Aposentadoria de servidores públicos municipais ligados ao RGPS e a extinção do vínculo estatutário

Resumo: O artigo se presta a analisar a legalidade ou não de normas estatutárias municiais que prescrevem que a aposentadoria do servidor público no âmbito do RGPS é causa de vacância do cargo público extinguindo-se por consequência o vínculo estatutário.

Sumário: 1. Introdução. 1.1 Considerações iniciais. 1.2 O princípio da legalidade. 1.3 A competência legislativa exclusiva do Município. 1.4 A orientação da nota técnica n 03/2013 do Ministério da Previdência Social. 2. Conclusão.

1. Introdução

O artigo se presta a analisar a legalidade, ou não, de normas estatutárias municiais que prescrevem que a aposentadoria do servidor público, no âmbito do RGPS, é causa de vacância do cargo público, extinguindo-se, por consequência, o vínculo estatutário.

1.1 Considerações iniciais

A Constituição Federal de 1988 previu, expressamente, a existência de dois regimes de previdência social, a saber: o regime geral (RGPS), de aplicação compulsória a todos aqueles que exercem atividade remunerada, e o regime próprio, aplicado aos servidores públicos de cada unidade federativa (União, Estados e Municípios).

O RGPS é atualmente gerenciado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e é disciplinado, do ponto vista jurídico, pela combinação das leis 8.213/91, que traça o plano de benefícios ofertados, 8.212/91, que cuida das regras gerais acerca do custeio da previdência, com o decreto 3.048/91, responsável pela normatização específica de todo o regime geral previdenciário.

O RPPS, por sua vez, é de criação meramente facultativa por parte dos entes federados. Vale dizer: os Estados e Municípios não são obrigados a criar um regime próprio e específico de previdência social para os seus servidores públicos. Ocorre que, se não o fizerem, automaticamente todo o seu quadro funcional será obrigatoriamente inscrito e filiado ao RGPS, pois o direito à previdência social é juridicamente qualificado como de indisponibilidade absoluta, de modo que o exercício laboral remunerado é fato gerador inafastável e irresistível da inscrição em um determinado regime de previdência.

No entanto, ainda que os servidores públicos de determinada esfera federativa se filiem unicamente ao RGPS, é certo que as regras constitucionais que regulamentam os direitos básicos dos agentes públicos, notadamente veiculadas entre os artigos 37 a 42 da Constituição Federal, devem ser observadas, no limite da possibilidade jurídica e fática.

Portanto, os servidores públicos inscritos no RGPS são, a bem da verdade, disciplinados por uma combinação, por vezes conflituosa, entre as normas gerais da previdência geral (leis nos. 8.213/91, 8.212/91 e Decreto 3048/91) e as normas constitucionais reguladoras do funcionalismo público nacional.

Na hipótese abordada pelo artigo, está-se diante de Município que não possui um regime próprio de previdência social, de modo que os seus servidores públicos, ao serem empossados, serão automaticamente inscritos e filiados junto ao INSS, oportunidade em que passarão a integrar o quadro de segurados obrigatórios do RGPS.

1.2 O princípio da legalidade

Não é demais lembrar que o princípio da legalidade assume posição singular no direito administrativo brasileiro. E isso porque, se ao particular é dado fazer tudo o que a lei não proíbe, ao administrador só é lícita a atuação autorizada por lei.

Afinal, tendo em vista que o objetivo maior da atuação administrativa é a satisfação mais ampla possível do interesse público, nada mais adequado que se franqueie ao titular dessas pretensões, o povo, por meio de seus representantes, a possibilidade de traçar o itinerário a ser perseguido pelos seus próprios administradores.

Pois bem.

No caso em análise, não podemos perder de vista que o legislador municipal, como regra, já prevê que a aposentadoria do servidor público é fato gerador da vacância do cargo por ele ocupado. Em outras palavras: a aposentadoria encerra o vínculo administrativo-funcional existente entre a municipalidade e seu servidor estatutário.

Portanto, do ponto de vista do princípio da legalidade, a resposta é pronta e óbvia: a aposentadoria gera a vacância do cargo, logo, o servidor aposentado não pode permanecer laborando em âmbito municipal.

Em assim sendo, admitir que o servidor aposentado permaneça em atividade é fraudar a vontade do parlamento municipal, e, em última instância, do próprio povo, que confiou aos seus representantes a tarefa de legislar, com exclusividade e supremacia, sobre os interesses locais.

