Resumo: No intuito de diminuir as diferenças de oportunidades existentes na sociedade, bem como a compensar todas as perdas acumuladas desde o passado de grupos de indivíduos negativamente discriminados, o legislador cuidou de justificar a necessidade de tratamento diferenciado a esses, criando políticas de reservas de vagas ou sistemas de cotas. Nesse sentido, a política de cotas adotada pelo ordenamento jurídico pátrio foi um avanço, já que procura a inclusão no mercado de trabalho formal maior número de cidadãos, sobretudo aqueles historicamente discriminados. Contudo, por não haver nenhum tipo de incentivo, mas tão somente punição ao empregador que não cumpre as cotas, tais políticas, por vezes, não se mostram tão eficazes, apresentando-se em forma de limitação, restrição ao poder potestativo do empregador em eleger quem admitir e manter em seu quadro de empregados. O presente estudo, portanto, tem por objetivo analisar, primeiramente, o poder potestativo do empregador e sua limitação frente às políticas de discriminação positiva e imposição de cotas para contratação de pessoas com deficiência, e ainda, estatisticamente, perquirir se há efetividade e eficácia da referida medida nas relações de trabalho.
Palavras-chaves: poder potestativo do empregador. Ações afirmativas. Direito do trabalho. Políticas de discriminação positiva.
Abstract: In order to reduce the differences in opportunities in society, as well as to compensate all losses accumulated since the past of groups of individuals negatively broken down, the legislator cared to justify the need for differential treatment to these, creating policies for reservations of places or quota systems. Accordingly, the policy of quotas adopted by the legal system paternal was a step forward, since demand the inclusion in the labor market formal greater number of citizens, especially those historically discriminated against. However, that there is no type of incentive, but that punishing the employer does not meet the quotas, such policies, sometimes, are not as effective, presenting-if in the form of limitation, restriction to power potestativo the employer’s elect who admit and maintain in its table of employees. This study, therefore, aims to analyze, firstly, the power potestativo of employer and its limitation front to the policies of positive discrimination and the imposition of quotas for hiring persons with disabilities, and yet, statistically, perquirir if there is effectiveness and efficacy of the measure in working relationships.
Palavras-chaves: poder potestativo do empregador. Ações afirmativas. Direito do trabalho. Políticas de discriminação positiva.
Sumário: 1. Introdução. 2. O poder potestativo do empregador e o limite imposto por ações afirmativas de políticas de discriminação positiva à contratação de empregados. 3. As ações afirmativas de políticas de discriminação positiva nas relações de trabalho. 3.1. O sistema de cotas ou de reserva legal de vagas no Brasil. 3.2. Vagas para reabilitados ou pessoas portadoras de deficiências. 4. Dados estatísticos da efetividade do sistema de cotas no mercado formal de trabalho. 5. Considerações finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Em recente publicação do jornal Valor Econômico, de 25/06/2010, a autora do texto, Luiza de Carvalho assim informou: “A Justiça do Trabalho de São Paulo está mais flexível com as empresas em relação ao cumprimento da Lei no 8.213, de 1991. A norma estabelece cotas para as companhias contratarem portadores de deficiência. A 70ª Vara do Trabalho de São Paulo cancelou uma autuação de R$ 38 mil a uma empresa de telecomunicações por não cumprir a cota de 4% dos portadores de deficiência em seu quadro. A Justiça levou em consideração a dificuldade em encontrar portadores no mercado em número suficiente para preencher a cota, reconhecendo os esforços apresentados pela empresa no processo.”
Efetivamente, essa é uma questão recorrente na atualidade.
Pela Lei 8213/91, as empresas com mais de 100 empregados são obrigadas a contratar pessoas portadoras de deficiência, a fim de cumprir a cota que a Lei lhe impõe, resultado de uma ação afirmativa de política de discriminação positiva.
É certo que algumas hipóteses injustificadamente discriminatórias, observadas pela sociedade, merecem tratamento legal, via “discriminações positivas”, ou “ações afirmativas”, instrumentando a inserção de trabalhadores no mercado formal de trabalho.
