Resumo: Este artigo apresenta uma análise contraposta ao entendimento do Supremo Tribunal Federal em aplicar retroativamente as causas de inelegibilidades presentes na Lei Complementar 135/10 a fatos anteriores a data da sua publicação nas decisões judiciais transitadas em julgado em que houve o devido cumprimento de sentença.
Palavras-Chaves: Causas de Inelegibilidade. Retroatividade da Lei. Coisa Julgada
Abstract: This article presents an analysis contrasted to the understanding of the Federal Supreme Court to apply retroactively the causes of ineligibility present in the complementary law 135/10 to facts prior to the date of their application in the judicial decisions have become final in which there was due compliance of the judgment
Key Words: Causes of ineligibility. Retroactivity of the law. Thing Judged
Sumário: 1 Introdução. 2 Dos Direitos Políticos. 2.1 Direitos Políticos Positivos. 2.2 Direitos Políticos Negativos. 2.2.1 Nacionalidade. 2.2.2 Capacidade da Pessoa e sua Relação ao Estado. 3 Coisa Julgada. 4 Da Retroatividade da Decisão de Inelegibilidade da LC 135/10. 5 Referências. 5.1 Livros. 5.2 Documentos em Meio Eletrônico. 5.3 Legislação. 5.4 Jurisprudência
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho versa sobre um olhar diferenciado do posicionamento do STF no julgamento em conjunto das ADI 4578, ADC 29 e ADC 30 em 2012 e do RE 929670 em 2017, em que a corte entendeu pela aplicação retroativa da Lei Complementar 135/10 que modificou o texto original da Lei Complementar 64/90 aumentando o prazo de inelegibilidade de três para oito anos, alcançando fatos anteriores à data da sua publicação e penalizando por mais cinco anos àqueles que já haviam cumprido o prazo de inelegibilidade de três anos, conforme decisão judicial transitado em julgado e na forma da legislação vigente à época, que era o texto original da LC 64/90.
Para tanto busca-se fazer uma análise sincrônica e diacrônica das normas de Direito, bem como, uma análise de outros bens jurídicos que devem ser protegidos pelo Estado e que em confronto com os bens jurídicos objeto da decisão da suprema corte brasileira, acabaram mitigados por esta.
2 DOS DIREITOS POLÍTICOS
Os direitos políticos estão previstos no Título II da Constituição Federal que se refere aos “Direitos e Garantias Fundamentais” e estão inseridos nos direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão, como prefere alguns doutrinadores, classificação surgida no ideal de liberdade presente na Declaração de Virgínia, elaborada no bojo da independência americana e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão elaborada durante a Revolução Francesa, ocorridas no século XVIII, ambas com a tônica preponderante à limitação do poder estatal e na valorização da liberdade individual.
Direitos Políticos são os meios pelos quais a Constituição Federal garante aos cidadãos a participação nas decisões do Estado podendo ocorrer pela escolha dos representantes; no caso do Brasil, através de eleições diretas, via de regra; denominado, exercício dos direitos políticos ativo, ou pelo ato de representação dos demais, denominado exercício dos direitos políticos passivo, os quais podem ser classificados como direitos políticos positivos e negativos.
Deve-se salientar que o exercício dos Direitos Políticos, como dito, seguem uma principiologia universal, transcendendo aquilo que é disposto no texto constitucional, pois mesmo a Constituição Originária, apesar de ter como característica “ser ilimitada”, tal preceito não coaduna mais com o sistema aplicado pela nova ordem jurídica na formação do Estado de Direito, devendo a Constituição, na sua forma originária ou derivada, seguir valores adotados em normas universais de direitos fundamentais[1], como no dizer de:
Canotilho
“Nos tempos mais recentes a reserva de constituição é abordada em sede de teoria da justiça a partir da ideia de dimensões constitucionais essenciais ( the Idea of Constitucional Essentials) . Esta “essência constitucional” é constituída pelos princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do governo e do processo político (poderes do legislativo, do executivo e do judiciário, princípio da regra maioritária) e pelos direitos a liberdade e igualdade básicos de um cidadão que as maiorias legislativas devem respeitar.”[2]
Luís Roberto Barroso
“Se a teoria democrática do poder constituinte se assenta na sua legitimidade, não há como imagina-lo como um poder ilimitado. O poder constituinte estará sempre condicionado pelos valores sociais e políticos que levaram à sua deflagração e pela ideia de Direito que traz em si. Não se trata de um poder exercido em um vácuo histórico, nem existe norma constitucional autônoma em relação a realidade. O poder constituinte, portanto, é também um poder de Direito. Ele está fora e acima do Direito posto preexistente, mas é limitado pela cosmovisão da sociedade – e pelas instituições jurídicas necessárias à sua positivação. Fora daí pode haver dominação e outorga, mas não constitucionalismo democrático. ‘[3]
Podemos citar com exemplo das preditas normas universais:
Tradado de Virginia
“Artigo 6º – As eleições dos membros que devem representar o povo nas assembleias serão livres; e todo indivíduo que demonstre interesse permanente e o consequente zelo pelo bem geral da comunidade tem direito geral ao sufrágio.”[4]
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
“Art. 6º. A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.”[5]
Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 21
“1 – Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios, públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2 – Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país.
