Resumo: O presente estudo tem como objeto a análise das inovações trazidas pela Lei n. 13.105/15 (novo Código de Processo Civil), no tocante ao procedimento extrajudicial para o reconhecimento da usucapião, o que se convencionou chamar "usucapião extrajudicial". Apesar da manutenção do procedimento judicial no ordenamento jurídico brasileiro, a desjudicialização tem como objetivo primordial o descongestionamento do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, a efetivação do direito à aquisição originária da propriedade, o que revela sua importância dentre as inovações trazidas pela Lei n. 13.105/15 (novo Código de Processo Civil).
Palavras-chaves: Usucapião. Propriedade. Procedimento. Desjudicialização. Novo Código de Processo Civil.
Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito; 3. Natureza Jurídica; 4. Ação de usucapião das terras particulares; 5. Inovação Trazida Pelo Novo Código De Processo Civil: Usucapião Extrajudicial; 5.1. A desjudicialização da usucapião; 5.2. Aspectos procedimentais; 6. Conclusão; Referências.
1. Introdução
O presente estudo tem como objeto a análise as inovações trazidas pela Lei n. 13.105/15 (novo Código de Processo Civil), no tocante ao procedimento extrajudicial para aquisição originária da propriedade por meio da usucapião, o que se convencionou chamar de “usucapião extrajudicial” ou “usucapião cartorária”.
Para compreensão do tema, mostra-se necessário tecer breves considerações sobre o instituto da usucapião, tais como: conceito, natureza jurídica e procedimento judicial, outrora indispensável para o seu reconhecimento.
Muito embora o manejo da ação de usucapião continue sendo possível, a desjudicialização do procedimento se destaca, dentre as inovações trazidas pelo NCPC, por ter como objetivo primordial o descongestionamento do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, a efetivação do direito à aquisição originária da propriedade, quando, configurados os requisitos constitucionais ou legais, não haja conflito entre os interessados.
2. Conceito
O termo usucapião é oriundo do latim uso capio, que significa “tomar a coisa pelo uso”. No âmbito jurídico, a usucapião consiste no modo de aquisição originária da propriedade que conjuga a posse continuada com o decurso do lapso temporal, observados outros requisitos legais a depender da espécie.
3. Natureza jurídica
A doutrina e jurisprudência, muitas vezes, utilizam-se do termo “prescrição aquisitiva” para se referir ao instituto. Ocorre que, de acordo com CRISTIANO CHAVES E NELSON ROSENVALD, tal designação se revela imprópria, devido à sua origem meramente histórica.[1] Segundo os autores:
“A usucapião é simplesmente um modo de aquisição da propriedade. O ponto de convergência entre os dois institutos é a produtividade de efeitos que o transcurso do tempo pode consolidar sobre os direitos subjetivos e a inércia do titular do direito subjetivo. Contudo, não se pode negar que, por razoes históricas, consagrou-se a locução prescrição aquisitiva em nossa doutrina. Todavia, a única aproximação entre os institutos é a aplicação do art. 1.244 do CC, na ênfase as formas de suspensão e interrupção de prazos.”[2]
Nesse sentido, muito embora a prescrição e a usucapião tenham fundamento em comum, qual seja, o “decurso prolongado do tempo”, tanto o Código Civil de 1916, quanto o Código Civil de 2002 adotaram a corrente dualista,[3] uma vez que consagraram a prescrição como meio extintivo de ações, regulada na Parte Geral (arts. 189 a 206), e a usucapião como modo de aquisição da propriedade, inserida no Livro de Direito das Coisas.[4]
O exercício da posse mansa, pacífica e contínua, com animus domini, ou seja, com a intenção de dono, por um determinado período de tempo consolida a propriedade em favor do possuidor, sem que haja qualquer relação de direito real ou obrigacional entre este e o antigo proprietário.
Por esse motivo, a propriedade é adquirida de modo originário, ou seja, “incorpora-se o bem ao patrimônio do novo titular em toda a sua plenitude, livre de todos os vícios que a relação jurídica pregressa apresentava”.[5]
4. Ação de usucapião de terras particulares
A usucapião tem como objetivo principal resguardar a função social da posse. Assim, “o domínio decorre do exercício da posse como fato e não de um título translativo proveniente de outrem”,[6] situação que, para ser reconhecida e produzir efeitos, exigia obrigatoriamente o ajuizamento da ação de usucapião de terras particulares, [7] regulada nos arts. 941 a 945 do Código de Processo Civil de 1973.
Apesar disso, a doutrina e a jurisprudência sempre reconheceram o caráter meramente declaratório da sentença judicial na ação de usucapião, na medida em que “apenas reconhece, com oponibilidade erga omnes, um direito já existente com a posse ad usucapionem”, servindo tão somente como “título para registro (art. 945 do CPC) e não título constitutivo do direito do usucapiente”.[8]
5. Inovação trazida pelo novo código de processo civil: usucapião extrajudicial
O novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/15) não reproduziu os dispositivos referentes à ação de usucapião e, além disso, por força do seu art. 1.071, altera a Lei n. 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), acrescentando o art. 216-A, que trata do chamado “usucapião extrajudicial” ou “usucapião cartorário”.
