Resumo: Este artigo, através de uma pesquisa doutrinária e jurisprudencial, fará a análise das características jurídicas que permeiam as multas tributárias, bem como sua quantificação em casos práticos e, nesse ponto, abordará a questão relativa ao possível caráter confiscatório que tais multas podem ganhar dependendo de sua quantificação, trabalhando o princípio constitucional do não confisco, arrematando com o posicionamento do Supremo Tribunal acerca do que seria uma multa confiscatória.
Palavras-chave: Multa. Tributária. Quantificação. Confisco.
Abstract: This article, through a doctrinal and jurisprudential research, will analyze the legal characteristics that permeate the tax fines, and as their quantification in practical cases and, at this point, will address the question regarding the possible confiscatory character that such fines may gain depending on its quantification, working the constitutional principle of non-confiscation, ending with the position of the Supreme Court on what would be a confiscatory fine.
Keywords: Tax fine. Tributary. Quantification. Confiscation.
Sumário: Introdução. 1. Disciplina das multas fiscais pela lei e pela doutrina. 2. Limites a serem observados na aplicação de multas fiscais 2.1 Princípio do não confisco. 2.2 Quantificação do confisco em relação às multas tributárias feita pela jurisprudência. 2.3 Quantificação clara e criteriosa do que venha a ser uma multa confiscatória feita pelo Supremo Tribunal Federal. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Há muito tempo tem se discutido nos tribunais a questão referente à aplicabilidade da vedação ao confisco em relação às multas fiscais, bem como tem se tentado quantificar o que seria uma multa confiscatória, sendo que tais discussões despertaram o interesse e tornaram oportuno o presente estudo.
O trabalho a seguir desenvolvido, valendo-se de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, terá por escopo a análise das multas fiscais sob a égide do princípio da vedação ao confisco, sendo que, para tanto, será verificada inicialmente a disciplina de tais multas pela legislação e doutrina.
Num segundo momento, se passará à análise da limitação às multas fiscais decorrente da vedação ao confisco, sendo feito um breve estudo sobre os principais posicionamentos doutrinários acerca da mencionada vedação, de modo a deixar claro o desiderato de tal norma.
Posteriormente, será feita uma incursão em alguns julgados proferidos pelos Tribunais Pátrios que objetivaram, de certa forma, quantificar o limite entre multa legítima e confiscatória para, ao final, arrematar com julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, onde tal limite restou fixado de forma muito clara e objetiva.
Dessa feita, o presente estudo possui nítido caráter descritivo e não tendo, de forma alguma, a pretensão de esgotar a matéria, mas sim de avivar o debate, principalmente após a referida decisão proferida pela Suprema Corte.
1. DISCIPLINA DAS MULTAS FISCAIS PELA LEI E PELA DOUTRINA
Inicialmente convém salientar que o âmbito de aplicabilidade das sanções, em nosso ordenamento jurídico, não se restringe ao direito penal, embora aí seja seu habitat natural. As sanções se fazem presentes nas mais diversas esferas do direito, sendo que no direito tributário não é diferente. As sanções, que, na área tributária, se materializam na forma de multas pecuniárias, possuem a função precípua de punição a um ato contrário ao direito que, no âmbito tributário, pode se verificar através do não pagamento do tributo (obrigação principal) ou do seu pagamento em atraso (obrigação acessória); ainda, pela prática de algum ato proibido pela lei tributária ou pela omissão quanto à prática de algum ato obrigatório.[1]
A par disso, para tratar das multas tributárias é imperiosa a análise prévia do disposto no artigo 113, §§ 1º a 3º do Código Tributário Nacional:
“Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.
§ 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.
§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.
§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.”