Vale dizer: autorizar a permanência de servidores aposentados contraria a regulamentação legal conferida à matéria, o que compromete a integridade e o grau de confiabilidade necessários à preservação da segurança nas leis municipais.

Não se desconhece a possibilidade de não se aplicar determinadas leis, em certas circunstâncias. No entanto, também não se pode negar que as leis, para o bem do sistema jurídico, são presumidamente válidas e constitucionais, de modo que cabe àquele que as questiona o pesado ônus argumentativo de justificar o seu afastamento.

Desse modo, para o bem ou para o mal, o Poder Legislativo municipal, como regra, já se posiciona sobre a matéria, decidindo, dentro de sua margem de discrição, que o interesse público é atendido de maneira mais ampla e satisfatória quando os servidores públicos aposentados se desvinculam do cargo então ocupado, oportunizando, com isso, a renovação do quadro de pessoal do funcionalismo público municipal.

Entendimento em contrário, ao menos no dia de hoje, é completamente ilegal e, bem por isso, inadmissível, ao menos no âmbito de uma administração pública que leva as suas leis a sério.

1.3 A competência legislativa exclusiva do Município

O artigo 30, I, da Constituição Federal, atribui aos Municípios a competência exclusiva para legislar sobre assuntos de interesse local, desde que, obviamente, sejam respeitadas as normas gerais e regionais editadas, respectivamente, pela União e pelos Estados.

Embora não se saiba, ao certo, qual é a amplitude e abrangência daquilo que se considera como “interesse local”, há convergência, ao menos, quanto ao seguinte ponto: está inserido nesse conceito a normatização dos servidores públicos municipais.

Não fosse assim, a Constituição Federal não teria outorgado às municipalidades o poder de criarem, dentro de suas respectivas circunscrições, regimes próprios de previdência social aos seus servidores públicos.

Além disso, a atuação dos servidores públicos municipais está em adstrita aos contornos geográficos e legais do próprio ente municipal.

Por fim, mas não menos importante, não se vislumbra qualquer interesse nacional ou regional quanto às particularidades do funcionalismo municipal, que, inclusive, é integralmente selecionado e remunerado pelo Município.

Em resumo: o Município detém competência exclusiva para legislar sobre o seu próprio funcionalismo público, observadas as diretrizes gerais já fixadas.

No caso em questão, não é difícil perceber, portanto, que o Município, ao editar norma prevendo a aposentadoria como hipótese de vacância do cargo, art. 58, não transborda de sua competência legislativa prevista no art. 30, I, da Constituição Federal.

Para tanto, basta analisarmos o texto constitucional (artigos 37 a 42) para percebermos que a Constituição Federal não tratou do tema, justamente por o considerar como sendo de interesse local, logo, sujeito à discrição municipal.

Em outras palavras: a Constituição Federal, objetivando harmonizar o funcionalismo público em âmbito nacional, traçou regras gerais sobre a matéria, especificando os pontos que considera essenciais e indispensáveis ao funcionalismo público, regras essas de observância compulsória pelos demais entes federados.

Com efeito, se o Constituinte, originário ou decorrente, entendesse que, necessariamente, a aposentadoria não extingue o vínculo estatutário, ele teria expressado esse entendimento no próprio texto constitucional, exatamente como o fez em relação aos temas que elegeu como sendo de maior relevância.

No entanto, a Constituição Federal, além de não tocar no assunto, outorgou ao Município o poder de legislar, supletivamente (art. 30, II), sobre os assuntos de seu interesse, desde que não contrarie as regras gerais já delineadas.

Diante desse cenário, é possível concluir que a competência legislativa municipal assume duplo aspecto, pois é vinculada em alguns casos, mas inteiramente aberta em outros tantos.

Assim, por exemplo, não poderia o legislador municipal alterar a idade para a aposentadoria compulsória, ou, ainda, criar novas hipóteses de acumulação lícita de cargos públicos, pois essas matérias, ao serem inseridas na Constituição Federal, foram entrincheiradas e retiradas da margem de escolha dos parlamentos estaduais e municipais.

Por outro lado, quando o legislador municipal decide que a aposentadoria de seus servidores provoca a vacância do cargo, ele não transgride nenhuma das normas gerais estabelecidas pela Constituição Federal nem suprime direitos fundamentais de seus servidores.

Logo, ele atua dentro da margem de discricionariedade que é inerente ao exercício da atividade legiferante. Afinal, não se pode pretender vincular o Poder Legislativo em relação a todos os pontos e aspectos, especialmente quando pertinentes ao interesse local, sob pena de comprometimento do modelo federativo encampado pela nossa Constituição.

