As medidas de austeridade no contexto da crise econômica e o princípio da vedação ao retrocesso social

Resumo: O presente artigo trata da análise do advento de medidas de austeridade fiscal e econômica em confronto com o princípio da Vedação ao Retrocesso Social, em especial à luz dos parâmetros delineados no âmbito do Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos, no Comentário Geral nº 19 (sobre o direito à seguridade social) pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. Por fim, analisa-se o caso da Emenda Constitucional 95 de 2016.

Palavras-chave: Austeridade Fiscal; Direitos Sociais; Vedação ao Retrocesso Social; Comentário Geral nº 19 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU; Emenda Constitucional 95 de 2016.

Abstract: This article deals with the analysis of the advent of fiscal and economic austerity measures in relation to the principle of the Social Reversion, especially in light of the parameters outlined in the scope of the Global System for the Protection of Human Rights, in General Comment No. 19 (on the right to social security) by the UN Committee on Economic, Social and Cultural Rights. Finally, the case of the Constitutional Amendment 95 of 2016 is analyzed.

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Keywords: Tax Austerity. Social rights. Fence to Social Retreat. General Comment Nº 19 of the UN Committee on Economic, Social and Cultural Rights; Constitutional Amendment 95 of 2016.

Sumário: Introdução. 1. Da Progressividade dos Direitos Sociais. 2. Da Vedação ao Retrocesso Social. 3. Do Histórico de Aproximação dos Direitos Humanos com a Economia. 4. Dos Parâmetros da ONU. 5. Conclusão.

Introdução.

Atualmente, vive-se um momento conturbado política e economicamente no Brasil. Diante da necessidade de diminuição dos gastos públicos, propostas de diminuição de direitos sociais são pautas frequentes. Medidas de austeridade fiscal e econômica surgiram neste contexto, vindo a diminuir a proteção social, o que viola frontalmente a progressividade dos direitos sociais e o princípio da vedação ao retrocesso.

Trata-se de um tema que permeia as principais discussões atuais sobre os direitos humanos: a relação entre crise econômica, em especial as medidas de austeridade adotadas pelos países e a proteção de direitos, principalmente os direitos sociais, econômicos e culturais, diante dos custos dos direitos.

Inicialmente, se analisará estes conceitos de progressividade dos direitos sociais e o princípio da vedação ao retrocesso.

A seguir, se apontará os critérios para diminuição de direitos sociais, previstos no Comentário Geral nº 19 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU e se analisará a Emenda Constitucional 95 de 2016.

1. Da Progressividade dos Direitos Sociais.

No âmbito global, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais é considerado um marco por ter dado enfoque aos direitos econômicos, sociais e culturais, vencendo a resistência daqueles que tratavam os direitos sociais como meras recomendações, sem qualquer força normativa.

Conforme André de Carvalho Ramos, “o PIDESC reconheceu que os direitos sociais em sentido amplo são de realização progressiva, devendo os Estados dispor do máximo dos recursos disponíveis para a sua efetivação, o que não exclui a obrigatoriedade de sua promoção e, após, a proibição de retrocesso social.”.

O art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos versa sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, mencionando o compromisso dos Estados Partes de adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, para alcançar progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.

De acordo com André de Carvalho Ramos, a Convenção deu ênfase à implementação dos direitos civis e políticos, apenas mencionando o vago compromisso dos Estados com o desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Posteriormente, esses direitos foram objeto do Protocolo de San Salvador.

Ressalte-se que um dos princípios de interpretação da Convenção é o pro homine, expressamente previsto no art. 29, que impõe uma interpretação de modo a não suprimir o gozo e o exercícios dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção. Assim, sempre se privilegia uma interpretação de maximização da proteção de direitos humanos.

Em relação ao Protocolo de San Salvador, este estabelece que o Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos devem levar em conta a natureza progressiva da vigência dos direitos protegidos pelo Protocolo.

2. Da Vedação ao Retrocesso Social.

André de Carvalho Ramos conceitua o princípio da vedação ao retrocesso “Os direitos humanos caracterizam-se pela existência da proibição do retrocesso, também chamada de “efeito cliquet” ou princípio do não retorno da concretização, que consiste na vedação da eliminação da concretização já alcançada na proteção de algum direito, admitindo-se somente de aprimoramentos e acréscimos.”.

O STF já reconheceu a aplicação deste princípio no que toca aos direitos sociais, no MS 24.875, em que o Min. Celso de Mello apontou uma verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional.

Na Opinião Consultiva 03/83, que trata das restrições à pena de morte, solicitada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Corte salientou que a vedação ao retrocesso também se aplica aos direitos civis e políticos.

