I. Introdução
Um dos debates jurídicos mais interessantes e relevantes dos últimos tempos, embora se refira a algo surgido no início do século, diz respeito às famosas apólices da dívida pública lançadas entre 1902 e 1926.
O assunto vem paulatinamente ganhando importância. Ocupa cada vez mais espaço nas considerações doutrinárias de vários luminares da cultura jurídica nacional. É o objeto de inúmeros seminários e congressos. Tem visitado com freqüência os Tribunais, chamados a solucionar os mais diversos problemas relacionados com as tais apólices.
Em excelente parecer da lavra do Dr. Jorge Amaury Maia Nunes1, Coordenador-Geral de Assuntos Jurídicos Diversos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a administração pública federal já firmou posição quanto à imprestabilidade dos títulos em questão. Não resta dúvida, a partir daquela percuciente manifestação, não terem as apólices seculares qualquer significado jurídico atual, porquanto fulminadas pela prescrição.
Não obstante a escorreita conclusão do parecer já citado, apenas para aprofundar a discussão sobre certos aspectos da possível utilização destes títulos, adotamos a opção metodológica de que eles não estão prescritos, são válidos e podem ser opostos ao emitente e terceiros.
Nesta linha, convém fixar, estarmos diante, para os titulares ou detentores das apólices, de um crédito contra a União, vencido ou não, dependendo do raciocínio a ser observado2.
II. Possíveis utilizações das apólices da dívida pública lançadas no início do século
Superadas as enormes dificuldades relativas à higidez destes títulos, surge a problemática de saber se podem, entre outros, ser utilizados no campo tributário para: pagamento, dação, consignação, suspensão da exigibilidade, garantia do juízo em execução fiscal ou compensação.
Deve ser ressaltado um aspecto de ordem geral aplicável a todas, ou quase todas, as possibilidades analisadas posteriormente. Diz o Código Tributário Nacional em seus arts. 97, inciso VI e 141 que somente lei fixará as hipóteses de suspensão da exigibilidade e extinção dos créditos tributários3. Portanto, à mingua de lei em sentido material, autorizativa das utilizações idealizadas, a vontade dos detentores dos títulos, e mesmo o pronunciamento judicial, não possui o condão de viabilizar as pretensões alinhadas adiante.
Estas últimas considerações estão em perfeita consonância com o princípio da indisponibilidade do interesse público pelo administrador4. Este último não é uma mera formulação abstrata ou um discurso elegante e sedutor. Trata-se de um dos dois pilares básicos da construção do edifício do direito público, em especial o administrativo e o tributário. Segundo este notável vetor da cidadela do direito público, somente o legislador pode dispor diretamente do interesse público – em particular, do patrimônio público representado por seus créditos a receber – ou autorizar, sob certas condições, a sua disponibilização pelo administrador e pelo juiz, agentes aplicadores da lei de ofício e por provocação no caso conflituoso, respectivamente.
II.1. Pagamento de créditos tributários da União
A doutrina considera o pagamento o meio direto de extinção das obrigações, ou seja, “a execução voluntária e exata, por parte do devedor, da prestação devida ao credor, no tempo, forma e lugar previstos no título constitutivo” (Maria Helena Diniz).
Entre as várias espécies de obrigações encontramos, com o devido relevo, as pecuniárias. Estas últimas, modalidades de obrigações de dar, têm por objeto uma prestação em dinheiro onde o pagamento será feito em moeda corrente, de curso forçado e com poder liberatório.
Um dos exemplos por excelência das obrigações pecuniárias são as exigências tributárias. Para chegar a esta conclusão basta verificar os arts. 3º e 162 do Código Tributário Nacional5.
Assim, os títulos da dívida pública somente podem ser utilizados para pagamento de créditos tributários na medida em que a lei lhes atribua o poder liberatório próprio do dinheiro, da moeda de curso forçado. Até porque, em relação aos créditos tributários federais, a rigor estaríamos diante da possibilidade de verdadeira compensação6.
