“Não, senhor doutor, isto não se faz. Perdoe-me, isto não se faz…”. Dizia isto um dos personagens de Machado de Assis, em uma passagem não pouco conhecida entre apreciadores da literatura. Que não o digam, mas também não o negam os semblantes das mulas postadas ao extremo da mesa em que exerce o Estado seu controle social. O apelo vem da alma. Alma de homens e mulheres que esmoreceram ao suportar a provação do vale-tudo econômico da sociedade contemporânea, que sem qualquer receio os sujeita à marginalidade social. Muitos talvez em decorrência do consumo, mas muitos em decorrência das necessidades sociais mais básicas.
Diriam: isso não justifica o cometimento de um crime? Então cabe outra pergunta: os homens menos abastados devem suportar todos os infortúnios que os impõe o “poder econômico” a tal ponto de se verem morrer? Não se tem a resposta, e dificilmente alguém a terá de pronto. O que não se aceita que ocorra, é a comparação destas pessoas com facínoras atacadistas de substâncias proibidas. A transformação de pessoas simples, “criminosos simples”, em “inimigos” do Estado, por intermédio de um (maquiado) processo de criminalização seletiva, ditado por ideais norte-americanos e por um oculto poder (econômico) que transita pelas instituições estatais.
Não se deslegitima a atitude do Brasil, que em virtude de todo um contexto internacional, valorizou a repressão dos delitos ligados ao tráfico de drogas e, em efeito, positivou uma legislação rigorosa, mas cumpre, destarte, aclarar que estas normas não são existem e se aplicam por si só, mas estão inseridas em um ordenamento norteado pelas regras de uma carta política que homenageia em seu núcleo duro os direitos e garantias fundamentais do indivíduo em Juízo. Portanto, na aplicação da legislação concernente às drogas, os direitos e garantias fundamentais não devem sob nenhum pretexto de ordem política ou legal ser violados para que possa ser um homem, um cidadão (seja qual for sua pátria), considerado pelo Estado como seu inimigo
A aplicação da norma penal, por sua vez, também deve se dar em consonância com os mesmos princípios fundamentais, dispostos no texto maior, para que haja uma equânime administração da justiça e, em efeito, a justa aplicação do Direito. O subjetivismo na interpretação da norma, que muitas vezes é fascinado pelos mistérios e fantasias que cingem a polifacética questão das drogas, não pode dar espaço para que venham à tona decisões obscuras, rodeadas de frases feitas e jargões típicos de padres inquisidores, mas deve sim buscar sistematicamente as peculiaridades do caso concreto e trazê-las à análise na imputação ao tipo penal. A realidade das “mulas” é diversa da realidade do fenômeno chamado “crime organizado”, de modo que o deslinde da peleja não deve se balizar nas conseqüências hipotéticas da disseminação de tais produtos no “seio social” se o crime tivesse se consumado. A justiça das drogas não pode se tornar algo idêntico ao que ocorre no fantástico universo de Kafka, onde “a lei não admitia nenhuma defesa, mas tão-somente a tolerava e até parecia perguntar-se se não seria mister pôr em tela de juízo aqueles pontos do código segundo os quais teria ao menos de admitir a defesa” [01].
Não se pode, por outro lado, mensurar a violência da pena corporal, e, portanto, deve-se evitá-la em um Estado de Direito, ou seja, deve aqui uma pena corporal ser aplicada somente quando necessário desde pontos de vista preventivos gerais e especiais, e não como mero instrumento de retribuição por uma infração realizada. Qual sentido da retribuição? A norma se tornará eficaz por isso? Não mais a infringirão? A sociedade será livrada dos “traficantes”? Novamente não se tem aqui as respostas. Mas cabem outras perguntas: o que iguala uma “mula” a um “traficante”? Será que uma pessoa que se sujeita a uma organização criminosa internacional o faz simplesmente por uma pequena “vantagem monetária”? Se afirmativa a segunda resposta, pergunta-se: e se o Estado proporcionasse condições desta pessoa conseguir a “vantagem monetária” por outros meios, será que ela ainda assim se sujeitaria à organização? As hipóteses de respostas são inúmeras e variantes, portanto, não podem ser aqui respondidas, mas fica a reflexão.
Por tudo isso, deve-se rejeitar a utilização do critério puramente matemático na aplicação de causas especiais de aumento de pena incidentes nos crimes envolvendo drogas. E aqui, a questão não se restringe às “mulas”, senão que alcança todo aquele que infrinja uma norma proibitiva da legislação de repressão às drogas. Este critério viola o princípio da legalidade. E violar um princípio é pior do que violar uma lei, porque a afronta atinge diretamente as vigas de sustentação do próprio Direito, em efeito, alui-se toda a estrutura. Além disso, mostra-se evidentemente uma ilegal e inconstitucionalidade, de modo que sua existência e a sua manutenção há que insurgir contra todo o sistema jurídico-penal, subvertendo seus valores mais fundamentais. Portanto, não é possível compactuar com tal premissa.