3 – A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto”..[6]
2.1 DIREITOS POLÍTICOS POSITIVOS
A regra é o exercício do Princípio Democrático, os Direitos Políticos Positivos significam o reconhecimento pelo Estado da plena capacidade ao exercício do direito subjetivo do cidadão na participação do processo eleitoral para a formação do governo. Ampliar a participação popular nesse processo deve ser um dos objetivos do Estado de Direito e é, no dizer de Lammêgo, “jus civitatis”[7].
Quando se fala em Direitos Políticos de forma genérica é dos Direitos Políticos Positivos que está se tratando, como no dizer de:
Nathalia Masson
“Instrumento por meio do qual os indivíduos exercem sua cidadania, "direitos políticos" é expressão que traduz o conjunto de normas legais permanentes que regulamenta o direito democrático de participação do povo no Governo, diretamente ou por seus representantes. Os direitos políticos consistem, pois, na disciplina dos meios necessários ao exercício da soberania popular.”[8]
José Afonso da Silva
“Os direitos políticos positivos consistem no conjunto de normas que se asseguram o direito subjetivo de participação no processo político e nos órgãos governamentais. Eles garantem a participação do povo no poder de denominação política por meio das diversas modalidades de direito de sufrágio: direito de voto nas eleições, direito de elegibilidade (direito de ser votado), direito de voto nos plebiscitos e referendos assim como por outros direitos de participação popular, como o direito de iniciativa popular, o direito de propor ação popular e direito de organizar e participar de partidos políticos.”[9]
Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo
“O direito ao sufrágio é materializado pela capacidade de votar e de ser votado, representando, pois, a essência dos direitos políticos. O direito ao sufrágio deve ser visto sob dois aspectos: capacidade eleitoral ativa e capacidade eleitoral passiva”.[10]
2.2 DIREITOS POLÍTICOS NEGATIVOS
Constituem regras limitadoras ou impeditivas, determinadas pela Constituição ou autorizada por esta, de participação do indivíduo no processo eleitoral e consistem em perda e suspensão dos direitos políticos, assim como as causas que geram inelegibilidade, conforme orienta José Afonso da Silva
“Denominamos direitos políticos negativos àquelas determinações constitucionais que, de uma forma ou de outra, importem em privar o cidadão do direito de participação no processo político e nos órgãos governamentais. São negativos precisamente porque consistem no conjunto de regras que negam, ao cidadão, o direito de eleger, ou de ser eleito, ou de exercer atividade político-partidária ou de exercer função pública.”[11]
e podem ocorrer por questões relacionadas a:
2.2.1 Nacionalidade
A Constituição Federal veda a participação do estrangeiro no processo eleitoral (art. 14, §2, I) e a participação do brasileiro naturalizado para alguns cargos conforme o art. 12, §3.
2.2.2 Capacidade da pessoa e sua relação ao Estado
Nesse caso o impedimento para participar no processo eleitoral pode ser total (capacidade eleitoral ativa e passiva) ou parcial (capacidade eleitoral passiva) e independe da vontade, da ação, ou omissão, da pessoa; o agente se encontra em uma “condição” que faz surgir a impossibilidade do pleno exercício dos direitos políticos e que perdurará enquanto mantida a condição que a gerou.