Indo além, se analisarmos os estatutos de outros entes, facilmente perceberemos que é comum a previsão no sentido de que a aposentadoria é causa de vacância do cargo público (ex. art. 33, VII, estatuto dos servidores federais – lei 8112/90).

Não se desconhece o fato de que, recentemente, os Tribunais Superiores afastaram da CLT a regra segundo a qual a aposentadoria extingue o contrato trabalhista, posição sedimentada pela OJ 361 do TST, assim redigida:

“A aposentadoria espontânea não é causa de extinção do contrato de trabalho se o empregado permanece prestando serviços ao empregador após a jubilação. Assim, por ocasião da sua dispensa imotivada, o empregado tem direito à multa de 40% do FGTS sobre a totalidade dos depósitos efetuados no curso do pacto laboral.”

Todavia, o precedente não se aplica às relações estatutárias estabelecidas entre os servidores públicos e o Poder Público municipal.

Inicialmente, convém destacar que a CLT direciona a relação trabalhista de natureza contratual, ao passo que a relação funcional estabelecida entre o Poder Público e seus servidores é de índole estatutária.

A observação, embora óbvia, é realmente necessária. É que é da essência do estatuto justamente a possibilidade de sua regulamentação ser feita pelo ente federado. A idéia de se conceber o estatuto como fonte de direitos e deveres funcionais é resultado, justamente, da necessidade de se apartar do modelo trabalhista nacional (CLT), cuja competência legislativa é da União.

Ou seja, os estatutos foram criados com o exato propósito de permitir que os entes regionais (Estados) e locais (Municípios) pudessem regular e regulamentar os seus funcionalismos da maneira que entenderem mais adequado à satisfação do interesse público, de modo a não se vincularem às prescrições celetistas, pois, no âmbito do serviço público municipal, são outras as variáveis envolvidas.

É por isso que decisões relativas à CLT não podem ser estendidas ao funcionalismo público, pois isso desvirtuaria a lógica de necessário apartamento entre as relações contratuais e as relações estatutárias.

No âmbito privado, talvez realmente não faça muito sentido que o legislador, em abstrato, estabeleça a aposentadoria como causa de extinção do contrato de trabalho. Esse dirigismo contratual, fruto de um paternalismo exacerbado, é provavelmente incompatível com a dinamicidade natural das relações privadas, cuja ótica é essencialmente orientada pela busca do desenvolvimento econômico e do lucro, tanto para o empregador (pode ser financeiramente mais interessante permanecer com um profissional já experiente e treinado) como para o empregado (é financeiramente mais interessante receber a remuneração e também a aposentadoria).

Por outro lado, esse mesmo raciocínio não necessariamente é válido nas relações que envolvem o Poder Público, pois, nesse caso, surgem outras tantas variáveis, tais como a eficiência do serviço público, a moralidade, a supremacia do interesse público, a legalidade, dentre outras.

Desse ponto de vista, talvez seja um desserviço à eficiência do serviço público a manutenção em atividade de servidores públicos já aposentados, que provavelmente se interessam pela atividade por motivos exclusivamente pecuniários. Soma-se a isso o fato de que, ao contrário do que ocorre no serviço privado, no qual o empregado permanece com a mesma disposição, pois sabe que, do contrário, poderá ser demitido a todo tempo, sabemos que não é essa a realidade no âmbito do funcionalismo público.

Além disso, e agora fazendo uma análise consequecialista da decisão, a admissão dessa permanência acarretará em inevitável envelhecimento do funcionalismo municipal, o que não necessariamente é saudável para o interesse público, pois se sabe que a renovação de idéias e a oxigenização por outras cosmovisões são essenciais para o amadurecimento institucional de qualquer espaço de trabalho, não sendo diferente no funcionalismo público.

Até se poderia, sem razão, argumentar que a opção feita pelo legislador municipal pode ser invalidada pelo Poder Judiciário, na medida em que suprime o direito fundamental à previdência do servidor público.

Todavia, não procede o argumento, pois, como fica claro, o Município não obriga que o servidor se aposente. Na verdade, é possível que o servidor permaneça em atividade até os 70 anos de idade, sem qualquer tipo de embaraço, pois esse é um direito seu. Por outro lado, não é menos verdade que a vacância do cargo com a aposentadoria em nada compromete o direito à previdência, pois a rigor, a premissa de que se parte é justamente que o servidor já tenha se aposentado.