Pesquisado o ordenamento jurídico em vigor, concluímos que somente os TDAs – Títulos da Dívida Agrária7, as LTNs – Letras do Tesouro Nacional, as LFTs – Letras Financeiras do Tesouro e as NTNs – Notas do Tesouro Nacional8 podem ser utilizados com efeito de pagamento contra créditos tributários da União. Não há espaço jurídico, não há autorização legislativa, absolutamente essencial, para as apólices do início do século serem manejadas na forma de pagamento.
II.2. Dação em pagamento de créditos tributários do Instituto Nacional do Seguro Social, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
A dação em pagamento, um principais meios indiretos de extinção das obrigações, em tese, poderia ser utilizada pelos detentores das tais apólices quando diante de créditos tributários do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.
Cumpre observar, no entanto, os contornos concretos do instituto no direito brasileiro. Com efeito, o art. 995 do nosso Código Civil consagra a dação em pagamento, “ao admitir que o credor consinta em receber coisa que não seja dinheiro em substituição da prestação devida. Vê-se, pois, que não foi acolhido pelo direito pátrio o beneficium dationis in solutum, figura presente no direito romano, onde, em certos casos, a dação se impunha ao credor (datio in solutum necessária ou coativa).
Assim, não basta a vontade do devedor, ou mesmo a situação de dificuldades financeiras experimentada por este, para viabilizar a dação em pagamento. É imperioso o assentimento do credor.
Em se tratando de créditos tributários, créditos públicos, parcela do patrimônio público, a concordância em receber títulos ou apólices no lugar do dinheiro de contado não reside na vontade do administrador, do agente público arrecadador. É absolutamente indispensável a interveniência do legislador conferindo a autorização devida para o sucesso jurídico dos intentos dos detentores dos títulos ou apólices em foco.
Nesta linha, nos marcos atuais da ordem jurídica federal, somente identificamos a autorização contida na Lei nº 9.711, de 20 de novembro de 1998, onde:
“Até 31 de dezembro de 1999, fica o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS autorizado a receber, como dação em pagamento, Títulos da Dívida Agrária a serem emitidos pela Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda, por solicitação de lançamento do Instituto Nacional do Colonização e Reforma Agrária – INCRA, especificamente para aquisição, para fins de reforma agrária:
I – de imóveis rurais pertencentes a pessoas jurídicas responsáveis por dívidas previdenciárias de qualquer natureza, inclusive oriundas de penalidades por descumprimento de obrigação fiscal acessória;
II – de imóveis rurais pertencentes a pessoas físicas integrantes de quadro societário ou a cooperados, no caso de cooperativas, com a finalidade única de quitação de dívidas das pessoas jurídicas referidas no inciso anterior;
III – de imóveis rurais pertencentes ao INSS.” (art. 1º)
Portanto, a menos que a União, legislando para o INSS, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios, por suas casas legislativas competentes, consagrem explicitamente a possibilidade de dação em pagamento de créditos tributários com as apólices da dívida pública federal emitidas no início do século, este não pode ser um dos caminhos a serem trilhados pelos seus detentores.
II.3. Consignação em pagamento de créditos tributários federais
Os detentores das apólices emitidas no início do século pretendem, ainda, realizar consignação em pagamento de créditos tributários. Para tanto, utilizam argumentos deste jaez:
“Pacífico e inquestionável é o entendimento de que a consignação em pagamento é uma ação de execução ao contrário, onde o devedor, antes de ser executado, manifesta-se, judicialmente com o objetivo de quitar o débito com APÓLICES DA DÍVIDA PÚBLICA DA UNIÃO, na falta de dinheiro.” 9
Ocorre que o pagamento por consignação é outro dos meios indiretos de extinção das obrigações, mediante depósito judicial da coisa devida, nos casos e formas legais. É a dicção do art. 972 do Código Civil 10. Não custa frisar, somente nos casos expressamente previstos em lei terá lugar a consignação (art. 890 do Código de Processo Civil)11. Portanto, se não existir razão legal, não pode o devedor depositar a prestação devida em vez de pagar diretamente ao credor.