A lei brasileira, assim, por estímulo constitucional, estabelece ações afirmativas categóricas nesse sentido, fixando cotas de reserva de vagas.
De certa forma, pode-se dizer que a fixação de cotas vem a restringir parte do poder potestativo do empregador, que se vê obrigado a contratar um certo determinado número de empregados portadores de deficiência, por exemplo, independentemente de sua vontade. Todavia, as empresas, até mesmo em razão de fiscalização e autuações, vêm tentando se adequar à “nova” realidade. Na verdade, realidade não tão “nova” assim, já que as cotas foram previstas na Lei que consolida a legislação que dispõe sobre os Planos de Benefícios e Custeio da Previdência Social e sobre a organização da Seguridade Social, publicada em 1.991. Contudo, somente após a entrada em vigor do Decreto 3.298/99 é que a Lei começou a ser exigida em relação às cotas, instigada pela fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego e também pelo Ministério Público do Trabalho.
Na prática, contudo, a obrigação legal da empresa esbarra em algumas dificuldades, como ter que se adaptar fisicamente para receber e dar condições de trabalho dignas aos trabalhadores que requerem cuidados especiais, bem como encontrar mão-de-obra qualificada e disponível para ocupar suas vagas de emprego.
O presente estudo, portanto, tem por objetivo analisar, primeiramente, o poder potestativo do empregador e sua limitação frente às políticas de discriminação positiva e imposição de cotas para contratação de pessoas com deficiência, e ainda, estatisticamente, perquirir se há efetividade e eficácia da referida medida nas relações de trabalho.
2. O PODER POTESTATIVO DO EMPREGADOR E O LIMITE IMPOSTO POR AÇÕES AFIRMATIVAS DE POLÍTICAS DE DISCRIMINAÇÃO POSITIVA À CONTRATAÇÃO DE EMPREGADOS
A Consolidação das Leis do Trabalho estabelece, em seu artigo 2º, que empregador é a empresa individual ou coletiva (e aqueles a ela equiparados) que, por suportar os riscos da atividade econômica, está investido do poder de admitir, assalariar e dirigir a prestação pessoal dos serviços. Essa prerrogativa é conhecida como “poder potestativo”.
Dentre os requisitos do artigo 3º da CLT, que caracterizam a relação de emprego, o principal é a existência de subordinação jurídica entre empregado e empresa.
A subordinação é o elemento específico e nuclear da relação de emprego, marco distintivo das demais relações jurídicas que envolvam a prestação de trabalho.
O empregador detém o poder, porquanto é o proprietário dos meios de produção, controla juridicamente o conjunto da estrutura empresarial, e assumiu os riscos da atividade empresarial, dentre outros.
Assim, o empregador, que exerce um empreendimento econômico, reúne, em sua empresa, os fatores de produção, desempenhando a sua função social, assumindo os riscos da atividade econômica, daí decorrendo, sem dúvida, seu poder potestativo e seu direito de dispor daqueles fatores de produção.
A manifestação do poder potestativo do empregador[1] está inicialmente na própria organização, sob a estrutura hierárquica – o que, quando e como produzir -, assentada em pressupostos legitimantes como a liberdade econômica e o direito de propriedade.
A vontade da empresa é determinante, podendo servir-se da força de trabalho colocada à disposição por força do contrato, cercada por alguns limites, conforme melhor interesse ao atingimento da finalidade econômica.
Contudo, tanto a doutrina como a Jurisprudência têm entendido que a finalidade da empresa deve ser vista para além da obtenção de lucros, gerar empregos e fomentar a economia (finalidade econômica), pois como um ente social que desempenha importante papel na sociedade constitui-se em meio de inserção social e identificação pessoal do trabalhador, exercendo uma inegável função social.