Assim, para a efetivação de políticas de austeridade não se pode desconsiderar o princípio da vedação do retrocesso social, como ocorreu com a edição da Emenda Constitucional 95 de 2016, que trouxe o congelamento dos gastos públicos com os direitos sociais para os próximos 20 anos.

3. Do Histórico de Aproximação dos Direitos Humanos com a Economia.

 A aproximação dos Direitos Humanos e da Economia se deu em virtude da preocupação com a redução da proteção diante de insuficiência de recursos financeiros, o que pode levar a um profundo descaso em relação aos direitos humanos nas pautas governamentais, tornando-os irrelevantes.
Os órgãos de Direitos Humanos do Sistema Global se preocupam, em especial, com os movimentos para trás, com as medidas de retrocesso no âmbito de proteção dos direitos humanos.

Historicamente, este movimento de aproximação dos defensores de direitos humanos com a economia iniciou-se com as crises no capitalismo.

Trata-se de uma relação complexa e obscura esta interação entre a estrutura básica dos direitos humanos e a quantidade de recursos disponíveis para implementá-los.

Classicamente, entendia-se que, de acordo com a distinção entre direitos civis e políticos e direitos sociais, econômicos e culturais, os primeiros não precisavam de nenhuma qualificação financeira, enquanto os últimos dependiam exclusivamente de aportes financeiros.

Atualmente, esta correlação encontra-se superada já que os direitos civis e políticos também demandam prestações positivas para sua implementação, como por exemplo a utilização de urnas para o exercício do direito ao voto, o que também traz custos.

Sobre este tema o Supremo Tribunal Federal já entendeu que as urnas eletrônicas estão protegidas pela vedação do retrocesso político, não podendo retornar-se para o voto impresso.

Por outro lado, os direitos sociais também possuem uma faceta negativa, já que devem ser respeitados, o que não demanda contraprestação estatal positiva sob este enfoque.

Defende-se que se deve preservar um núcleo mínimo dos direitos sociais, econômicos e sociais, ainda que os principais tratados internacionais de direitos humanos prevejam que sua implementação está limitada aos recursos financeiros, principalmente quando se tratar de países em desenvolvimento.

Sabe-se que a partir da década de 1970, a discussão sobre desenvolvimento ganhou força. Os países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, justificaram-se aos organismos internacionais, defendendo que necessitavam de algum tipo de negociação financeira ou de outros arranjos econômicos que facilitassem sua implementação.

Com a crise financeira asiática de 1997, os órgãos internacionais de proteção de direitos humanos passaram a debater ainda mais a temática. Na sequência, com a recessão financeira mundial de 2008, aprofundou-se a problemática já que inclusive países desenvolvidos, como os países europeus, aplicaram medidas de austeridade econômica e fiscal, reverberando nos direitos sociais conquistados.

Como forma de proteção ao núcleo essencial de direitos sociais, deve-se incluir proibições constitucionais às medidas do movimento neoliberal e priorizar os cortes em gastos excessivos, além de realizar alterações orçamentárias equilibradas que limitem as despesas de capital.

4. Dos Parâmetros da ONU.

Sabe-se que, no sistema capitalista, crises econômicas são frequentes e devem ser levadas em consideração pelos estudiosos de direitos humanos já que reverberam mais severamente naqueles menos abastados e mais vulneráveis às diversas intempéries.

Quando das discussões acerca do Projeto de Emenda Constitucional que foi aprovado e transformou-se na Emenda Constitucional 95 de 2016, o Relator Especial da ONU para extrema pobreza e direitos humanos, Philip Alston, foi expresso e direto ao afirmar que “os planos do governo de congelar o gasto social no Brasil por 20 anos são inteiramente incompatíveis com as obrigações de direitos humanos do Brasil”.

O Relator alertou que “O efeito principal e inevitável da proposta de emenda constitucional elaborada para forçar um congelamento orçamentário como demonstração de prudência fiscal será o prejuízo aos mais pobres nas próximas décadas.”.

Não se trata de ingenuidade ou de imprudência com os gastos públicos, pois, se houver uma crise financeira, poderão ser adotadas medidas de ajustes fiscais, mas estas devem ser cuidadosamente justificadas e obedecer aos parâmetros elencados no Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.

Dentre estes parâmetros encontram-se: a busca por outros meios alternativos antes da implementação de medida mais severa; não deve haver discriminação nas políticas, em especial quanto à origem social ou status da propriedade; deve haver a participação da sociedade na formulação da politica, mediante consulta prévia.