No campo tributário, o art. 164 do Código Tributário Nacional elenca de forma taxativa as hipóteses de consignação12. A simples leitura do dispositivo legal, aliada as características do instituto, como antes destacadas, denunciam a impossibilidade de depósito judicial das vetustas apólices com o efeito típico da consignação. A “consignação” assim processada não passa de um capricho do devedor, de uma tentativa desesperada de distorcer a ordem jurídica em seu favor13.
Ademais, a consignação em pagamento de crédito tributário terá de ser realizada necessariamente em dinheiro. Deve ser utilizada, no depósito judicial, a mesma espécie de prestação presente na obrigação que se pretende adimplir. É exatamente por esta razão que a consignação extingue o crédito tributário (art. 156, inciso VIII combinado com o art. 164, parágrafo segundo do CTN)14. Somente o dinheiro poderá, ao ser convertido em renda, satisfazer o credor tributário.
Mais uma vez as canhestras apólices se mostram imprestáveis. Em suma, para a impossibilidade de “consignação em pagamento” de créditos tributários, por via dos títulos emitidos no início do século, concorrem a ausência de permissivo legal e a imperiosa necessidade da consignação ser processada em moeda de curso forçado.
II.4. Suspensão da exigibilidade de créditos tributários
Na chamada dinâmica de constituição e cobrança do crédito tributário ocorrem hipóteses ou situações onde a exigibilidade dos valores a serem embolsados pelo Fisco fica suspensa. Tratam do assunto os arts. 97, inciso VI, 141 e 151 do Código Tributário Nacional 3 e 15.
Nestas ocasiões, a suspensão da exigibilidade implica a impossibilidade, para o Fisco, de encetar qualquer atitude de cobrança do crédito. Não é possível a inscrição em Dívida Ativa ou o ajuizamento da competente ação executiva, por exemplo.
Justamente por tolher a ação fiscal e adiar para um dia incerto no futuro o ingresso de recursos nos cofres estatais, a Fazenda Pública defendeu a tese de que somente o dinheiro poderia satisfazer a exigência do art. 151, inciso II do CTN. Até porque, superada em favor do Erário a discussão administrativa ou judicial em que estava envolto o crédito, este seria extinto através da pertinente conversão do depósito em renda (art. 156, inciso VI do CTN)16.
A argumentação da Fazenda Pública restou vencedora na letra da Súmula nº 112 do e. Superior Tribunal de Justiça, vazada neste termos:
“O depósito somente suspende a exigibilidade do crédito tributário se for integral e em dinheiro.”
Derrotadas, de novo, as apólices “de ocasião”. A pretensão de suspender a exigibilidade dos créditos tributários a partir delas encontrará óbices intransponíveis no conjunto normativo regulador da matéria e na assente jurisprudência pretoriana.
II.5. Garantia do juízo em execução fiscal
Apesar dos sucessivos revezes, os detentores das malsinadas apólices não desistem de buscar algum proveito na existência das mesmas. Esgrimem as cártulas, agora com suposta autorização legal expressa, no curso das execuções fiscais. Pretendem, com aparente fundamento no art. 11, inciso II da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, ver garantidas as execuções com tais papéis17.
Num primeiro momento, o raciocínio é atraente. Afinal, os títulos da dívida pública figuram expressamente em segundo lugar na gradação legal dos bens penhoráveis em sede de execução fiscal. Entretanto, afastada a superficialidade da leitura ligeira, verificamos não poderem, ainda aqui, as apólices vingar.
O primeiro obstáculo à penhora das apólices da dívida pública emitidas no início do século reside na ausência de cotação em bolsa de tais papéis. Esta exigência consta expressamente da lei e tem sido convenientemente omitida pelos detentores dos títulos e seus advogados.