Ademais, se o poder potestativo, conforme entende a doutrina dominante, emana do contrato de trabalho, deve atender à função social do contrato prevista no art. 421 do Código Civil de 2002, que preceitua: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
Nesse sentido, o ordenamento jurídico tem cuidado de balizar os limites ao exercício do poder potestativo de sorte que a empresa possa desfrutar desse poder sem prejuízo ao respeito à dignidade humana e à preservação de sua função social, todos princípios constitucionais conquistados pela sociedade.
Sim, segundo Aldacy Coutinho[2]:
“[…] desenvolvido o direito econômico, o Estado passou a intervir na atividade empresarial, regulamentando problemas relacionados com a distribuição e produção de bens e serviços, visando assegurar o atendimento das necessidades dos integrantes da sociedade.”
O Estado, sim, reconheceu a propriedade privada e a livre iniciativa elevando-as à categoria de norma constitucional, mas também ditou algumas regras de controle ao seu exercício.
“[…] De qualquer sorte, o direito não fecha os olhos à empresa, reconhecendo-a no papel social que hoje desempenha e atribuindo-lhe função, embora não a tenha tomado, de forma clara, como ente capaz de ser sujeito de direito e obrigações, mas reconhecendo-a como fenômeno econômico-social, no qual se travam relações jurídicas. Protege o capital, mantendo a dominação sob ameaça de punição.”[3]
Convivem hoje num único corpo uma Constituição econômica e uma social; no primeiro plano a liberdade de iniciativa e o direito de propriedade sobre o capital e o lucro; num plano diverso, o trabalho, como direito social, com a garantia de uma remuneração que atenda às necessidades do trabalhador como retribuição, indicada idealmente como justa, o reconhecimento do direito ao trabalho, o respeito e dignidade ao trabalhador.
Paulatinamente, destarte, foram instituídas, e ainda há projetos de instituição, de novas políticas de discriminação positivas também relacionadas ao trabalho.
Atualmente, o empregador vê-se limitado em seu poder potestativo, à contratação e manutenção de seus empregados, através de leis fixadoras de cotas, tanto para aprendizes, quanto para pessoas com deficiências, sendo que há projeto de lei para também serem fixadas cotas de negros nas empresas.
Nesse estudo, cuidaremos de analisar especificamente o vigente sistema de cotas para pessoas portadoras de deficiências.
3.AS AÇÕES AFIRMATIVAS DE POLÍTICAS DE DISCRIMINAÇÃO POSITIVA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
É fato que há, no mundo do trabalho, explícitas ou veladas práticas excludentes de mão-de-obra, fundadas em preconceitos e discriminações de variados matizes, malgrado o existir de normas constitucionais e infraconstitucionais que colimem proibí-las.
Desse modo, para que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil sejam alcançados, reclamam comportamentos ativos ou, dizendo de outro modo, pedem ações afirmativas.
Joaquim B. Barbosa Gomes[4], Ministro do Supremo Tribunal Federal, observa que as ações afirmativas:
“Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade”.
Portanto, as ações afirmativas visam combater os efeitos acumulados em virtude das discriminações ocorridas no passado.
Nesse sentido, há políticas e normas – legais e normativo-sindicais – que procuram assegurar, por meio da utilização das discriminações positivas o impessoal acesso ao mercado de trabalho, compulsoriamente ou não.
Na opinião de Ana Flávia Osternack[5]:
“[…] diante da vulnerabilidade e exclusão social de determinados grupos, verifica-se que o legislador determinou formas de tratamento diferenciado para aplicar a igualdade de fato invertendo o próprio conceito de discriminação (negativa) importando beneficiar uma minoria, “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”. Assim, para a concretude do princípio da igualdade foram normatizadas medidas, diante de critérios biológicos, sócio-econômicos e sociais, no intuito de proporcionar igualdade de oportunidades às minorias vulneráveis, aqui também denominados “excluídos”.
Este tratamento diferenciado deu ensejo a um novo paradigma do termo discriminação, a chamada discriminação positiva. Portanto, é discriminando positivamente determinados grupos que se alcança a igualdade justa almejada pela sociedade.”