O que se infere da redação do dispositivo legal acima é que a obrigação tributária divide-se em principal e acessória. A principal consiste no pagamento do tributo, caracterizando-se em verdadeira obrigação de dar, ao passo que a acessória consiste na prática de atos determinados pelo fisco ou na sua abstenção, caracterizando-se como uma obrigação de fazer ou não fazer.[2]
Pode-se dizer, portanto, que a obrigação tributária principal é heterônoma, isto é, nasce a partir da ocorrência de um fato descrito na lei e independentemente da vontade do contribuinte. A obrigação acessória, por seu turno, trata-se de mera imposição de condutas positivas ou negativas previstas expressamente em lei.[3]
O estudo da obrigação tributária, seja principal ou acessória, possui alta relevância para o tema ora abordado, posto que é por conta do descumprimento de tais obrigações que são aplicadas multas fiscais. A esse respeito, importante é a separação dos ilícitos tributários de natureza patrimonial e não patrimonial, onde sendo o ilícito decorrente do descumprimento de obrigação principal, ou seja, o não pagamento do tributo, aí temos um ilícito de natureza patrimonial. De outro lado, quando o ilícito é oriundo do descumprimento de obrigação acessória, não possui caráter patrimonial, mas sim meramente formal.[4]
Sendo mais específico e, até mesmo, nomeando as multas Coêlho refere:
“As sanções tributárias mais difundidas são as multas (sanções pecuniárias). Sancionam tanto a infração tributária substancial quanto a formal. As multas que punem a quem descumpriu obrigação principal são chamadas de “moratórias” ou “de revalidação”; e as que sancionam aos que desobedecem obrigação acessória respondem pelo apelido de “formais” ou “isoladas””.[5] (Grifo do autor)
Portanto, quando há um ilícito formal à legislação tributária, as multas ou sanções não deveriam ser atreladas ao valor do tributo envolvido, mas sim possuir um valor fixo. Somente quando o ilícito envolver o descumprimento de obrigação principal é que a respectiva multa poderia ter como parâmetro ou base de cálculo o valor do tributo não recolhido.[6]
Em suma, o descumprimento de quaisquer das obrigações, seja principal ou acessória, implica no cometimento de um ato ilícito, sendo que aí reside a origem das sanções tributárias. Aliás, existem certos ilícitos tributários que violam bens jurídicos tão importantes que merecem a guarida do direito penal propriamente dito e a ele se submetem. Por outro lado, infrações menores que não merecem ser disciplinadas pelo direito penal recaem na esfera do direito administrativo e tributário, sendo que, no mais das vezes, a sanção corresponde à aplicação de multa pecuniária.[7]
Além do caráter punitivo ao cometimento de ato ilícito, as multas tributárias também possuem a função educativa/pedagógica, buscando incentivar os contribuintes a conhecer a legislação e os deveres que ela impõe para evitar a aplicação de multas.[8]
Em outras palavras, a sanção serve para desencorajar um comportamento ilícito, podendo buscar obrigar o destinatário da norma ao seu cumprimento ou puni-lo em caso de seu descumprimento.[9]
São os efeitos repressivo, intimidativo e preventivo da sanção, a partir dos quais aplica-se a sanção porque a ordem jurídica foi violada e com o intuito de que tal violação não mais ocorra.[10]
Interessante, nesse contexto, exemplificar algumas das multas previstas na legislação tributária pelo descumprimento de obrigações principal e/ou acessória, sendo que Lei n.º 9.430 de 27 de dezembro de 1996, em seu artigo 44 traz previsão para ambos os casos:
“Art. 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas:
I – de 75% (setenta e cinco por cento) sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata;
II – de 50% (cinqüenta por cento), exigida isoladamente, sobre o valor do pagamento mensal:
a) na forma do art. 8o da Lei no 7.713, de 22 de dezembro de 1988, que deixar de ser efetuado, ainda que não tenha sido apurado imposto a pagar na declaração de ajuste, no caso de pessoa física;
b) na forma do art. 2o desta Lei, que deixar de ser efetuado, ainda que tenha sido apurado prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa para a contribuição social sobre o lucro líquido, no ano-calendário correspondente, no caso de pessoa jurídica.
§ 1o O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será duplicado nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis.
§ 2o Os percentuais de multa a que se referem o inciso I do caput e o § 1o deste artigo serão aumentados de metade, nos casos de não atendimento pelo sujeito passivo, no prazo marcado, de intimação para:
I – prestar esclarecimentos;
II – apresentar os arquivos ou sistemas de que tratam os arts. 11 a 13 da Lei no 8.218, de 29 de agosto de 1991;
III – apresentar a documentação técnica de que trata o art. 38 desta Lei.
§ 3º Aplicam-se às multas de que trata este artigo as reduções previstas no art. 6º da Lei nº 8.218, de 29 de agosto de 1991, e no art. 60 da Lei nº 8.383, de 30 de dezembro de 1991.