O sentido moralizador da exigência é extremamente claro. Procurou o legislador afastar as “aventuras” de garantias das execuções com papéis sem valor sério de mercado, como é o caso das apólices em foco. Neste sentido, há inúmeras e consistentes manifestações jurisprudenciais18 e 19.
Mesmo os que admitem não ser a cotação em bolsa um requisito essencial à aceitação dos títulos em garantia da execução, destacam a necessidade dos papéis representarem “valor econômico de fácil aceitação”20, o que, obviamente, não é o caso das vetustas apólices.
O segundo óbice à constricção das cártulas em fase de execução está na farta e correta jurisprudência, oriunda, inclusive, do e. Superior Tribunal de Justiça, que aponta a desobediência à gradação legal quando nomeados títulos pelo devedor21. É certo que a ordem legal qualifica-se como relativa, mas o critério subjacente às decisões anteriores aponta para a necessidade de se lançar mão da garantia de mais fácil e célere conversão em dinheiro 22.
O terceiro empecilho à utilização das apólices nas execuções fiscais nutre-se do critério explicitado nas considerações anteriores, ou seja, não se prestam a garantir de forma fácil e segura as dívidas públicas. Com efeito, o emitente não as reconhece como dívidas suas, descortinando uma longa e penosa batalha judicial para firmar a conclusão contrária. Por outro lado, não estão sujeitos à correção monetária por força de lei e, simplesmente, não há forma e critérios seguros e definidos para proceder a atualização, se fosse o caso23. Por fim, o mercado, com sua lógica objetiva e fria, não lhes atribui mais do que 5% (cinco por cento) do valor alardeado pelos detentores 24, o que abre espaço para sucessivos reforços de penhora.
A título de conclusão podemos afirmar, sem medo de errar, que ninguém em sã consciência admitiria a existência de segurança ou garantia com papéis desta natureza. A rigor, não estamos diante de títulos, com força jurídica própria, e sim, de móveis de uma tentativa orquestrada de iludir, enganar e tirar o máximo proveito daquilo que, em si, não tem proveito algum25.
II.6. Compensação com créditos tributários federais
Na medida em que os títulos da dívida pública representam créditos contra o emitente, exigíveis ou não, dependendo do vencimento, surge, em tese, a possibilidade destes créditos serem compensados com as exações tributárias reclamadas ao contribuinte pelo Erário6.
O tema da compensação de créditos tributários tem sido tratado de forma singular, ao revés da compensação no âmbito do direito privado. O Código Civil, já em 1916, consagrava em seus arts. 1.009 e 1.017, respectivamente:
“Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma das outra, as obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.”
“As dívidas fiscais da União, dos Estados e dos Municípios também não podem ser objeto de compensação, exceto nos casos de encontro entre a administração e o devedor autorizados nas leis e regulamentos da Fazenda.”
J. M. DE CARVALHO SANTOS, sintonizado com as normas presentes no Estatuto Civil, assim discorreu sobre a compensação de créditos tributários:
“Visa-se impedir, em suma que fiquem paralisadas as fontes de renda com que conta a administração pública, para satisfazer as suas necessidades, que são também as da comunhão.
As contribuições fiscais são para o Estado o que os alimentos são para o homem. Elementos essenciais para a própria manutenção, escapam necessariamente a qualquer compensação, porque acima dos interesses privados estão colocados os interesses superiores da ordem pública, traduzidos no interesse da própria conservação do Estado.”
(Código Civil Brasileiro Interpretado. Livraria Freitas Bastos S.A. Vol. XIII. 13ª Edição. Pág. 308)
Na linha da inaplicabilidade da compensação no setor público figura ainda o comando presente no art. 54 da Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, norma com status de lei complementar. O dispositivo estatui:
“Art. 54. Não será admitida a compensação da obrigação de recolher rendas ou receitas com direito creditório contra a Fazenda Pública.”