Impedimento total: Podemos citar como exemplo os menores de 16 anos (art. 14, §1, I e II,”c” da CF ), os que estão prestando serviço militar obrigatório ( art. 14, §2 da CF) e os conscritos (art. 14, §2 da CF)
Impedimento parcial: Se refere à impossibilidade do exercício da capacidade eleitoral passiva (ius honorium) e pode ocorrer de forma absoluta (restrição para concorrer a qualquer cargo) ou relativa (restrição para concorrer a alguns cargos). Ocorre em casos de ausência de: alistamento eleitoral (art. 14, §3, III; CF), domicílio eleitoral na circunscrição (art. 14, §3, IV; CF), filiação partidária (art. 14, §3,V; CF). Não ter completado a idade mínima de trinta e cinco anos para se candidatar aos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República e Senador (art. 14, §3,VI, “a”; CF)., trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal (art. 14, §3,VI, “b”; CF) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz (art. 14, §3,VI, “c”; CF), dezoito anos para Vereador (art. 14, §3,VI, “d”; CF). Da mesma forma são inelegíveis os analfabetos (art. 14, §4, CF; Art. 1,I, “a” da LC 64/90 ), os que exercem por duas vezes consecutivas o cargo de chefe do executivo, estão inelegíveis para um terceiro mandato, assim como seus parentes também estarão inelegíveis para disputar o terceiro mandato familiar (art. 14, §§5 7, CF); os que exercem cargo de chefe do executivo estão inelegíveis para o exercício de outro cargo político caso não renunciem até seis meses antes do final do mandato, (Art. 14 §6 CF e §1 Art. 1º da LC 64/90); aqueles que exercem cargo público e não se desincompatibilizem na forma da LC 64/90.
2.2.3 Sanção
Consiste na resposta do Estado, através de seu aparelho repressor pela ocorrência de uma ação ou omissão do agente, por ter contrariado um bem juridicamente protegido pela norma, podendo gerar a suspensão dos direitos políticos e inelegibilidade. É consequência jurídica de um ato de vontade do agente, que por sua conduta deliberada descumpre a norma, nesses casos a lei comina uma punição de forma cogente. Nesse sentido assevera:
Betioli
“22.2- Dissemos que a consequência se liga intencionalmente a norma, portanto a sanção resulta de uma tomada de posição do homem, ela sobrevém como fruto da interferência de um ato volitivo”.[12]
José Floscolo da Nobrega
“A sanção e a coação são meios de garantia do cumprimento da norma jurídica. A sanção consiste, em termos gerais nas consequências da inobservância do dever jurídico; em sentido estrito, é o castigo prescrito para quem infringe a obrigação jurídica. Em regra, toda norma é garantida por sanções, a sanção geral, que é a execução forçada, no caso do não cumprimento elo destinatário, e sanções especiais (prisão, multa, incapacidade), como castigo contra o responsável pelo não cumprimento. Se o devedor não paga a dívida, o pagamento será feito à força, por execução judicial, com acréscimos de juros do processo, como punição” [13]
Orlando de Almeida Secco
“Assim, o dever jurídico é a conduta a que está sujeito o responsável por uma obrigação em decorrência do que estabelece a lei. É a obrigação imposta pela lei, cujo o cumprimento esta garante e assegura, sob pena de uma sanção”.[14]
Deve-se salientar por oportuno que não se confunde suspensão dos direitos políticos com causas de inelegibilidade, em que aquela é bem mais amplo, pois da suspensão dos direitos políticos decorrem o impedimento para o exercício da capacidade eleitoral passiva e ativa enquanto que das causas de inelegibilidade decorre, apenas, o impedimento ao exercício da capacidade eleitoral passiva, como assevera Luiz Carlos dos Santos Gonçalves.
“A perda ou suspensão dos direitos políticos tem feição mais ampla do que as inelegibilidades, mesmo quando absolutas. Uma inelegibilidade absoluta ou relativa afetará tão somente os direitos políticos passivos, a saber, o direito de concorrer às eleições e ser votado. Já a perda ou suspensão impedem totalmente o exercício dos direitos políticos, tanto faz se ativos ou passivos. Se os direitos políticos foram perdidos ou estão suspensos, não se pode filiar a partidos políticos, assinar projetos de iniciativa popular ou ajuizar ações populares.”[15]
Podemos citar como exemplo de Direitos Políticos Negativos ocasionados pela perda dos direitos políticos decorrente de uma sanção imposta pelo Estado, o cancelamento da naturalização por decisão judicial transitada em julgado do brasileiro naturalizado na forma dos arts. 12, §4, I e art. 15, I; ambos da Constituição Federal e, consequentemente, a perda dos direitos políticos.