§ 4º As disposições deste artigo aplicam-se, inclusive, aos contribuintes que derem causa a ressarcimento indevido de tributo ou contribuição decorrente de qualquer incentivo ou benefício fiscal.
§ 5o Aplica-se também, no caso de que seja comprovadamente constatado dolo ou má-fé do contribuinte, a multa de que trata o inciso I do caput sobre:
I – a parcela do imposto a restituir informado pelo contribuinte pessoa física, na Declaração de Ajuste Anual, que deixar de ser restituída por infração à legislação tributária; […]”
De outro lado, a Lei do Estado do Rio Grande do Sul n.º 6.537 de 27 de fevereiro de 1973 traz o regramento das multas tributárias por infrações à legislação estadual, sendo que tais multas, quando importem em lesão ao erário (infrações materiais), são classificadas em qualificadas, privilegiadas e básicas[11], tudo de acordo com as características da infração cometida. Os percentuais das multas podem variar entre 40% e 120%.[12]
O Tribunal de Justiça Estadual já proferiu decisão entendendo que o patamar da multa de 120% não se apresenta confiscatório, tendo em vista que as multas necessitam de certa severidade para atingir sua função de reprimir e desencorajar o comportamento contrário ao que determina a legislação estadual.
Nesse sentido foi o voto proferido pelo Desembargador Irineu Mariani no julgamento da apelação cível n.º 70061311593, conforme trecho fundamental ora transcrito:
“Enfim, para a multa não ser confiscatória, tem que se manter dentro daquilo que é razoável. Essa razoabilidade se opera dentro de um ambiente específico, ou seja, o tributário. Por isso, a multa não pode perder a força intimidativa, no sentido de compelir ou afastar o indivíduo de certos atos ou atitudes. Nesses casos, o caráter agressivo lhe é inerente. Significa isso dizer: é tolerável o próprio caráter destrutivo e agressivo quando por meio dele se objetiva coibir certos atos. Exemplo: por meio de uma taxação severa aos importados, busca-se inibir o ato de importação, a fim de proteger a indústria nacional, que no contexto é um fator extrafiscal.”[13] (Grifou nosso)
Os exemplos acima são apenas alguns dentre várias outras situações nas quais a legislação, seja federal, estadual ou municipal prevê hipóteses de aplicação de multas pecuniárias pelo descumprimento de obrigação principal ou acessória.
Nada obstante o entendimento do Tribunal de Justiça Gaúcho, nunca é demais salientar que as multas não devem objetivar restrição de direitos, como por exemplo, impedir o exercício regular de profissões, interditar estabelecimentos e ferir o direito de propriedade.[14]
Em outras palavras, essas multas, embora possuam caráter punitivo e pedagógico, conforme fixado pela Corte Estadual, não podem ser aplicadas em patamar que represente usurpação do patrimônio do contribuinte, ou seja, possuam efeito de confisco sobre esse patrimônio, sendo que tal temática é o objeto central do presente trabalho e será estudada nos tópicos seguintes.
2. LIMITES A SEREM OBSERVADOS NA APLICAÇÃO DE MULTAS FISCAIS
2.1 Princípio do não confisco
A vedação ao confisco está positivada na Constituição Federal, mais precisamente no artigo 150, IV que possui a seguinte redação: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [..] IV – utilizar tributo com efeito de confisco; […]”
Conforme introduzido no tópico anterior, embora o dispositivo constitucional faça menção a tributo, o princípio da vedação ao confisco também se aplica às multas, impostas ao contribuinte pelo descumprimento da legislação tributária, que extrapolem suas funções punitiva e intimidadora, ingressando na seara do confisco, conforme já fixado, inclusive, pela jurisprudência da Suprema Corte.[15]
Nessa toada foi o julgamento proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região na Arguição de Inconstitucionalidade na Apelação Cível n.º 2000.04.01.063415-0, onde restou fixado que a palavra tributo utilizada no texto constitucional deve ser tomada por obrigação tributária, sendo que a obrigação acessória converte-se em principal, quando do seu descumprimento e em relação à correspondente penalidade pecuniária.[16]
Evidenciado que as multas tributárias encontram limites na vedação ao confisco, necessário se faz debruçar-se, mais detidamente, sobre tão importante limitação constitucional ao poder de tributar.