Confere-se relevo às estatísticas oficiais e levantamentos doutrinários a respeito das desigualdades no Brasil, e “as políticas públicas ou privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de etnia e de compleição física”[6], em face das atuais controvérsias registradas sobre o assunto, inclusive as que se relacionam com as denominadas “cotas”, ou reservas de vagas, legalmente estabelecidas.
Com efeito, já no seu preâmbulo, a Constituição Federal de 1988 estabelece como objetivo a instituição de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais (…) a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (…).
No mesmo sentido, seu artigo 1º estabelece como fundamentos da República Federativa do Brasil a cidadania (inciso II) e a dignidade da pessoa humana (inciso III).
E com o mesmo intuito, seu artigo 3º estatui que a República Federativa do Brasil tem como objetivos fundamentais: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (Grifo nosso)
A tanto, importante ressaltar a observação de Carmem Lúcia Antunes Rocha que “os verbos utilizados pelo legislador constituinte para definir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são verbos que evocam ação: construir, erradicar, reduzir, promover etc”.[7]
Desse modo, para que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil sejam alcançados, reclamam comportamentos ativos ou, dizendo de outro modo, pedem ações afirmativas. E essas ações afirmativas devem partir do Estado, mas também da Sociedade, conforme o próprio texto constitucional dispõe.
Atualmente, há no ordenamento medidas, como o sistema de cotas, tanto para aprendizes, quanto para pessoas portadoras de deficiências, que limitam de certa forma o poder potestativo empresarial, cabendo a todos, Estado e sociedade em geral, dar efetividade às mesmas.
3.1. O SISTEMA DE COTAS OU DE RESERVA LEGAL DE VAGAS NO BRASIL
Com o intuito, portanto, de discriminar positivamente alguns grupos que historicamente foram desarrazoadamente discriminados, o Poder Público implementou o sistema de cotas, procurando proporcionar a participação de todos os cidadãos no processo democrático e propiciar-lhes o pleno exercício da cidadania.
Para uma melhor compreensão acerca do assunto, Gláucia Gomes Vergara Lopes[8] define o sistema legal de cotas:
“[…] Sistema de reserva legal de vagas ou sistema de cotas é o mecanismo compensatório utilizado para inserção de determinados grupos sociais, facilitando o exercício dos direitos ao trabalho, à educação, à saúde, ao esporte, etc. É uma forma de ação afirmativa com intuito de tentar promover a igualdade e o equilíbrio de oportunidades entre os diversos grupos sociais.”
É, portanto, uma política de ação afirmativa pela qual o Estado visa diminuir as diferenças existentes em certos segmentos sociais que se encontram em desvantagem, especialmente aqueles que sofrem algum tipo de discriminação desarrazoada.
Ainda, no tocante às ações afirmativas, salienta Cristiane Ribeiro da Silva[9]:
“[…] são importantes instrumentos de inclusão social e consistem em medidas que objetivam superar a discriminação em relação a certos grupos fragilizados, como aqueles correspondentes às mulheres, índios, negros e também pessoas portadores de deficiência, proporcionando-lhes igualdade de oportunidades.”
Efetivamente, com relação à reserva de vagas no trabalho, atualmente, há vigente o sistema de cotas para aprendizes e também de pessoas portadoras de deficiências, sendo esse último, portanto, objeto do nosso estudo.
3.2. VAGAS PARA REABILITADOS OU PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIAS
Fazendo um breve escorço histórico sobre o tema, temos que o sistema de cotas empregatícias para reabilitados ou portadores de deficiência, teve sua origem na Europa, no início do século XX. Ele foi utilizado pelos países que participaram da Primeira Guerra Mundial como um meio alternativo de empregar os ex-combatentes mutilados nos conflitos, que sobrecarregavam seus sistemas previdenciários.
Frente a essa situação, em 1923, a OIT – Organização Internacional do Trabalho – publicou uma recomendação na qual aconselhava seus países membros a instituírem leis nacionais que obrigassem entidades públicas e empresas privadas a contratarem ex-combatentes com deficiência. Após vinte e um anos, foi publicada nova recomendação na qual a obrigatoriedade de contratação se estendeu para todas as pessoas com deficiência.