Nos casos de suspensão do Direitos Políticos decorrentes de uma sanção, temos aqueles presentes no art. 15 da Constituição Federal, são elas:
“Art. 15 (…)
III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;
IV – recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII
V – improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º”
A Lei Complementar 135/10, que regulamenta o §9 do art. 14 da Constituição Federal, ampliou os prazos e trouxe novas causas de inelegibilidade presentes no inciso I parágrafo 1º da Lei Complementar 64/90 e estão assim distribuídas:
2.2.3.1 Falta de condição de elegibilidade constitucional: alínea “a”
2.2.3.2 Por decorrência de condenação: alíneas “d”, “e”, “h”, “j”, “l”, ‘n”, “p”, “q”
2.2.3.3 Por medida de cautelaridade: alíneas “i”, “k”
2.2.3.4 Por declaração de indignidade: alínea “f”
2.2.3.5 Sanção Administrativa: alíneas “b”, “c”, “g”, “m”
3 COISA JULGADA
A coisa julgada, que tem uma relação direta e umbilical com a segurança jurídica e que se referem a imutabilidade da decisão judicial, conceituada pela doutrina dominante como qualidade dos efeitos da prestação jurisdicional entregue pelo julgamento final da matéria posta em juízo.
O citado instituto está materializado nas seguintes normas de Direito:
Constituição Federal
“Art. 5º (…)
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”
Decreto-Lei 4.657/42 (Lei de Introdução as Normas de Direito Brasileiro)
“Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”
Lei 13.105/15 (Código de Processo Civil)
“Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”
Deve-se salientar que o citado texto constitucional está presente na redação de todas as constituições brasileiras desde Constituição do Império de 1824, com exceção da Constituição do Estado Novo de 1937.
Seguindo os preceitos adotados nas normas de Direito aludidas, assim se manifestam a notória doutrina brasileira sobro o tema
Vicente Greco
“Define-se coisa julgada como a imutabilidade dos efeitos da sentença. Conforme lapidarmente ensina Liebman, a coisa julgada não é um novo efeito da sentença, mas uma qualidade dos efeitos que naturalmente já tinha, sendo essa qualidade a imutabilidade. Nos termos do art. 467 do Código de Processo Civil, “denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”[16]
Marcus Vinicius Rios
“A coisa julgada é mencionada na Constituição Federal como um dos direitos e garantias fundamentais. O art. 5º, XXXVI, estabelece que a lei não poderá retroagir, em prejuízo dela.
Essa garantia decorre da necessidade de que as decisões judiciais não possam mais ser alteradas, a partir de um determinado ponto. Do contrário, a segurança jurídica sofreria grave ameaça. É função do Poder Judiciário solucionar os conflitos de interesse, buscando a pacificação social. Ora, se a solução pudesse ser eternamente questionada e revisada, a paz ficaria definitivamente prejudicada.
A função da coisa julgada é assegurar que os efeitos decorrentes das decisões judiciais não possam mais ser modificados, se tornem definitivos. É fenômeno diretamente associado à segurança jurídica, quando o conflito ou a controvérsia é definitivamente solucionado”[17]
Candido Rangel Dinamarco e Bruno Vasconcelos
“Das funções realizadas pelo Estado (infra, n. 39) a jurisdição é a única dotada do predicado de definitividade, caracterizado pela imunização dos efeitos os atos realizados. Os atos dos demais Poderes do Estado podem ser revistos pelos juízes no exercício da jurisdição com fundamento na ilegalidade do ato ou incompetência do agente, mas o contrário é absolutamente inadmissível.