Com efeito, quando o citado artigo fala em “utilizar tributo com efeito de confisco” está se referindo, em verdade, a qualquer forma de tributação que importe em restrição excessiva aos direitos fundamentais a ponto de anulá-los.[17]
No que se refere às multas, a natureza confiscatória estará presente quando inexista relação entre a penalidade e a infração correspondente ou, então, quando se fizer presente flagrante desproporcionalidade entre a gravidade da infração e a graduação da multa.[18]
Nesse sentido, visualizando a vedação ao confisco à luz da proporcionalidade, que nada mais é do que a adoção de meios suficientes e adequados para consecução de um fim, quando se institui uma multa, cujo peso supera o necessário para o atingimento de seu fim (punição e incentivo ao cumprimento da lei), então haverá flagrante violação ao princípio do não confisco.[19]
O conteúdo do princípio da vedação ao confisco, portanto, diz respeito à proibição de usurpação, travestida de tributação, do patrimônio do contribuinte, de tal modo que é vedado à legislação tributária obrigar a contribuir com o gasto público além do necessário. Tal princípio possui relação estreita com o princípio da igualdade e da capacidade contributiva, caracterizando-se como garantia fundamental e cláusula pétrea da Constituição Federal.[20]
Trata-se de tributação que invade, de forma excessiva, a propriedade privada ou que impede o exercício de atividade empresarial, ou seja, prejudica a própria fonte de custeio do Estado. A vedação ao confisco serve de proteção ao contribuinte contra abusos do Estado tendentes a violar direitos fundamentais consagrados nas grandes Cartas Políticas.[21]
Nessa linha, Menke trabalha a vedação ao não confisco tendo em vista os direitos fundamentais, referindo que o poder de tributar, necessário para mantença dos gastos públicos, não pode ser tão pesado a ponto de anular direitos fundamentais, devendo, isso sim, haver harmonia entre o dever do Estado de tributar e a promoção dos direitos fundamentais.[22]
Embora se admita que, em certa medida, direitos fundamentais cedem espaços para realização de outros fins, certo é que existe um núcleo essencial de tais direitos que não pode, em hipótese alguma, ser violado, sendo que tal núcleo diz respeito àquela parte do direito sem a qual ele deixa de existir.[23]
Por outro lado, o princípio da vedação ao confisco nos conduz a algumas indagações: o que é confisco? A partir de quando um tributo se torna confiscatório? Carraza responde esses questionamentos sustentando que confiscatório é o tributo que aniquila a riqueza tributável da pessoa, ou seja, extrapola sua capacidade contributiva. No momento em que a tributação ferir a propriedade privada, então o respectivo tributo será confiscatório.[24]
Apesar da dificuldade de delimitação do efeito confiscatório de um tributo, tendo em vista a vagueza de tal conceito, o que se depreende é que a vedação ao confisco trata-se de um norte a ser seguido pelo legislador quando da instituição ou majoração de tributos, bem como pelo operador do direito no caso concreto.[25]
O tributo, à luz da vedação à confiscatoriedade, não pode atingir as fontes geradoras de riqueza do contribuinte. A tributação, deve, isso sim, guardar equilíbrio, moderação, buscando a maior medida possível de justiça fiscal.[26] É necessário sempre ter em mente que o tributo, por não caracterizar-se em sanção a ato ilícito, não pode ter efeito tão grave quanto aquele decorrente de uma sanção.[27]
A materialização do confisco é fácil de ser percebida quando se está a tratar de pessoa física que se vê impedida de prover o seu sustento e de sua família e, ao mesmo tempo, arcar com a tributação que lhe é exigida. Para pessoas jurídicas, o confisco também pode se fazer presente a partir do momento em que a tributação passa a ser tão pesada que dificulta a própria exploração da atividade empresarial.[28]
Diante disso, a tributação deve se pautar pela razoabilidade, de maneira que não inviabilize a liberdade de exercício de atividades produtivas, sob pena de ingressar no campo da confiscatoriedade.[29]
Outra medida necessária para efetivar a vedação ao confisco é aquela que impede a tributação do mínimo vital, ou seja, os valores necessários para fazer frente às necessidades mais básicas e fundamentais como alimentação, educação, vestuário, etc. Isso se dá através de não incidências ou outros mecanismos aptos a aliviar a carga tributária.[30]
A esse respeito, fazendo uma análise da jurisprudência clássica do STF, Ávila sustenta que:
“O essencial é verificar que, em todos esses casos, o Supremo Tribunal Federal constatou que nenhuma medida estatal pode: (a) proibir o exercício de um direito fundamental, inviabilizando-o substancialmente, independentemente do seu motivo; (b) restringir em excesso o livre exercício da atividade econômica, ainda que a medida não inviabilize por completo a atividade empresarial.”[31]
Veja-se que a tributação não pode atingir os dispêndios necessários à aquisição de renda ou de patrimônio, justamente por que tais valores representam o mínimo indispensável à manutenção da dignidade da pessoa humana e sua tributação aniquila qualquer capacidade contributiva.[32]
Isso vai ao encontro do entendimento no sentido de que a tributação deve guardar relação com o poder de conservar e não de destruir, de modo que a participação dos cidadãos com o subsídio dos gastos públicos não pode significar a impossibilidade de mantença de seus gastos particulares.[33]
Na contramão disso, por exemplo, vão os chamados tributos indiretos, onde a carga tributária é suportada, ao fim e ao cabo, pelo consumidor final e que incidem sobre os produtos que compõem a cesta básica de alimentos. Portanto, quem paga o tributo é justamente aquele que menos capacidade contributiva tem para fazê-lo.[34]
É necessário, outrossim, fazer o contraponto referente aos tributos que possuem alguma função extrafiscal, isto é, buscam o atingimento de outros objetivos que não a arrecadação. Quando isso ocorre, é possível que se admita um tributo com uma carga aparentemente abusiva, ou até mesmo confiscatória, para criar ou evitar determinada situação, tudo em prol de um bem maior da coletividade, como preservação do meio ambiente.[35]
Nesse sentido e destoando da doutrina e jurisprudência majoritárias, Machado, embora refira que as multas devam guardar correspondência com a gravidade da infração praticada, entende que a vedação ao confisco não deve ser aplicada às multas fiscais, posto que tributo e multa são figuras completamente distintas, sendo que esta busca desencorajar a prática de comportamentos contrário ao direito e, por essa razão, deve ser pesada e representar verdadeiro sacrifício ao infrator, sob pena de perder todo o sentido.[36]
É importante sublinhar, também, que o sistema tributário objetiva um equilíbrio entre arrecadação e preservação de direitos fundamentais, ou seja, nem a propriedade é tão protegida a ponto de impedir qualquer tipo de tributação, nem a tributação é autorizada a ponto de aniquilar a propriedade privada.[37]
Esse equilíbrio também se refere ao valor pago a título de tributo e o retorno em serviços sociais ao cidadão, sendo que quando a tributação atinge de forma abusiva o direito de propriedade, tal equilíbrio já tão precário torna-se inexistente.[38]
De fato, a exata medida da presença ou não de efeito confiscatório será verificada a partir da análise de cada caso concreto, sempre tendo em mente os princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da função social da propriedade e dignidade da pessoa humana, sendo que, verificada a presença do referido efeito, o poder judiciário poderá ser chamado para afastar do mundo jurídico a lei que permitiu a existência de confisco.[39]
2.2 Quantificação do confisco em relação às multas tributárias feita pela jurisprudência
Para alcance do desiderato explicitado no título do presente tópico, oportuna e necessária será a incursão em julgados emblemáticos que tentaram mensurar quantitativamente o limite entre multas legítimas e multas com natureza confiscatória, o que se passa a fazer nas linhas a seguir.
Na tentativa de encontrar um parâmetro concreto para a caracterização de confisco, o Supremo Tribunal Federal já buscou aspectos históricos como, por exemplo, o texto da Constituição Federal de 1934 que possuía previsão expressa limitando o percentual aplicável a título de multa fiscal fixando em seu artigo 184, parágrafo único: “As multas de mora, por falta de pagamento de impostos ou taxas lançadas, não poderão exceder de dez por cento sobre a importância do débito”.[40]
No entanto, no mesmo julgado acima referido, a Corte Suprema salienta que a Constituição atual não possui cláusula com tal especificidade, cabendo, portanto, ao prudente arbítrio do juiz a definição do que seja ou não confiscatório. E tal juízo deve ser feito nas instâncias ordinárias, posto que envolve o conjunto fático probatório, cuja análise não cabe ao Supremo Tribunal Federal.