Em detrimento a essa recomendação, os países europeus passaram gradativamente a adotar as cotas[10]. Os primeiros países que adotaram esta sistemática foram a Inglaterra e a Holanda, porém, na atualidade ela já alcança cerca de dois terços dos países europeus.
A legislação brasileira, visando garantir a colocação de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, lançou mão de um programa que reserva vagas de emprego às pessoas com deficiência, em instituições públicas e privadas, comumente conhecido como política de cotas.
Relativamente aos cargos e empregos públicos, a Constituição Federal Brasileira de 1988 estabelece, no inciso VIII do artigo 37, que: “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.
Nesse passo, tanto a Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, como o Decreto 3298, de 20 de dezembro de 1999 estipulam que deverão ser reservadas no mínimo 5%, e no máximo 20% das vagas ofertadas em concursos públicos a candidatos com deficiência.
No que tange a obrigação das instituições privadas em contratar pessoas com deficiência, o artigo 93, da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, estabelece que a empresa com mais de cem empregados está obrigada a contratar beneficiários reabilitados ou pessoas com deficiência habilitadas, cujo percentual varia de 2% a 5%, de acordo com o número de empregados da empresa.
Em comentário à norma em tela, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca[11] observa que:
“[…] trata-se de lei que regulamenta os benefícios da Previdência Social, mas que no particular evidencia-se tipicamente trabalhista, eis que impõe uma conduta patronal em favor de alguns empregados especiais, dirigindo diretamente a contratualidade ao direcionar a vontade dos sujeitos do contrato, na medida em que elege um critério de escolha prioritária em favor das pessoas com deficiência.”
Levando em consideração que a lei reserva vagas a beneficiários reabilitados e a pessoa com deficiência habilitada, cabe verificar as características destes.
Entende-se por pessoa com deficiência habilitada, segundo cartilha da Secretaria de Inspeção do Trabalho[12]:
“[…] Aquela que concluiu curso de educação profissional de nível básico, técnico ou tecnológico, ou curso superior, com certificação ou diplomação expedida por instituição pública ou privada legalmente credenciada pelo Ministério da Educação ou órgão equivalente, ou aquela com certificado de conclusão de processo de habilitação ou reabilitação profissional fornecido pelo INSS. Considera-se, também, pessoa portadora de deficiência habilitada àquela que, não tendo se submetido a processo de habilitação ou reabilitação, esteja capacitada para o exercício da função” (art. 36, §§ 2° e 3°, do Decreto n. 3.298/99).
Ainda, na mesma cartilha, define-se pessoa com deficiência reabilitada como:
“[…] a pessoa que passou por processo orientado a possibilitar que adquira, a partir da identificação de suas potencialidades laborativas, o nível suficiente de desenvolvimento profissional para reingresso no mercado de trabalho e participação na vida comunitária” (art. 31, do Decreto n.° 3.298/99).
De acordo com o art. 93, da Lei 8213, de 24 de julho de 1.991, a reserva de emprego às pessoas com deficiência, no âmbito das instituições privadas, é garantida conforme escala que, dependendo do número de empregados, fixa à empresa a obrigação de contratar determinado percentual de pessoas com deficiência.
Essa é a primeira limitação ao poder potestativo do empregador: fixação de cotas com obrigação pelo mesmo em contratar e manter em seus quadros de empregados reabilitados ou portadores de deficiência.
Em face do escalonamento acima, pertinente a observação de Ricardo Tadeu M. da Fonseca[13]:
“[…] A primeira peculiaridade do ordenamento brasileiro é a exclusão das pequenas e microempresas da obrigatoriedade em questão, o que afasta as que mais empregam, segundo estatísticas oficiais, seja em razão da alta incidência dessas empresas no mercado, seja em razão do processo menos automatizado que as caracteriza.”
Outra limitação ao poder potestativo do empregador é o dispositivo legal que veda a despedida arbitrária de trabalhadores reabilitados ou com deficiência, exigindo, para tal, a contratação de substituto de condição semelhante.