O Código Tributário Nacional, por sua vez, ao contemplar em dois dispositivos a compensação revogou parcialmente o art. 54 da Lei nº 4.320/6426, mas reafirmou seu caráter especial e restrito. Primeiro, no art. 156, inciso II consagra o instituto como uma das formas de extinção do crédito tributário. Depois, já no art. 170, fixa os contornos gerais da compensação no campo tributário. Eis as normas em questão:
“Art. 156. Extinguem o crédito tributário:
(…)
II – a compensação;”
“Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública.
Parágrafo único. Sendo vincendo o crédito do sujeito passivo, a lei determinará, para os efeitos deste artigo, a apuração do seu montante, não podendo, porém, cominar redução maior que a correspondente ao juro de 1% (um por cento) ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da compensação e a do vencimento.”
Não é ocioso evidenciar um dos traços fundamentais da compensação civil, distanciando-a muitas léguas no terreno jurídico, da compensação tributária. A nossa compensação legal, tal como esculpida no Código Civil, independe de convenção das partes e opera seus efeitos mesmo que uma delas se oponha. Em outra palavras, ela se processa automaticamente, independente da vontade, no momento em que se constituem créditos recíprocos entre duas pessoas.
Ora, uma simples leitura do Código Tributário Nacional demonstra não ter a compensação tributária a marca do automatismo presente no instituto civilístico27. Afinal, aquela somente ocorrerá se existir lei autorizativa estabelecendo as condições e garantias para a operação prosperar.
Obviamente, não pode ser oposta contra esta última característica da compensação tributária a impossibilidade do instituto sofrer alterações quando deixa a seara civil e adentra a tributária. Calcados na autonomia do ramo tributário do direito, inclusive nos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional 28, temos traços e efeitos específicos para compensação tributária, assim como para a prescrição, decadência, capacidade, confissão de dívida, entre outros.
Recentemente, por intermédio de lei, veículo apropriado, a compensação tributária ganhou considerável extensão. Com efeito, o art. 66 da Lei nº 8.383, de 30 de dezembro de 1991, inaugurou a possibilidade de compensação de pagamentos indevidos ou a maior de tributos com outras destas exações da mesma espécie29.
Houve considerável evolução nesta legislação mais recente sobre a compensação tributária, mas restou fixado em lei que:
“A compensação de que trata o art. 66 da Lei nº 8.383, de 30 de dezembro de 1991, com a redação dada pelo art. 58 da Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, somente poderá ser efetuada com o recolhimento de importância correspondente a imposto, taxa, contribuição federal ou receitas patrimoniais de mesma espécie e destinação constitucional, apurado em períodos subseqüentes.” 30.
Trataram ainda de compensação tributária os arts. 73 e 74 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 199631. Por força destas normas, sempre que o contribuinte tiver direito a restituição ou ressarcimento de tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal, deverá o órgão efetivar a pertinente compensação. Estes comandos convivem em harmonia com a sistemática preconizada pela Lei nº 8.383/91.
Debruçadas sobre o conjunto normativo destacado e seus aspectos jurídicos mais relevantes, a jurisprudência e a doutrina firmaram majoritariamente as seguintes premissas:
(a) o Código Tributário Nacional em seu art. 170, norma com status de lei complementar, possibilita a lei ordinária autorizar a compensação de créditos tributários líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do contribuinte contra o Fisco;
(b) o direito subjetivo a este tipo de extinção do crédito tributário somente surge no momento, na forma e nos casos estabelecidos em lei ordinária;
(c) a Lei nº 8.383/91, e as que lhe seguiram, criaram a efetiva possibilidade de compensação de créditos tributários a partir do recolhimento indevido de outros tributos da mesma espécie;
(d) sem lei ordinária autorizativa não é possível a compensação tributária, posto que a obrigação tributária sendo “ex lege” está submetida ao regime jurídico de direito público, claramente distinto dos ditames presentes na compensação privada.
Vê-se, com clareza, a efetiva impossibilidade de serem utilizados os créditos retratados nas apólices da dívida pública emitidos no início do século com o fito de realizar qualquer espécie de compensação tributária. Falta, para tanto, a absolutamente necessária lei autorizativa.