Portanto, o direito à previdência permanece íntegro e válido, sendo certo que não há, do ponto de vista constitucional, nenhum direito fundamental à previdência concomitante com o vínculo laboral.

Insista-se: o Município não obriga nem incentiva a aposentadoria de nenhum servidor, mas apenas evita criar incentivo para que os servidores permaneçam em atividade, depois de tanto tempo, com o objetivo exclusivo de ganhar mais dinheiro, impedindo, com isso, a necessária renovação do quadro de pessoal.

O objetivo é apenas evitar que se crie um estímulo incompatível e contraproducente ao interesse público local e ao espírito que deve permear a prestação de serviços ao público. Vale dizer: o legislador municipal entendeu que as pessoas devem permanecer em atividade por que se interessam pelo serviço público, e não porque simplesmente desejam ganhar mais. Logo, ao completar os requisitos para se aposentar, o servidor tem a opção de se aposentar ou permanecer em atividade. A escolha, livre, é do servidor.

Essa opção do legislador municipal, evidentemente válida, porque não proibida pela Constituição Federal, não pode ser invalidada ou substituída por outra de preferência do Poder Judiciário, que não detém qualquer legitimidade democrática para decidir qual é a melhor escolha aos interesses locais, dentre todas as válidas e possíveis, até porque, no caso em questão, não há qualquer comprometimento a direito fundamental do servidor, que permanece podendo trabalhar até os 70 anos e que mantém intacto o seu direito à previdência, o que torna inviável a atuação jurisdicional.

A questão, portanto, se resolve sob uma perspectiva honesta do sistema do federado brasileiro. O Poder Legislativo municipal até tinha a opção de permitir a permanência do servidor estatutário aposentado, pois não incide, aqui, o óbice do art. 37, §10, CF, pois o Município em questão não possui RPPS.

Todavia, entendeu por bem a Câmara Municipal optar pela vacância do cargo com a aposentadoria, o que não afronta o texto constitucional nem compromete o exercício de qualquer direito fundamental do servidor. Logo, a postura correta é de deferência à escolha feita pelo Poder Legislativo, que não exorbitou de suas atribuições e, ponderando os interesses em conflito, chegou a essa conclusão.

1.4 A orientação da nota técnica nº 03/2013 do Ministério da Previdência Social

É comum o Ministério da Previdência Social editar notas técnicas para externar a sua posição sobre determinados assuntos controversos.

Quanto ao caso em análise, o MPS publicou a nota técnica nº 03/2013, que confirma o entendimento apresentado no presente parecer, conforme transcreve-se:

“A Administração Pública Municipal pode reconhecer a necessidade de desligar do seu quadro de pessoal o servidor que se aposentou pelo Regime Geral de Previdência Social – RGPS e, não obstante, permaneceu em atividade. 92. Mas não convém à municipalidade tomar essa decisão sem primeiro distinguir entre o servidor público municipal estatutário e o celetista; além disso, é preciso diferençar a aposentadoria concedida pelo INSS em razão da mesma atividade no serviço público ou de outra atividade. 93. O primeiro servidor possui um vínculo de natureza institucional, cuja relação estatutária, de ordinário, extingue-se pela aposentadoria, que provoca a situação de vacância do cargo anteriormente titularizado. 94. E isso ocorre independentemente de o servidor estar amparado por regime previdenciário próprio ou pelo Regime Geral, porque não é consentâneo com os princípios jurídicos da Administração Pública brasileira permitir que o servidor estatutário adquira, com a aposentadoria, duplo status funcional: ativo e inativo em relação ao mesmo cargo público. 95. Trata-se de ponto assentado na Orientação Normativa no 2, de 2009, desta Secretaria de Políticas de Previdência Social, conforme o teor de seu art. 79: “A concessão de aposentadoria ao servidor titular de cargo efetivo, ainda que pelo RGPS, determinará a vacância do cargo”.

2. CONCLUSÃO

Por todo o exposto, entende-se que não há qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade na previsão de que a aposentadoria pelo RGPS promove, automaticamente, a vacância do cargo e subseqüente extinção do vínculo estatutário. Além disso, ressalte-se que o servidor só pode laborar na prefeitura municipal até os 70 anos de idade, conforme prevê o art. 40, §1º, II, CF.


Informações Sobre o Autor

Luiz Fernando Pereira de Oliveira

Bacharel em direito pela UFJF, Pós-graduado em Direito Tributário pela UCAM. Procurador do Município de Ouro Preto


Equipe Âmbito Jurídico

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