Neste sentido, a titulo de ilustração, o seguinte acórdão exarado pela 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região/Paraná:
“REINTEGRAÇAO NO EMPREGO. EFEITOS E LIMITES. De acordo com o art. 93, § 1º, da Lei n.° 8.213/91, verifica-se que “a dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante”, o que não foi cumprido pelos Recorrentes, uma vez que inexiste qualquer prova nos autos indicando a contratação de outro empregado reabilitado ou de deficiente habilitado para o cargo anteriormente ocupado pela Recorrida, o que torna nula a dispensa (art. 9º, CLT, c/c art. 187, CC). Todavia, a referida proteção no emprego somente prevalece enquanto não houver contratação de outro empregado nas mesmas condições, não se podendo estender “ad eternum” a reintegração determinada pelo ilustre Juízo monocrático”. (TRT-PR-06963-200201 2-09-00-8-ACO-05379-2007 – 4A. TURMA. Relator: LUIZ CELSO NAPP – Publicado no DJPR em 02-03-2007)
Da mesma forma julgou o TST:
“EMPREGADO REABILITADO – RESILIÇÃO – CRITÉRIOS ESTABELECIDOS NO ART. 93, § 1º, DA LEI N. 8213/91 – GARANTIA DE EMPREGO INDIRETA – REINTEGRAÇÃO. I – Enquanto o caput do supracitado art. 93 estabelece cotas a serem observadas pelas empresas com cem ou mais empregados, a serem preenchidas por beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência habilitadas, o seu § 1º cria critério para a dispensa desses empregados (contratação de substituto de condição semelhante), ainda que seja para manter as aludidas cotas. II – Significa dizer que, não obstante o critério de dispensa pudesse visar a manutenção das cotas previstas no artigo 93, a interdição do poder potestativo de resilição consagrado no parágrafo primeiro traz consigo a concessão de garantia de emprego. III – Porém, não se trata de concessão de uma garantia de emprego por tempo indeterminado, mas sim, de garantia provisória subordinada à comprovação de posterior contratação de substituto de condição semelhante. Assim, se a reclamada comprovar, na liquidação de sentença, que após a dispensa do reclamante contratara outro empregado de condição análoga, deve ser convertida a reintegração em indenização substitutiva constituída dos salários e demais direitos trabalhistas do período mediado entre a resilição contratual e a nova admissão. IV – De outro lado, não comprovada a contratação de substituto, poderá a embargante, após a reintegração, exercitar o direito potestativo de resilição se atendido o requisito do parágrafo primeiro do artigo 93 da Lei 8.213/90. V – Recurso conhecido e provido.” (TST – RR – 869/2004-242-02-00.3, 4ª Turma, publ. 19/12/2006, fl. 1)
4. DADOS ESTATÍSTICOS DA EFETIVIDADE DO SISTEMA DE COTAS NO MERCADO FORMAL DE TRABALHO
Concretamente, observando os dados existentes a se verificar a efetividade da Lei em comento, em relação à situação das pessoas com deficiência no mercado formal de trabalho, a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN) publicou, em agosto de 2006, sob a coordenação de Andréa Schwartz e Jaques Haber, cartilha em que exibe levantamentos acerca da colocação destas pessoas no emprego formal, e constataram que 52% delas são inativas. Se fossem consideradas as que trabalham, somente 10,4% possuem carteira assinada.
Segundo a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) 2007, dos 37,6 milhões de trabalhadores ativos, 348,8 mil são trabalhadores com deficiência, o que representa apenas 1% do total de trabalhadores com emprego formal.
Neste sentido, salienta Schwartz que “ainda é um número baixo se comparado à representatividade da população com deficiência (14,5%, dados fornecidos pelo CENSO/IBGE/2000) junto à população geral”[14].
Vale ressaltar que a Lei de Cotas está prestes a completar vinte anos de existência, entretanto, somente nos últimos anos é que seu cumprimento tem sido alvo de fiscalização por parte do Ministério Público do Trabalho (MPT) e das Secretarias Regionais do Trabalho (SRTE’s), que vêm atuando junto às empresas privadas, no intuito de fazê-las cumprir a obrigação legal imposta pela legislação.
