Aquisição de produto e posterior furto – impossibilidade de recuperação em virtude da falta de registro do número de série na nota fiscal – possibilidade de aplicação do Princípio da boa-fé objetiva em prol do consumidor

1. Considerações iniciais


Na prática cotidiana do Foro tem se verificado o ajuizamento de demandas por consumidores que se sentem lesados em virtude da impossibilidade de restituição de produtos adquiridos junto ao comércio e posteriormente furtados, pela ausência de registro do número de série do bem na nota fiscal de compra e venda.


2. Do caso concreto


As reclamações são semelhantes: o consumidor compra o bem, paga o preço, e há omissão por parte do vendedor em fazer constar o número de série do produto na nota fiscal. Posteriormente, a coisa é furtada e a vítima ao realizar o registro da ocorrência é informada pela Polícia Judiciária da inviabilidade de recuperação do bem, tendo em vista a impossibilidade de restituir, no caso de localização da res furtiva, a posse da mesma ao proprietário, ante a inexistência de elemento que identifique e, por conseqüência, a individualize. Sentindo-se desamparada, a vítima procura a prestação jurisdicional pleiteando o ressarcimento da quantia paga, ou alternativamente, a entrega de novo bem, por parte do comerciante, que, em sendo omisso, mediatamente, inviabilizou a possibilidade de recuperação do objeto.


3. Do direito


Em princípio, pode-se pensar que não há de forma alguma responsabilidade do comerciante e que talvez não esteja sequer configurada sua legitimidade para figurar no pólo passivo da ação. Assim, considerando que o demandado não deu causa nem participou do fato criminoso que resultou na perda do objeto pelo autor, não existiria nexo causal entre a conduta do comerciante requerido e o resultado danoso.


Entretanto, ao se fazer uma análise mais apurada do caso, se verifica que tal julgamento preliminar não se coaduna com a moderna concepção de contrato albergada pelo Novo Código Civil no seu artigo 422, que positiva o Princípio da boa-fé objetiva. A redação do referido dispositivo diz o seguinte, verbis: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.


Em verdade, a aplicabilidade da regra mencionada deve se verificar em concreto, aferindo-se caso a caso, o grau de contribuição para um possível dano daquele que não guarda o preceito legal na conclusão ou na execução do contrato.


Na hipótese sub examine, o comerciante que vende determinado produto, por certo mais experiente que é, deve cercar-se das cautelas necessárias a fim de que aquele consumidor que está adquirindo o bem tenha menores chances de vir a sofrer prejuízo, até em virtude de fato não ordinariamente previsto. Ademais, não obstante a inexistência de preceito legal positivo que determine que os fornecedores de produtos procedam ao registro do número de série do bem vendido na nota fiscal de compra e venda, alguns fabricantes, como é o caso das bicicletas, por exemplo, recomendam no manual do produto que seja transcrito o número de série do bem para o documento fiscal. Logo, a exemplo dos comerciantes de automóveis, que em regra, fazem constar nos instrumentos de compra e venda o número do chassi do veículo, os demais revendedores de produtos de natureza diversa, deveriam adotar costumeiramente a mesma prática.


A boa-fé cria deveres anexos e derivados que obrigam as partes não só naquilo que é comumente “visível” na formação do contrato. Em relação ao princípio da boa-fé leciona o Professor Silvio Rodrigues[1]: “A boa-fé é um conceito ético, moldado nas idéias de proceder com correção, com dignidade, pautando sua atitude pelos princípios da honestidade, da boa intenção e no propósito de a ninguém prejudicar”. Assim, poder-se-ia dizer que tal princípio é o grande paradigma da avença, utilizado inclusive como parâmetro pelos artigos 113 e 187, ambos do CC.


