuições constitucionalmente estabelecidas ao Ministério Público (persecução penal) e ao Judiciário (jurisdição).”
Vale ressaltar o entendimento de Guaracy Rebêlo[20] a este respeito:
“(…) Contudo, a possibilidade de puro e simples arquivamento do inquérito por parte da autoridade policial é perigosa e imprudente, por subtrair do Poder Judiciário a competência para exame das circunstâncias do eventual delito, inclusive no que toca a sua inexistência material. Veja-se que, mesmo quando o Ministério Público, atento à insignificância do fato, não oferece a denúncia, está necessariamente, sujeito a submeter o assunto à consideração do Juiz, por meio do pedido de arquivamento (CPP, art. 28). Não parece admissível possa o delegado de polícia, ou quem suas vezes fizer obstar idêntica submissão. O que deverá a autoridade policial fazer em casos tais é remeter o inquérito ao juízo, descrevendo o fato e suas circunstâncias, informando que deixou de adotar medidas ulteriores, a seu cargo, por entender atípica a conduta.”
Atribuir competência à autoridade policial para aplicação do Princípio da Insignificância causaria grave insegurança jurídica. Desta forma, deve a autoridade policial instaurar o inquérito policial e proceder conforme as disposições legais e, por fim, encaminhá-lo a juízo. A manifestação a respeito da insignificância deve ficar, a priori, com o Ministério Público, titular da ação penal. Contudo, é importante destacar, que nada impede que instaurado um inquérito policial em face de um fato insignificante, possa o suposto autor do fato delituoso insignificante impetrar Habeas Corpus para trancar o inquérito policial, devido o constrangimento ilegal sofrido.
Por fim, é importante ressaltar que os crime bagatelares não são sinônimos e não se confundem com as infrações de menor potencial ofensivo. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu artigo 98, inciso I, a possibilidade de criação dos Juizados Especiais Criminais com competência para o julgamento e a execução de infrações de menor potencial ofensivo. O artigo 61, da Lei 9099/95, por sua vez, prevê que infrações penais de menor potencial ofensivo são as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa[21].
Após o surgimento da lei dos Juizados Especiais Criminais parte da doutrina entendeu que os crimes bagatelares passaram a ter previsão expressa por meio desta lei. Contudo, a Lei 9099/95 e o Princípio da Insignificância aplicável aos crimes bagatelares constituem diferentes técnicas de despenalização. A existência das infrações de menor potencial ofensivo, delimitadas e disciplinadas pela Lei 9099/95, não implica na exclusão dos crimes bagatelares. Cada um tem seus pressupostos próprios, o que faz com que a existência de um não implique na supressão do outro[22].
A área de abrangência das infrações penais de menor potencial ofensivo está devidamente limitada pela Lei 9099/95, ao passo que o Princípio da Insignificância tem seu campo de incidência ampliado, visto que incide em toda e qualquer infração que atenda aos seus requisitos[23]. Desta forma, as infrações de menor potencial ofensivo devem ser disciplinadas pelas disposições da Lei 9099/95, já o Princípio da Insignificância, o qual se aplica as infrações bagatelares próprias, faz com que a infração bagatelar seja excluída do âmbito de incidência do Direito Penal, já que apesar de formalmente típica, materialmente são atípicas.
Coadunando com este entendimento, vale mencionar doutrina de Ivan Luiz da Silva[24]:
“No que concerne, portanto, à aplicação da Lei 9099/95, não há como equiparar-se as infrações de menor potencial ofensivo aos crimes de bagatela, uma vez que estes são um não-crime, ou seja, conduta penal irrelevante em face de sua ínfima lesividade. Desta sorte, é força reconhecer que a lei supramencionada não eliminou o Princípio da Insignificância em matéria penal do sistema penal brasileiro, visto que este se aplica às condutas penalmente insignificantes chamadas de crime de bagatela, enquanto a lei acima se aplica aos delitos em seu art. 61elencados.”
A jurisprudência também deixa claro o fato da infração bagatelar e da infração de menor potencial ofensivo constituírem institutos distintos. Neste sentido, observa-se o seguinte julgado:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. FUNCIONAMENTO DE EMISSORA DE RÁDIODIFUSÃO SEM AUTORIZAÇÃO LEGAL. ARTIGO 70 DA LEI Nº 4.117/62. TRANSMISSOR DE POTÊNCIA DE ATÉ 25 WATTS. REDUZIDA POTENCIALIDADE LESIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA MANTIDA. ARTIGO 397, INCISO III, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. INUTILIZAÇÃO DE SINAL AFIXADO PELA ANATEL. ARTIGO 336 DO CÓDIGO PENAL. RETOMADA DO PROCESSO NO TOCANTE AO TRANSMISSOR DE POTÊNCIA SUPERIOR A 25W. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. RITO DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS CRIMINAIS.