O mais elevado grau de imunidade a futuros questionamentos é a autoridade da coisa julgada material, que se restringe às sentenças ou decisões de mérito (CPC, arts. 502-503) e ocorre no momento em que todos os recursos admissíveis no processo hajam sido esgotados ou, pela não interposição no prazo, hajam se tomado inadmissíveis (infra, n. 140). A própria Constituição Federal assegura essa autoridade (art. 5º, inc. XXXVI), primeiramente como afirmação do poder estatal, não admitindo que os atos de exercício de um poder soberano por natureza possam ser depois questionados por quem quer que seja. Tal é o primeiro significado da imutabilidade em que se traduz a autoridade da coisa julgada material. Nem as próprias partes, nem outros órgãos estatais, nem o legislador ou mesmo nenhum juiz, de qualquer grau de jurisdição, poderão rever os efeitos de uma sentença coberta pela coisa julgada com isso alterar a situação concretamente declarada ou determinada por ela (ressalvadas as excepcionais hipóteses de ação rescisória ou em que é possível questionar a coisa julgada por outros meios – infra, nn. 166 ss.). Daí ser ela uma garantia constitucional, estabelecida em beneficio da intangibilidade dos resultados do processo e consequente segurança das relações jurídicas”[18]
Conforme exposto, o cerne da questão que permeia a coisa julgada é a impossibilidade de rediscussão sobre a matéria, portanto, a coisa julgada não irradia seus efeitos apenas quanto a impossibilidade formal da predita rediscussão, mas também no campo da hermenêutica jurídica e principalmente nesta, já que é através da interpretação da norma pelo julgador que se materializa o efeito prático da relação jurídica posta em juízo. Portanto, a coisa julgada é uma proteção do Estado contra a atuação do próprio Estado no que se refere aos efeitos práticos da decisão transitada em julgado, tendo como fim precípuo a preservação de um valor jurídico que é a segurança jurídica.
Atualmente se discute na doutrina sobre a possibilidade de relativização da coisa julgada, conforme segue:
Candido Rangel Dinamarco e Bruno Vasconcelos
“Em casos de extrema gravidade, tendo a sentença ou acórdão sido o resultado de uma fraude muito grave ou transgredido direitos ou valores de elevado nível político, social ou humano, parte da doutrina e da jurisprudência aceita que a autoridade da coisa julgada seja desconsiderada, com a possibilidade de propositura de uma demanda destinada a obter um resultado diferente do resultado ditado nessa sentença ou acórdão (relativização da coisa julgada). Em outras palavras: nessas hipóteses extremamente extraordinárias os tribunais preferem dar preponderância a esses valores consagrados na Constituição, permitindo que eles neutralizem a coisa julgada e com isso ponham em segundo plano a segurança jurídica fornecida por esta (supra, n. 140)”[19]
Bento Herculano Duarte e Zulmar Duarte de Oliveira Junior
“Por derradeiro, temos que registrar o crescimento da teoria da relativização da coisa julgada. Esta teoria, em síntese, consiste na ideia de que a coisa julgada, quando ofensiva aos princípios constitucionais da dignidade, moralidade, legalidade e outros de maior valor, não se toma imutável, sendo passível de revisão, quiçá pela via da ação declaratória de nulidade insanável, que remonta ao direito romano (querella nullitaíis insanablis)”.[20]
Tal relativização visa a proteção de direitos fundamentais que podem ter sido agredidos pela sentença que transitou em julgado, posicionamento que não encontra acolhida por outros doutrinadores renomados.
Portanto, a discussão em torno da relativização da coisa julgada é no sentido de proteger direitos daqueles que foram prejudicados pela decisão que transitou em julgado e não para agravar a decisão que transitou em julgado.
4 DA RETROATIVIDADE DA DECISÃO DE INELEGIBILIDADE DA LC 135/10
A Lei Complementar 135 foi promulgada no dia 04 de julho de 2010 e deu nova redação à Lei Complementar 64/90 aumentando o período de inelegibilidade de três para oito anos e criando novas causas de inelegibilidade, “teoricamente” não devendo ser aplicada às eleições que se realizaram naquele ano em razão do Princípio da Anualidade Eleitoral expressa no art. 16 da Constituição Federal.