Acerca desta temática, o Comentário Geral nº 19 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, no §42, nos traz os critérios que devem ser adotados para que estas medidas de austeridade sejam consideradas convencionais: “Existe una fuerte presunción de que la adopción de medidas regresivas con respecto a la seguridad social está prohibida de conformidad con el Pacto. Si se adoptan medidas deliberadamente regresivas, corresponde al Estado Parte la carga de la prueba de que estas medidas se han adoptado tras un examen minucioso de todas las alternativas posibles y de que están debidamente justificadas habida cuenta de todos los derechos previstos en el Pacto, en el contexto del pleno aprovechamiento del máximo de los recursos de que dispone el Estado Parte. El Comité examinará detenidamente: a) si hubo una justificación razonable de las medidas; b) si se estudiaron exhaustivamente las posibles alternativas; c) si hubo una verdadera participación de los grupos afectados en el examen de las medidas y alternativas propuestas; d) si las medidas eran directa o indirectamente discriminatorias; e) si las medidas tendrán una repercusión sostenida en el ejercicio del derecho a la seguridad social o un efecto injustificado en los derechos adquiridos en materia de seguridad social, o si se priva a alguna persona o grupo del acceso al nivel mínimo indispensable de seguridad social; y f ) si se hizo un examen independiente de las medidas a nivel nacional”.

No caso específico do Brasil em relação à aprovação da Emenda Constitucional 95 de 2016, nenhum destes critérios foi observado, o que impõem o reconhecimento de sua inconvencionalidade e sua inconstitucionalidade, por violação das cláusulas pétreas (art. 60, §4º da Constituição Federal).
O Relator Especial da ONU Philip Alston se manifestou ainda: “Se adotada, essa emenda bloqueará gastos em níveis inadequados e rapidamente decrescentes na saúde, educação e segurança social, portanto, colocando toda uma geração futura em risco de receber uma proteção social muito abaixo dos níveis atuais.”.

Ademais, resta evidenciado que esta medida governamental utilizada como pretexto, diante da crise econômica e recessão, é eivada de vícios graves na sua elaboração, desconsiderando toda a normativa internacional ratificada pelo Brasil, em especial o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Por fim, questiona-se a própria efetividade de tais medidas de controle nas contas públicas, como o fez com maestria o Relator Philip Alston “Estudos econômicos internacionais, incluindo pesquisas do Fundo Monetário internacional, mostram que a consolidação fiscal tipicamente tem efeitos de curto prazo, reduzindo a renda, aumentando o desemprego e a desigualdade de renda. E a longo prazo, não existe evidência empírica que sugira que essas medidas alcançarão os objetivos sugeridos pelo Governo”.

5. Conclusão.

Assim, observa-se que no contexto de crise econômica, a adoção de medidas de austeridade fiscal deve ser realizada de maneira responsável e comprometida com os direitos humanos, a fim de que a conta do insucesso da economia não recaia exclusivamente sobre aqueles mais vulneráveis socialmente.

Como parâmetros seguros, devem ser observados os critérios do Comentário Geral nº 19 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, o qual foi absolutamente desconsiderado na elaboração da Emenda Constitucional 95 de 2016, que tratou do congelamento dos gastos públicos com os direitos sociais para os próximos 20 anos. Portanto, esta Emenda Constitucional é inconvencional e inconstitucional, violando cláusulas pétreas, o princípio da vedação ao retrocesso e a progressividade dos direitos sociais.
 

Referências
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2ª Edição, 2015.
Entrevista com Relator Especial da ONU para extrema pobreza e direitos humanos, Philip Alston, para o Canal CONECTAS. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EC_SSTBOMDo. Acesso em: 29 de dezembro de 2017.
Comentário geral nº 19 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. Disponível em: http://tbinternet.ohchr.org/_layouts/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=E%2fC.12%2fGC%2f19&Lang=en. Acesso em: 29 de dezembro de 2017.
Brasil: Teto de 20 anos para o gasto publico violará direitos humanos, alerta relator da ONU. Disponível em: https://nacoesunidas.org/brasil-teto-de-20-anos-para-o-gasto-publico-violara-direitos-humanos-alerta-relator-da-onu/ Acesso em 29 de dezembro de 2017.


Informações Sobre o Autor

Maria Pilar Prazeres de Almeida

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Aprovada nos concursos de Advogada da FINEP Defensora Pública do Estado da Bahia Defensora Pública do Estado do Espírito Santo e Defensora Pública do Estado de Santa Catarina


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Equipe Âmbito Jurídico

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