Apesar disso, o manejo da ação de usucapião continua sendo possível, por força do princípio da inafastabilidade de jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF/88), o que, inclusive, é ressalvado expressamente no caput do art. 216-A.
Nesse sentido, é a posição da doutrina processualista majoritária consagrada no Enunciado n. 25, aprovado no IV Encontro do Fórum Permanente de Processualistas Civis:[9]
“25. (art. 246, §3º; art. 1.071 e §§) A inexistência de procedimento judicial especial para a ação de usucapião e de regulamentação da usucapião extrajudicial não implica vedação da ação, que remanesce no sistema legal, para qual devem ser observadas as peculiaridades que lhe são próprias, especialmente a necessidade de citação dos confinantes e a ciência da União, do Estado, do Distrito Federal e do Município.”
5.1. A desjudicialização da usucapião
O novo Código de Processo Civil viabiliza o procedimento da usucapião extrajudicial, perante o oficial do registro de imóveis, de modo a descongestionar o Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, privilegiar a efetivação do direito material pretendido.
Verifica-se uma desjudicialização do direito, por meio do deslocamento de algumas atividades que eram atribuídas ao Poder Judiciário para o âmbito das serventias extrajudiciais, a serem realizadas por meio de procedimentos administrativos.[10]
Tal inovação legislativa segue a linha de outros instrumentos normativos, como é o caso da Lei n° 8.560/92, que se refere ao reconhecimento de paternidade perante os serviços de registro civil, e da Lei n. 11.441/07, que alterou o art. 982 do CPC/73, possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa.[11]
5.2. Aspectos procedimentais
Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, apesar de não exercerem cargo ou emprego público,[12] são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado pelo Poder Público o exercício da atividade notarial e de registro, de caráter privado, com o objetivo de garantir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, nos moldes preceituados no art. 236 da CF/88 e nos arts. 1º a 3º da Lei n. 8.935/94 (Lei dos Cartórios).
Os requisitos procedimentais para o reconhecimento da usucapião extrajudicial estão elencados expressamente no art. 216-A, inserido na Lei n. 6.015/73.
O interessado deverá formular requerimento, assistido por advogado, devido à complexidade do ato, na comarca em que esteja situado o imóvel usucapiendo.
A petição deverá ser instruída com justo título ou qualquer outro documento hábil à comprovação da posse e acompanhada de certidões negativas que comprovem o caráter manso e pacífico da posse. Além disso, deverá conter a ata notarial lavrada pelo tabelião, que serve para atestar a existência e o modo de existir de algum fato,[13] ou seja, aspectos da posse que fundamentem o pedido da usucapião, bem como a planta do imóvel, com memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, nos moldes do art. 216-A, incisos I a IV.
Assim, pode-se perceber que o pedido de usucapião extrajudicial exige prova documental inequívoca e pré-constituída, que viabilize a verificação da posse com animus domini durante o lapso temporal exigido para a modalidade de usucapião visada pelo interessado, sob pena de rejeição do pedido.
Para a correta compreensão do dispositivo, exige-se uma interpretação sistemática, com base no ordenamento jurídico vigente, e teleológica, a fim de resguardar as finalidades da inovação legislativa.
Os documentos exigidos para instruir o pedido da usucapião extrajudicial compõe um rol taxativo. Assim, não poderá o registrador, responsável pela autuação do pedido, exigir do interessado outros documentos que não estejam expressamente previstos na lei.
Isso porque o Poder Público e, por conseguinte, seus delegatários estão sujeitos à supremacia da lei e do Direito, ou seja, as diretrizes constitucionais e as disposições legais prevalecem e têm preferência sobre os atos da Administração,[14] principalmente nos casos em que o objetivo primordial da lei seja a concretização de direitos fundamentais.
Verifica-se que o dispositivo não exige do interessado a instrução do pedido com a certidão de registro do imóvel de inteiro teor, completa e atualizada.
Apesar disso, ao determinar que o pedido seja processado “diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo”, o legislador confere a responsabilidade pela instrução do processo com a certidão respectiva ao cartorário competente, que deverá indicar a matrícula do imóvel e sua cadeia dominial.[15]
E se o imóvel não for registrado, será possível o procedimento extrajudicial da usucapião?
Muito embora a ausência do registro do imóvel não impeça o reconhecimento da aquisição da propriedade pela usucapião,[16] a matrícula do imóvel está expressamente indicada no inciso II do art. 216-A. Por essa razão, entendo que, nesse caso, não se revela possível o pedido extrajudicial da usucapião, devendo o interessado ajuizar a ação respectiva perante o Poder Judiciário.
O procedimento se inicia com o requerimento do interessado, o que configura uma mera faculdade do usucapiente. Uma vez formulado, será autuado pelo registrador, a quem compete a verificação da regularidade dos documentos acostados.