Ademais, como amplamente demonstrado, não podem ser reconhecidas as inafastáveis características de liquidez e certeza aos créditos, em tese, veiculados por tais papéis. Neste sentido, nos reportamos às considerações realizadas quando tratamos da garantia do juízo em execuções fiscais.
Procurando contornar a impossibilidade aqui anunciada são levantados alguns argumentos favoráveis à compensação.
Um deles considera a existência de princípios constitucionais impositores da compensação tributária, conferindo ao contribuinte um verdadeiro direito individual derivado diretamente da Constituição. Tal raciocínio não pode prosperar impunemente. A partir dele, consagramos a desnecessidade do legislador, instauramos o império da insegurança jurídica e damos foros de disposição do interesse público a decisões particulares, estritamente individuais.
Outro, escudado no princípio da isonomia, alega que em diversos casos já é permitida a compensação tributária. Assim, seria tratamento desigual e odioso não admiti-la para os detentores dos títulos da dívida emitidos no início do século.
Não pode haver distorção maior ao princípio da igualdade. Por este tortuoso raciocínio procura-se dar tratamento igual aos desiguais, rumo completamente diverso da essência da garantia constitucional. Afinal, não podem ser aproximados, equiparados ou igualados quem recolhe tributo indevidamente e quem possui papéis absolutamente desprovidos de qualquer substância, na visão do próprio mercado. Incorre em erro jurídico profundo aquele que invoca os princípios de forma abstrata sem se ater para as características e particularidades do caso concreto, para certas refringências e derrogações nos princípios genéricos provocadas pela natureza particular do tema examinado e pela influência de outros princípios de igual ao maior latitude.
Deve, ainda, ser destacado o pífio raciocínio já desmontado no Parecer PGFN/GAB nº 859/981:
“95. Especificamente quanto à pretendida compensação fiscal, dois aspectos merecem breve consideração. O primeiro pertinente ao argumento lançado no item 57 da petição de Wald e Associados. Lá se insinua que o direito dos autores estaria amparado por decisão do STJ que, por sua Primeira Seção, teria entendido que ‘o juiz pode, independentemente do tipo de ação, declarar que o crédito é compensável, decidindo desde logo os critérios da compensação (v.g., data do início da correção monetária).’
96. O aresto em tela não tem a mais mínima pertinência com o caso em disputa, não guardando sequer ponto de tangência. Cuida, isso sim, de tributos sujeitos ao regime de lançamento por homologação em que o contribuinte, ao invés de antecipar o pagamento, registra na escrita fiscal o crédito oponível à Fazenda, por pagamento de tributo de igual natureza, i.e. trata-se de técnica de recolhimento de tributos indiretos, sem qualquer relação com o caso concreto.”
O ilustre parecerista, como de costume, está coberto de razão e foi ao âmago do problema. O precedente do e. Superior Tribunal de Justiça decretou o fim de uma árdua disputa entre a Fazenda Nacional e os contribuintes acerca da interpretação e aplicação da Lei nº 8.383/91, com as alterações posteriores. O crédito compensável, a ser declarado pelo juiz, como faz referência o decisum, é só, e somente só, aquele consagrado nas leis referidas: o decorrente de tributo pago indevidamente, jamais os decorrentes das bolorentas apólices aqui tratadas.
Para fecho do assunto, não é demais repetir as palavras do Mestre Aliomar Baleeiro:
“Processo irregular e condenável de amortização, praticado por governos sem crédito, consiste na faculdade que o Tesouro acena aos subscritores de pagarem impostos com títulos públicos, pelo valor ao par. Uma perda seca para o Fisco, quando os títulos se acham abaixo do par, é a conseqüência desses expedientes, que repugnam aos Estados de sadia administração financeira.”
(Uma Introdução à Ciência das Finanças. Forense. 14ª Edição. Pág. 488)
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