Maria Helena Diniz[2], ao pronunciar-se a cerca da boa-fé ressalta o elemento volitivo sobre a forma e aduz que as partes, em conjugação de vontades, devem de tudo fazer em prol dos interesses recíprocos na formação da avença e na sua execução no tempo, conforme se lê:


Segundo esse princípio, na interpretação do contrato é preciso ater-se mais à intenção do que ao sentido literal da linguagem, e, em prol do interesse social de segurança das relações jurídicas, as partes deverão agir com lealdade e confiança recíprocas, auxiliando-se mutuamente na formação e na execução do contrato […].


A inobservância do Princípio em comento gera responsabilidade objetiva por parte daquele que o ignorou, podendo o Magistrado aplicar o preceito nas fases pré e pós-contratual, não só como instrumento de interpretação da avença, mas também como critério aferidor de responsabilidades. Tais posições estão firmadas pelos enunciados 24 e 25 do CEJ[3], respectivamente:


Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independente de culpa.


O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual.


Portanto, o comerciante que por ocasião da venda de um bem não zela pelo interesse de seu cliente está violando os deveres colaterais que surgem em decorrência do princípio da boa-fé e, caso venha ocorrer resultado danoso (ou impossibilidade de reparar-se o dano ocorrido), em decorrência de sua conduta (ainda que por omissão), surge o dever de indenizar.


Neste sentido é a jurisprudência do TJ/RS, Terceira Turma Recursal Cível dos JECs, Recurso Inominado nº 71000524553, Relator Dr. Eugênio Facchini Neto, unânime:


Aquisição de bicicleta. posterior furto. localização. impossibilidade de recuperação em virtude de não constar da nota fiscal dados identificadores da mesma. ação de indenização movida contra o estabelecimento vendedor.


possibilidade. violação de dever contratual, instrumental ou secundário, derivado da boa-fé objetiva. recurso PARCIALMENTE provido para reduzir o montante da indenização.


Na moderna concepção da relação obrigacional, incumbe a ambas as partes agirem de forma a preservar e proteger o interesse do outro contratante. Se a vendedora de bicicletas, por sua maior experiência, sabe das dificuldades para comprovar a propriedade de bicicletas, em razão de furto ou extravio, deve adotar as cautelas necessárias para minorar tal situação. Trata-se de dever instrumental, secundário ou lateral (Nebenpflichten, na doutrina alemã), que independente de expressa previsão legal, pois decorrente do princípio da boa-fé objetiva.


Neste julgado, e brilhante decisão de vanguarda, o Eminente Relator embora vote pela diminuição do quantum indenizatório fixado pelo juízo a quo, salienta que a obrigação é percebida como uma relação dinâmica que tem um início, um desenvolvimento e é polarizada pelo adimplemento. E, que nesse dinamismo, há deveres que podem surgir ainda antes de concluído o contrato (responsabilidade pré-contratual), ou se estender até mesmo após o seu cumprimento (responsabilidade pós-contratual, ou culpa post factum finita). Aduz ainda que, dentre as obrigações decorrentes do princípio da boa-fé, destaca-se o dever de zelar pelos interesses da contra-parte, devendo cada um dos contratantes tudo fazer para que o outro não só realize os interesses pretendidos pelo contrato, como também deve tudo fazer para evitar que a outra parte sofra prejuízos. Por fim, afirma que a ausência da anotação (do número de série na nota fiscal) pode representar uma forma da chamada violação positiva do contrato (pelo descumprimento de dever instrumental de conduta), do qual resultam conseqüências indenizatórias.


Desta lição se depreende que ainda que o dano ocorra em momento posterior a consubstanciação do ajuste, restando comprovada a negligência por parte do comerciante/revendedor, cumpre impor-se a responsabilização, tendo como alicerce o que há de mais moderno em termos de concepção contratual.


Tal posição vem sendo adotada em julgamentos de casos semelhantes, conforme se observa no RI nº 71000767780, Segunda Turma Recursal Cível dos JECs, Relator Dr. Clóvis Moacyr Mattana Ramos, julgado em 29 de março de 2006.