O exercício irregular de atividades de radiodifusão amolda-se ao tipo penal regulado artigo 70 da Lei nº 4.117/62 e não à figura delitiva regulada no artigo 183, da Lei nº 9.472/97. Não há falar em crime de radiodifusão clandestina quando a potência do transmissor for igual a 25W, sendo incapaz de causar lesão ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal (sistema de telecomunicações). A inutilização de sinal colocado pela ANATEL com o único intuito prosseguir o exercício irregular de atividades de radiodifusão configura conduta atípica nas hipóteses em que também é afastada a tipicidade da radiodifusão clandestina. A aferição de potência igual a 50W no tocante a um dos transmissores inviabiliza a aplicação do princípio da insignificância, ensejando a retomada do processo na origem mediante o procedimento sumaríssimo, por se tratar de infração de menor potencial ofensivo.”(TRF4 ACR 200771100057286, MARCELO MALUCELLI, TRF4 – OITAVA TURMA, 20/01/2010)
Portanto, o Princípio da Insignificância, aplicável às infrações bagatelares é técnica de despenalização de direito material que resulta na atipicidade material da conduta em face de sua ínfima lesividade, já a infração de menor potencial ofensivo, regida pela Lei 9099/95, consiste em técnica de despenalização regida por normas de direito processual, tais como: oralidade, informalidade, economia processual, celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade[25].
3- CONCLUSÃO
É função do Direito Penal fazer uma escala de valores juridicamente protegidos, cabendo ao Direito Penal apenas a tutela daqueles bens essenciais para a sociedade. Evidencia-se, desta maneira, que o Direito Penal não é remédio para todos os conflitos ocorridos na sociedade.
O Princípio da Irrelevância Penal do Fato, que se encontra em sede de construção doutrinária e jurisprudencial, consistente na possibilidade do juiz afastar a aplicação da pena ao verificar que sua aplicação é desnecessária, desproporcional e insuficiente, tem sido objeto de várias críticas, tais como: ausência de previsão legal, perda da segurança jurídica, indeterminação conceitual do princípio, excessivo subjetivismo dos magistrados e perda de objetividade dos julgados.
Tais críticas são naturais e pertinentes, uma vez que o Princípio da Irrelevância Penal do Fato encontra-se em fase de construção teórica e jurisprudencial. O mesmo ocorreu com o Princípio da Insignificância, o qual depois de várias discussões tornou-se amplamente aceito pela doutrina e jurisprudência.
No entanto, estas críticas não podem eliminar a validade e a crescente aplicação do Princípio da Irrelevância Penal do Fato. Este princípio é um importante mecanismo político-criminal de descriminalização, na medida em que reconhece que a aplicação da pena, em determinados casos concretos, pode ser mais maléfica ao sujeito que sua aplicação, pois que se mostra desproporcional e desnecessária.
É de se verificar que o Princípio da Insignificância é que não possui base legal para sua aplicação no ordenamento penal comum pátrio, sendo fruto da doutrina e jurisprudência. A seu turno, o Princípio da Irrelevância Penal do Fato possui fundamentação legal no artigo 59 do Código Penal, devendo o juiz analisar as circunstâncias objetivas e subjetivas que envolvem o caso concreto para verificar a respeito da necessidade e suficiência da pena.
Ademais, sabe-se que as decisões judiciais devem ser devidamente fundamentadas e motivadas, o que afasta o excesso de subjetividade do julgador, o qual deve ater-se, dentre outros, aos critérios da razoabilidade.
O Princípio da Irrelevância Penal do Fato não vislumbra a impunidade, mas sim a realização do contrapeso entre a necessidade da punição do agente transgressor da norma penal e a proporcionalidade da pena. O Estado, no exercício de seu ius puniendi não pode aplicar uma pena sem razoabilidade ou desproporcional. A aplicação de uma reprimenda penal tem consequências devastadoras na vida de um indivíduo, por tal razão a pena deve ser necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, de outra forma não se justifica a aplicação da pena.
É imprescindível que a aplicação dos Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do fato se dê de forma criteriosa e casuística, sempre tendo em vista a realidade brasileira, a fim de impedir que a intervenção estatal se dê além dos limites do razoável. Obviamente que estes princípios devem ser aplicados de forma ponderada e com observância dos demais princípios do Direito, buscando sempre a segurança jurídica.
É de relevo observar que a aplicação dos Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato não tem como escopo o abolicionismo penal e a impunidade, mas sim objetivam a correta aplicação do Direito Penal mínimo, isto é, aquele Direito voltado a uma redução dos instrumentos punitivos do Estado ao mínimo necessário e sempre associado aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo.
O Princípio da Insignificância funciona como forma de limitação da tipificação penal meramente formal e o Princípio da Irrelevância Penal do Fato busca a correta individualização da pena como medida de inteira justiça, ambos objetivando a correta incidência e aplicação do Direito Penal.
Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão.
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