Na mesma linha, em outra oportunidade, o Pretório Excelso fixou que não seria possível afirmar que uma multa, fixada no patamar equivalente a 77% do montante do tributo cobrado, seria confiscatória, sendo necessário, para se chegar a tal conclusão, a análise do caso concreto, posto que do referido percentual não se sobressai clara natureza confiscatória.[41]
Valendo-se dessa prerrogativa de julgamento das questões fáticas o Desembargador Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira, em judicioso voto vencido proferido em arguição de inconstitucionalidade no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, reputou inconstitucional multa moratória fixada no patamar de 60% do valor do tributo, tendo em vista que tal patamar elevado já não possuía a justificativa de outrora, quando as multas não sofriam correção monetária, nem tampouco a incidência de juros. Diante disso, a multa moratória de 60% se apresentava confiscatória, posto que afetava até mesmo a livre concorrência, tornando inviável que empresas brasileiras disputem em pé de igualdade com empresas estrangeiras que não precisam lidar com multas tão onerosas.[42]
Inobstante o brilhante voto acima referido, prevaleceu na citada arguição de inconstitucionalidade o voto proferido pelo Desembargador Federal Néfi Cordeiro para quem a multa moratória de 60% não era confiscatória, posto que as multas precisam ser maiores que os gastos corriqueiros da atividade empresarial, tendo em vista o necessário caráter pedagógico que possuem no sentido de inibir o cometimento de infrações à legislação tributária.[43]
O que se verifica, portanto, é que não existe um consenso acerca do que seja uma multa confiscatória, existindo, isso sim, interpretações que, caso a caso, consideram ou não determinando patamar como confiscatório. Entretanto, a Suprema Corte proferiu julgamento esclarecedor sobre o tema e que talvez servirá de parâmetro para as decisões a serem proferidas a partir de então. Passemos à sua análise.
2.3 Quantificação clara e criteriosa do que venha a ser uma multa confiscatória feita pelo Supremo Tribunal Federal
O mencionado julgamento foi proferido nos autos do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n.º 727.872/RS, que contou com a relatoria do Ministro Roberto Barroso, sendo que o contribuinte buscava o reconhecimento do caráter confiscatório de multa moratória fixada no patamar de 30% sobre o valor do tributo. Eis a ementa do julgado:[44]
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRIBUTÁRIO. MULTA MORATÓRIA DE 30%. CARÁTER CONFISCATÓRIO RECONHECIDO. INTERPRETAÇÃO DO PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO À LUZ DA ESPÉCIE DE MULTA. REDUÇÃO PARA 20% NOS TERMOS DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE. 1. É possível realizar uma dosimetria do conteúdo da vedação ao confisco à luz da espécie de multa aplicada no caso concreto. 2. Considerando que as multas moratórias constituem um mero desestímulo ao adimplemento tardio da obrigação tributária, nos termos da jurisprudência da Corte, é razoável a fixação do patamar de 20% do valor da obrigação principal. 3. Agravo regimental parcialmente provido para reduzir a multa ao patamar de 20%.”
Sublinhando que o princípio do não confisco trata-se de uma cláusula aberta que necessita ser concretizada em cada caso, o Ministro Barroso refere que esse entendimento é que fez surgirem precedentes deixando de apreciar recursos extraordinários com tal temática, por conta do necessário ingresso no conteúdo fático de cada caso.[45]
Contudo, a prevalecer tal entendimento, o Supremo Tribunal Federal criaria um óbice intransponível à aplicação do princípio constitucional da vedação ao confisco justamente pela Corte responsável pela defesa da Carta Maior, o que não parece razoável, diante do que passou-se à análise do apelo extremo.