Ainda neste sentido:


FURTO DE BICICLETA. IMPOSSIBILIDADE DE RECUPERAÇÃO PELA BRIGADA MILITAR POR NÃO CONSTAR DA NOTA FISCAL O NÚMERO DO QUADRO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO MOVIDA CONTRA O COMERCIANTE QUE OMITIU DITA PROVIDÊNCIA. Tendo o comerciante conhecimento da dificuldade de comprovar a propriedade de bicicletas em casos de furto, deve adotar as cautelas necessárias quando da venda, identificando o bem na medida em que isso se mostra possível e, no caso, recomendado até pelo fabricante. Recurso improvido. Sentença mantida pelos seus próprios fundamentos. (Recurso Cível Nº 71000693820, Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais – JEC, Relator: Clovis Moacyr Mattana Ramos, Julgado em 09/11/2005)


Ressalte-se que é necessário que no curso da instrução processual reste incontroverso que o autor dessa espécie de demanda não tenha contribuído de nenhuma forma para a perda do objeto e, de outra banda, que o réu de fato tenha sido omisso e negligente, contribuindo desta forma para a impossibilidade de identificação do bem no caso de eventual recuperação do mesmo, sob pena de caracterizar-se o enriquecimento sem causa do requerente.


4. Do direito comparado


Além da doutrina alemã citada como fundamentação no acórdão de lavra do Dr. Eugênio Facchini Neto, outros países trazem positivado o princípio da boa-fé em suas legislações, como por exemplo, o artigo 227 do Código Civil português, o artigo 1.337 do Código Civil italiano, de 1942, e o § 242 do BGB.


5. Considerações Finais


Ao direito, e ao seu operador, cabe a incumbência de apresentar soluções àqueles problemas que se impõe no dia-a-dia da sociedade moderna.


Por certo já estavam ultrapassados os velhos conceitos oitocentistas que por mais de um século regraram o comportamento dos particulares que pretendiam acordar algo. Felizmente, ao positivar o princípio da boa-fé objetiva, o legislador trouxe ferramentas consistentes e capazes de equilibrar relações desiguais e impor deveres maiores do que somente aqueles perceptíveis no instrumento contratual.


Destarte, por maior estranheza que possa causar aos mais conservadores, são cada vez melhor recebidas as decisões inovadoras que, em conformidade com um espírito moderno de relações pautadas pela ética e pela proteção ao hipossuficiente, conferem guarida aos pleitos daqueles que são prejudicados pelo descaso dos que somente buscam auferir vantagens ignorando o bem estar da outra parte.


Referências Bibliográficas:

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Terceira Turma Recursal Cível – JEC. Recurso Inominado n. 71000524553. Drebes & Cia LTDA e Enedina da Silva. Relator. Dr. Eugênio Facchini Neto. 29 de junho de 2004.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Segunda Turma Recursal Cível – JEC. Recurso Inominado n. 71000693820. Manzoli S.A. Comércio e Indústria e Rejane Xavier da Fonseca e Lauro da Fonseca. Relator Dr.Clovis Moacyr Mattana Ramos. 09 de novembro de 2005.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Segunda Turma Recursal Cível – JEC. Recurso Inominado n. 71000767780. Carmelo Severino Borges Madeira e Globex Utilidades S/A. Relator Dr.Clovis Moacyr Mattana Ramos. 29 de março de 2006.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 3: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais.19. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

FIUZA, Ricardo (Org.). Novo Código Civil Comentado.São Paulo: Saraiva, 2003.

NEGRÃO, Theotonio; GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código Civil e legislação civil em vigor. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, volume 3. 29.ed. São Paulo: Saraiva, 2003.


Notas    

[1] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, 2003, p. 61.

[2] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 2003, p. 42.

[3] Enunciados aprovados na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal de 11 a 13.09.2002.

Informações Sobre os Autores

Mateus Lima Silveira

Rodrigo Paixão Pereira

Advogado
Professor Substituto de Direito Civil – Contratos e Responsabilidade Civil da Fundação Universidade Federal do Rio Grande


Equipe Âmbito Jurídico

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