Essa lei foi matéria de controle de constitucionalidade no ano seguinte, em que a Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) propôs a ADI 4578 questionando o dispositivo da Lei da Ficha Limpa que torna inelegível por oito anos quem for excluído do exercício da profissão, por decisão do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, presente na alínea “m”; o PSB e a OAB, defendendo a constitucionalidade da referida lei nas em ações autônomas ADC 29 e ADC 30, respectivamente, e requerendo a aplicação da mesma a fatos anteriores a promulgação da referida lei, alegando, em apertada síntese, que a Constituição Federal em seu §9 do art. 14, autorizaria tal retroatividade para aplicação da lei já que o objetivo dos dispositivo constitucional em comento é “proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato” entendendo os autores das demandas que se o próprio texto constitucional está afirmando que se deve considerar a vida pregressa do candidato, estaria “autorizando” a lei infraconstitucional a alcançar fatos do passado do candidato para torna-lo inelegível; que a inelegibilidade não é pena e portanto não está se atribuindo uma punição, pois as sanções previstas na Lei da Ficha Limpa são de natureza eleitoral, afirmando, ainda a OAB na referida ADC, que “O regramento, neste caso, é obviamente diferente, pois visa a proteger outro valor constitucional: a moralidade administrativa”.
Ao tratarmos do presente tema não podemos deixar de citar o momento político e histórico da elaboração da lei em comento.
A Lei 135/10 tem origem em um projeto de lei de iniciativa popular que se iniciou em 2007 com o Movimento de Combate a Corrupção Eleitoral (MCCE) que decidiu deflagrar a campanha “Ficha Limpa” com a coleta de assinatura iniciada em 2008, houve uma ampla mobilização nacional, ao final recolhendo mais de 1,6 milhões de assinaturas, superando a quantidade necessária para a apresentação do projeto de lei. Dos 513 deputados 390 participaram da sessão que aprovou o texto base do projeto “Ficha Limpa”.
Com o afã social no citado contexto histórico pela moralização da política com o objetivo de banir qualquer candidato que tivesse algum fato duvidoso quando as suas condições morais e de probidade para o exercício da função, foi promovido uma verdadeira “caça às bruxas” atropelando várias outras normas de Direito em nome dessa dita “moralização da política” havendo uma verdadeira “execração pública” àquele que propusesse algum tipo de discussão sobre valores jurídicos que estavam envolvidos nas questões relacionadas à Lei da Ficha Limpa e uma delas é a questão da retroatividade da inelegibilidade para fatos ocorridos no passado.
Essa questão foi muito impactante para os operadores do Direito que militavam na seara eleitoral; como explicar que uma pessoa que havia sido declarado inelegível, sobre a égide do texto original da Lei Complementar 64/90, por três anos, havendo o trânsito em julgado da decisão que o tornou inelegível, já tendo cumprido o prazo de inelegibilidade de três anos de acordo com a lei vigente à época dos fatos, sobrevindo a posteriori um entendimento do STF afirmando que “falta cumprir mais cinco anos de inelegibilidade de acordo com a nova redação LC 64/90 dada pela LC 135/10”?
Por óbvio cai por terra tudo o que esses operadores do Direito haviam aprendido sobre: coisa julgada, segurança jurídica, interpretação sistemática das regras de Direito e sem precedentes que amparasse tal pretensão jurídica.
Como exaustivamente exposto no presente trabalho os Direitos Políticos compõe a categoria dos Direitos Fundamentais e que representam uma conquista também do Brasil, mas, principalmente, universal de proteção às decisões rompantes daquele que tem o Poder de Estado e que decidem ao arbítrio das conveniências momentâneas, sem a atenção devida para as regras pré-fixadas ou uma atenção mas apurada para outros valores jurídicos que de igual forma devem ser protegidos.
Conforme visto, ao se fazer uma análise sincrônica e diacrônica das normas jurídicas para o caso, não se percebe uma fundamentação jurídica acurada de modo a que possa justificar tal decisão de retroatividade in pejus, mas ad argumentandum tantum, vamos trazer a lume os argumentos justificadores para a aplicação retroativa da inelegibilidade nas ADCs 29 e 30.
Quanto ao aludido §9 do art. 14 da Constituição Federal, em que aqui não se discute a legitimidade das normas presentes na Lei Complementar 135/10 como regulamentadoras das normas gerais constantes no predito dispositivo constitucional, mas apenas, quanto à real dimensão da expressão “vida pregressa do candidato” do aludido texto. É, também, do texto constitucional as expressões “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art, 5º, XXXVI ), “(….) constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana” (art. 1º), “ ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II) “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (Art. 5º, XL) “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (Art. 5º, LVII). “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência” (Art. 16). Nesse caso, temos um conflito aparente de norma constitucional.