Para se dosar a aplicabilidade da vedação ao confisco, o julgador atentou para o caráter subjetivo da conduta do contribuinte, sendo que aqui vale a transcrição do trecho pertinente da decisão:
“9. Obviamente, não se está aqui a tratar de direito penal, mas de todo modo estamos no âmbito do direito sancionador. Genericamente, sempre que o antecedente de uma norma for um comportamento reprovável e o consequente uma punição, é absolutamente indispensável fazer uma análise do elemento subjetivo da conduta. Isso se torna evidente quando se verifica ser unânime o sentimento de que uma multa decorrente de um equívoco em uma declaração não pode ser quantitativamente equivalente àquela que deverá ser aplicada em desfavor de um contribuinte que emite notas fiscais falsas para locupletar-se de operações que não ocorreram.”[46] (Grifo nosso)
A partir daí foi feita uma diferenciação entre as multas punitivas e moratórias, sendo que as primeiras mereceriam reprimenda maior do que as segundas. Assim, fazendo uma incursão nas decisões proferidas pelo Pretório Excelso acerca do percentual aplicável a título de multas tributárias, sem que exista caráter confiscatório, O Ministro Barroso chegou à conclusão de que a multa de 20%, com o intuito de desencorajar a mora, estaria de bom tamanho, sobretudo pelo caráter menos gravoso da impontualidade no pagamento.[47]
Por outro lado, em relação às multas punitivas, o Ministro entendeu que a natureza pedagógica da multa deve prevalecer, tendo em vista a maior gravidade das infrações e necessidade de desestímulo de tais condutas. Dessa feita, entendeu que o percentual de 100% seria suficiente para tal desiderato, sendo que multas punitivas acima desse patamar podem ser consideradas confiscatórias.[48]
Em suma, valendo-se de critérios claros e objetivos o julgamento em questão fixou como limite, a partir do qual a penalidade se torna confiscatória, o percentual de 20% para as multas moratórias e, para multas punitivas, 100%, de tal modo que sintetizou as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal até então e, muito provavelmente, será utilizada como precedente para futuras decisões trazendo um pouco mais de segurança jurídica ao sistema tributário vigente.
Assim, através desse pequeno estudo buscou-se demonstrar a aplicabilidade da vedação ao confisco também em relação às multas fiscais, bem como o posicionamento jurisprudencial quanto à matéria, em especial, a quantificação do que venha a ser uma multa confiscatória.
CONCLUSÃO
Com o presente trabalho, através de uma pesquisa doutrinária e jurisprudencial, buscou-se evidenciar, num primeiro momento, que as multas decorrem basicamente do descumprimento de obrigações tributárias principais ou acessórias e buscam punir a transgressão, mas também estimular o contribuinte ao cumprimento da legislação tributária.
Bem assim, salientou-se que tais multas, embora possuam o caráter pedagógico e punitivo, devem ser dosadas de acordo com a razoabilidade, sendo-lhes plenamente aplicável a vedação ao confisco tributário em caso de abusos.
Salientou-se que o princípio do não confisco consagra a ideia de que o tributo e, conforme salientado no estudo em questão, também a multa fiscal, não podem atingir parcela do patrimônio do contribuinte que diga respeito ao mínimo vital para a mantença da pessoa física, sendo que, quando se tratar de pessoa jurídica, o mínimo vital equivaleria à manutenção da atividade empresarial.
Ainda, tendo em vista a vagueza que se sobressai do aludido princípio, realizou-se uma pesquisa jurisprudencial com enfoque nos julgados que buscaram quantificar o que seria uma multa confiscatória, sendo que restou verificado que os tribunais pátrios ainda não possuem um consenso quanto a isso.
Por fim, fora estudado julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, que aparentemente é o mais claro acerca da matéria existente até então, onde restou fixada a necessidade de análise da gravidade da conduta do agente para a quantificação da multa aplicável. Nessa linha, quando se tratar de infração meramente formal, como, por exemplo, o atraso na entrega de determinada declaração, a multa aplicável não poderá ultrapassar o patamar de 20% sobre o crédito tributário; ao passo que, quando a infração tiver nítido caráter evasivo, como o não recolhimento do tributo, aí então o teto para a multa será de 100% sobre o valor do crédito tributário.
Com isso, restou demonstrada a evolução doutrinária e jurisprudencial acerca da aplicabilidade da vedação ao confisco em relação às multas tributárias, bem como sua quantificação dentro de tal limite, culminando com a decisão da Suprema Corte acima referida que, muito provavelmente, servirá de parâmetro para os próximos julgados que tratarem da matéria.
Advogado. Pós-graduado em Direito e Gestão Tributária pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
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