Se a planta e memorial descritivo – um dos documentos indispensáveis para o processamento do pedido – não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, o registrador competente deverá notificar o referido titular, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso no prazo de 15 (quinze) dias. Caso não haja manifestação, o seu silêncio será interpretado como discordância.
Estando a petição devidamente instruída, exige-se a manifestação da Fazenda Pública. Assim, o oficial de registro dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos, ou pelo correio com aviso de recebimento, para que se manifestem no prazo de 15 (quinze) dias.
Sustenta-se que esse prazo de 15 dias é impróprio, ou seja, o seu decurso não enseja nenhum óbice ou prejuízo à manifestação da Fazenda Pública sobre o pedido de usucapião. Assim, o reconhecimento da usucapião extrajudicial se encontra condicionado à manifestação de todos os entes federativos nos autos.[17]
Deve-se ter cautela, porém, com o caráter improprio desse prazo, a fim de resguardar o objetivo da alteração trazida pelo novo Código de Processo Civil, qual seja, conferir celeridade e eficiência ao reconhecimento da aquisição originária da propriedade.
Além disso, o oficial de registro deverá atribuir publicidade ao pedido, ou seja, deverá promover a ciência de terceiros eventualmente interessados, por meio da publicação de edital em jornal de grande circulação, a fim de que, caso haja interesse, se manifestem no prazo de 15 dias.
Caso haja impugnação do pedido, o reconhecimento da usucapião deverá ocorrer no âmbito judicial. Assim, uma vez impugnada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum.
Não havendo impugnação, uma vez transcorrido o prazo de 15 dias para manifestação de terceiros interessados, e não havendo diligências pendentes a serem realizadas, o oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel com as descrições apresentadas, desde que: (a) a documentação esteja em conformidade com as exigências legais; e (b) haja concordância expressa dos titulares de todos os direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes. Se for o caso, será permitida a abertura de matrícula.
Do contrário, caso a documentação não esteja em conformidade com as exigências legais, oficial do registro de imóveis rejeitará o pedido, o que não impede, por sua vez, o ajuizamento da ação de usucapião.
Por fim, deve-se registrar que, em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, procedimento administrativo especial, mas que será decidido na esfera judicial por uma sentença, nos termos do art. 198 da Lei n. 6.015/73.
Diante de todo o exposto, resta a indagação: a alteração trazida pelo novo Código de Processo Civil terá o condão de concretizar o direito à usucapião de modo célere e satisfatório?
Apesar de perceber alguns entraves que não foram tratados expressamente pela nova lei, tais como, (a) ausência de prazo para a atuação do oficial de registro, (b) o caráter impróprio da manifestação da Fazenda Pública acerca do pedido e o (c) valor a ser pago à título de emolumentos pelas partes, o procedimento extrajudicial da usucapião se revela potencialmente capaz de conferir, de modo mais célere, o reconhecimento legal da situação de fato já consolidada, quando não houver dissonância entre os interessados, efetivando, assim, o direito de propriedade sem que se exija a atuação do Poder Judiciário, como ocorre, por exemplo, com o inventário extrajudicial.
Quaisquer considerações que ultrapassem essa análise, no presente artigo, será precipitada e até mesmo incoerente. Por esse motivo, resta aguardar a entrada em vigor da Lei n. 13.105/15 e a efetiva aplicação das mudanças acerca do procedimento para reconhecer a usucapião. Só então será possível verificar se o novo instituto da usucapião extrajudicial se coaduna com o objetivo da lei de, ao desjudicializar o instituto da usucapião, concretizar o direito à aquisição originária da propriedade de modo mais célere e eficiente e, ao mesmo tempo, resguardar os direitos fundamentais dos interessados.
6. Conclusão
A Lei n. 13.105/15, ao alterar a Lei n. 6.015/73, acrescentando o art. 216-A, consagra a chamada “usucapião extrajudicial” ou “usucapião cartorária”.
Com isso, visa descongestionar o Poder Judiciário por meio do deslocamento da competência, que antes lhe era atribuída de modo exclusivo, para o âmbito das serventias extrajudiciais (fenômeno conhecido como desjudicialização) e, principalmente, tutelar a função social da posse, concretizando o direito de propriedade por meio do reconhecimento extrajudicial da usucapião.
Em que pese algumas discussões acerca das alterações trazidas pelo novo Código de Processo Civil, o procedimento extrajudicial da usucapião se revela capaz de conferir, de modo mais célere, o reconhecimento legal da situação de fato já consolidada, quando não houver dissonância entre os interessados, efetivando, assim, o direito de propriedade, sem que se exija a atuação do Poder Judiciário, como ocorre, por exemplo, com o inventário extrajudicial.
Apenas com a entrada em vigor da Lei n. 13.105/15 será possível verificar as vantagens e desvantagens do novo instituto, cujo objetivo é descongestionar o âmbito do Poder Judiciário, concretizar o direito à aquisição originária da propriedade de modo mais célere e eficiente e, ao mesmo tempo, resguardar os direitos fundamentais dos interessados.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Alagoas – UFAL. Advogada
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