O mero fato de comportar a norma, em tese, certo nível de discricionariedade – até porque, obviamente, impossível seria ao legislador, em sua inteligência humana, prescrever sempre e em toda e qualquer situação, e de maneira segura, objetiva e inquestionável, medidas idôneas a preencher por completo o escopo legal – não significa que esta discricionariedade continue a existir com a mesma amplitude no caso concreto, pois, decerto, o curso dos fatos há que excluir de modo imperativo algumas das soluções que o comando normativo comportava in abstracto. Assim, logo se evidenciará que existe, na maior parte dos casos, apenas um caminho a se adotar.
Demais disto, se a norma penal não explicitou no respectivo preceito qual a forma de aplicação a ser adotada, ante a inexistência de forma para aplicar duas causas de aumento concomitantemente, somente se pode concluir que, dado os postulados do princípio basilar nulla poena sine lege, a aplicação de tal critério é proibida pelo ordenamento, pois extrapola o teor literal do dispositivo, e, como notoriamente se sabe, a interpretação extensiva de um preceito proibitivo penal não é aceita no Brasil. Em outros termos, em casos de concurso de causas especiais de aumento de pena, o operador deverá majorar a pena aplicando apenas uma causa, porque os termos “deverá” e “poderá” são literalmente diversos, contudo, aqui ambos possuem um significado teleologicamente idêntico.
A razão da proibição do cúmulo material de agravações, ademais, como ressalta Cavaleiro Ferreira, “pode buscar-se, desde logo, na similitude com a acumulação real de crimes cometidos pelo mesmo agente, o qual não conduz a uma adição das penas correspondentes a cada crime; mas é das penas na acumulação real de crimes. É que cada circunstância qualificativa é, por natureza, uma circunstância reveladora da maior gravidade, mas não tem em si um valor próprio, e a soma das agravações não corresponde necessariamente a uma soma automática do valor diferenciado de cada circunstância qualificativa agravante no facto punível” [02].
Portanto, mesmo que ainda hoje se tenha – ainda que como reflexos dos ideais de outrora, onde se disseminava a idéia de que e que “a idéia de que a generalização do conatacto de jovens com drogas devia ser compreendida, no quadro da guerra fria, como uma estratégia do bloco comunista, para solapar as bases morais da civilização cristã ocidental, e que o enfrentamento da questão devia valer-se de métodos e dispositivos militares” [03] – um pensamento considerado “conservador” sobre a questão das drogas, este subjetivismo não deve ser corporificado em um julgamento de uma pessoa, pois o que esta pode ter cometido, no máximo é uma infração de uma disposição legal e não um “pecado” contra os mais sagrados valores morais de uma sociedade cristã. Portanto, merece um julgamento conforme o Direito e não um julgamento “militar” por um “crime religioso”.
Conclui-se, pois, a presente reflexão com a transcrição, sempre autorizada, do pensamento de Nilo Batista: “(…) No caso das drogas, entre tantas mistificações ideológicas produzidas não apenas pela mídia, mas também pela elaboração conceitual teórica, selecionamos o dogma da ilicitude ontológica como aquele como maior aptidão para concentrar opiniões, para colocar o povo de acordo com o governante, como dizia Sun Tzu. Tráfico ilícito de drogas é sinônimo perfeito de tráfico de drogas ilícitas, porém nem mesmo a conhecida experiência malograda ‘lei seca’ norte-americana consegue despertar essa desconfiança na generalidade dos juristas; muitos procuram refugiar–se numa argumentação química para preservar a convicção de que a maconha é proibida pelo que é, e não porque é proibida – como se o álcool também não dispusesse de uma química, como se só o tabaco pudesse indenizar os danos aos pulmões, como no recente acordo bilionário nos Estados Unidos. Por essa razão, enquanto, sob o modelo sanitário, procuravam-se, como vimos, soluções semelhantes para usuários de drogas ilícitas e para o alcoolismo, o modelo bélico distingue completamente: o demônio não pode ser um adjetivo” [04].
Mestre em Filosofia, área de concentração Ética e Filosofia Política, pela Faculdade de São Bento – FSB. Professor nos cursos de Direito e Comunicação Social/Jornalismo da Universidade São Judas Tadeu – USJT, Professor no curso de Direito da Universidade Nove de Julho – Campus São Roque FAC/São Roque, Professor no curso de Direito da Faculdade Integrada Torricelli – FIT. Membro de equipe de pesquisa do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba – CCJ/UFPB. Palestrante do Instituto Parthenon. Vice-presidente da Comissão de Assuntos Legislativos e Parlamentares da 57ª Subsecção da Ordem dos Advogados do Brasil
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