Ao fazermos uma análise §9 do art. 14 da Constituição Federal quanto ao texto “vida pregressa do candidato”, em confronto com as demais normas explicitadas, podemos partir da seguinte premissa: quando se entende que a vida pregressa do candidato deve ser motivo de causa de inelegibilidade, faz-se uma ilação de que a proteção à moralidade e à probidade se dá pela retroatividade da lei para alcançar fatos do passado; deve-se verificar que a predita norma constitucional é de eficácia limitada, sendo regulamentada pela Lei Complementar135/10, mas esta lei afirma justamente o contrário em seu art. 5º com a seguinte redação: “a lei entrará em vigor na data sua publicação”, enquanto a norma do art. 5º, XXXVI do texto constitucional é norma de eficácia plena.
Quanto à questão suscitada de que a inelegibilidade não é pena, portanto, não estaria encoberta sob o manto do art. 5º, II da Constituição Federal que expressa o Princípio da Irretroatividade da Lei Penal. Devemos observar, por oportuno, que a grande incidência de causas de inelegibilidade impostas pelo Estado, constante da referida Lei Complementar, decorrem de transgressão à norma com grau baixo de ofensa aos valores tutelados, por isso, são sanções de natureza civil em matéria eleitoral, por essa razão, apresentam um caráter punitivo, embora em alguns casos de forma assessória.
Quando se aplica uma sanção civil e dá a ela efeitos retroativos alcançando fatos do passado que se submetem a uma lei mais benéfica à época da ocorrência dos fatos, estaria se aplicando a uma sanção civil-eleitoral encargo mais gravoso do que aquele aplicado no campo penal que é o ultimo ratio, isto é, o campo onde age a mão mais forte do Estado e que deve ser aplicado somente nos casos de maior gravidade e mesmo nesses casos de maior gravidade encampados pela matéria penal só se admite a retroatividade da lei se for para beneficiar o réu, nunca para prejudicar.
Como no dizer de Ricardo Antônio
“Se considerarmos o Direito Penal brasileiro de meados do século XX, veremos que ele, à maneira clássica, apresentava como características ser tutelar, fragmentário e de intervenção mínima.
Era tutelar porque visava à proteção dos bens jurídicos fundamentais da sociedade. Não o fazia, entretanto, de maneira absoluta: somente os bens jurídicos considerados mais relevantes eram protegidos pela lei penal. Era fragmentário porque não previa todas as atitudes potencialmente ofensivas desses bens jurídicos fundamentais, mas somente as de gravidade maior. Por isso mesmo, intervinha minimamente, tão só de modo subsidiário e como ultima ratio, pois se entendia que era atribuição de outras disciplinas legais tutelar direta e imediatamente os valores maiores da convivência social. Somente quando os mecanismos normais de controle social tinham falhado no exercício dessa tutela, cabia ao Direito Penal, supletivamente, restabelecer o equilíbrio.”[21]
Paulo César Busato
“Na distribuição do escalonamento de gravidade e proporcionalidade, as normas de Direito penal ocupam o papel de ultima ratio, simplesmente porque sua cogência supõe o emprego das consequências mais interventivas e violentas na vida das pessoas dentre todos os mecanismos de controle”.[22]
Da mesma forma, não seria crível aplicar interpretações extensivas contra legem de modo a impedir a participação no processo democrático de pessoas que já cumpriram sua pena, sob o argumento da proteção à moralidade e à probidade administrativa para o exercício do mandato, pois entre aquele e este existe um filtro purificador que é o exercício do sufrágio pelo povo, verdadeiro legitimado para análise das questões de cunho valorativo como o conceito de “vida pregressa”, conforme entende Djalma Pinto.
“A legalidade ou autoridade de qualquer governo somente pode ser extraída da vontade popular. Fora dela haverá apenas forma indigente de exteriorização do poder. É total despreparo para a conveniência com a democracia a acarretar um inevitável atraso em qualquer nação, pela incapacidade de compreender a essência da soberania popular.”[23]
Quando a Justiça Eleitoral assim age, se torna um participante ativo no processo eleitoral, limitando a possibilidade de escolha dos Agentes Políticos pelo povo, mitigando, por conseguinte, o processo democrático.
Tal posicionamento denota um intenso ativismo judicial, conforme os dizeres do Ministro Luís Roberto Barroso
“Portanto, a jurisdição constitucional bem exercida é antes uma garantia para a democracia do que um risco. Impõe-se, todavia, uma observação final. A importância da Constituição – e do Judiciário como seu intérprete maior – não pode suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo. A Constituição não pode ser ubíqua. Observados os valores e fins constitucionais, cabe à lei, votada pelo parlamento e sancionada pelo Presidente, fazer as escolhas entre as diferentes visões alternativas que caracterizam as sociedades pluralistas. Por essa razão, o STF deve ser deferente para com as deliberações do Congresso. Com exceção do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em relação a tudo mais os protagonista da vida política devem ser os que têm votos. Juízes e tribunais não podem presumir demais de si próprios – como ninguém deve, aliás, nessa vida – impondo suas escolhas, suas preferências, sua vontade. Só atuam, legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões, com base na Constituição”.[24]
No dia 16 de fevereiro de 2012 o STF concluiu o julgamento conjunto da ADC 29, ADC 30 e ADI 4578 em que foi analisada toda a matéria constante da Lei complementar 135/10. Quanto à possibilidade de retroatividade desta para alcançar fatos do passado do candidato para torna-lo inelegível, votaram a favor os ministros Dias Toffoli, Joaquim Barbosa, Luiz Fux (relator), Carmem Lúcia, Ayres Brito, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e contra a retroatividade os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Melo, Cesar Peluso.
No dia 04 de outubro de 2017 a questão da aplicação retroativa da Lei da Ficha Limpa voltou a ser rediscutida no plenário do STF, dessa vez no Recurso Extraordinário 929670, contra Acórdão do Tribunal Superior Eleitoral em que versa sobre a aplicação retroativa da alínea “d” do inciso I do art. 1º da Lei Complementar 64/90. O referido recurso foi julgado prejudicado, mas manteve-se a discussão da questão pela corte por ter sido recebida com Repercussão Geral, tendo como relator o Ministro Ricardo Lewandowski que votou pelo não cabimento da aplicação retroativa da sanção constante na aludida alínea “d” alegando ofensa às garantias constitucionais da coisa julgada e da irretroatividade da lei mais grave; o Ministro Luiz Fux abriu a divergência entendendo pela aplicação retroativa da alínea “d” conforme o entendimento adotado pelo STF no julgamento em conjunto da ADC 29, ADC 30 e ADI 4578. Por maioria de seis votos a cinco, o tribunal assentou a aplicabilidade da retroatividade da alínea “d” do inciso I do art. 1º da Lei Complementar 64/90 na redação dada pela Lei Complementar 135/2010, a fatos anteriores à publicação desta lei, seguindo o voto que abriu a divergência do Ministro Luiz Fux, onde ficaram vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Marco Aurélio e Celso de Mello.
Deve-se salientar que a presente discussão encontra-se desprovida de efeitos práticos, já que o prazo de oito anos de inelegibilidade aplicado na Lei 135/10 termina em 2018 para fatos ocorridos nas eleições de 2010, já que estas ocorreram no dia 03 de outubro e as eleições de 2018 ocorrerão no dia 07 de outubro, isto é, todos aqueles que foram considerados inelegíveis, na forma da LC135/10, pela Justiça Eleitoral nas eleições de 2010, poderão ser candidatos nas eleições de 2018.
Pelo aludido, o Projeto de Lei Complementar de autoria do Deputado Federal Nélson Marquezelli – PTB/SP que tramita na Câmara Federal e que versa sobre a emenda à Lei Complementar 64/90 que almeja a inserção do art. 22-A na referida lei com a seguinte redação:
“Art. 22-A. As alterações das hipóteses de inelegibilidade e de seus respectivos prazos de cessação previstos nesta Lei, inclusive as inseridas pela Lei Complementar nº 135, de 2010, não incidem sobre as condenações da Justiça Eleitoral que tenham fixado o prazo do regime anterior””. [25]
já está natimorto, mas fica aqui uma sugestão lege ferenda: que seja incluída no Decreto-Lei nº 4.657/42 (LINDB) o texto no qual afirma que “as normas jurídicas devem ser aplicadas prospectivamente após a data da sua publicação”. O que a nosso sentir está devidamente expresso em outros diplomas normativos, mas para alguns parece-nos não tão evidente.
Graduado em Letras pela Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA e Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA. Graduado em Direito pela Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA e Especialista em Direito em Administração Pública pela Universidade do Sul de Santa Catarina-UNISUL. Advogado
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