Os dados coletados no Sistema Federal de Inspeção do Trabalho -SFIT/SIT/MTE, comprovam a afirmação mencionada no parágrafo acima. Através das informações extraídas deste sistema, o Ministério do Trabalho e Emprego elaborou e divulgou, no seu site, um quadro comparativo da fiscalização do trabalho no periodo de 1990 a 2007.
Em dezessete anos de fiscalização, o MTE, por meio de suas Secretarias Regionais do Trabalho (SRTE’s), averiguou 6,3 milhões de empresas, onde alcançou o número de 390,6 milhões de empregados, autuando cerca de 1,3 milhões delas, ou seja, 21% do total das empresas fiscalizadas.
Ressalte-se que os dados atinentes à contratação de trabalhadores com deficiência somente foram lançados no quadro comparativo proferido pelo SFIT/SIT/MTE, a partir do exercício de 2005, posto que antes desta data, não foram fornecidas quaisquer informações a respeito do assunto.
Não obstante, os números revelam que no período compreendido entre 2005 e 2007, foram contratados pouco mais de 55 mil trabalhadores com deficiência sob a ação da fiscalização das SRTE’s, cerca de 22% no primeiro ano, no segundo ano o percentual aumentou para 36%, atingindo 40% no terceiro ano.
Utilizando-se do trabalho publicado por Marcelo Néri, Alexandre Pinto de Carvalho e Hessia Guillermo Costilia, sobre a inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal, Gláucia Lopes[15] constatou um aumento na contratação dessas pessoas a partir da Lei de Cotas, mais precisamente após a entrada em vigor do Decreto 3.298/99. Eis os dados:
“[…] 31% do total dos portadores de deficiência encontram-se empregados em empresas que possuem menos de 100 empregados; 29% em empresas que apresentam um número de empregados superior a 1.000 empregados; 14,57% nos estabelecimentos de 100 a 249 empregados; 13,57% naquelas empresas que apresentam de 250 a 499 empregados; e 11,86% para empresas com 500 a 999 empregados.”
Curiosamente, constatou-se que a pequena empresa é a que emprega parcela mais expressiva de trabalhadores com deficiência, mesmo estando desobrigada ao cumprimento do percentual disposto na Lei de Cotas.
Segundo dados do infojobs.com.br, independentemente da crise econômica que se arrasta no cenário mundial, as oportunidades oferecidas para deficientes tem aumentado ano após ano. Para se ter uma noção, o SINE ofereceu mais de 36 mil empregos para deficientes em 2007, e apenas 7 mil dessas vagas foram preenchidas. O que ocorre, portanto, é a sobra de vagas para portadores de deficiência.
Especificamente no Paraná, levando em consideração dados estatísticos postados no site da Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego e Promoção Social do Paraná – SEPT/PR, entre janeiro de 2003 e abril de 2009, foram cadastrados aproximadamente 28 mil pessoas com deficiência, para 27,5 mil vagas de emprego ofertadas, sendo encaminhados 41,6 mil candidatos para entrevista de emprego. Das vagas ofertadas, 41% delas foram preenchidas, ou seja, 11,2 mil postos de trabalho foram ocupados por este seguimento.
Em âmbito nacional, os dados demonstram que mesmo após o advento da Lei 8.213/91, regulamentada após oito anos pelo Decreto no 3.298/99, não houve aumento expressivo do percentual de empresas grandes que cumprem as cotas, justamente diante das dificuldades que encontram.
Um desses entraves seria a concessão de pensão mensal a todos os deficientes estipulada pela Lei Orgânica de Assistência Social.
Muitas das pessoas que recebem o benefício preferem complementar a renda com atividades informais a procurar um trabalho com registro em carteira e pequenos salários, já que assim perdem o direito à pensão.
Outro problema seria a dificuldade de encontrar deficientes capacitados e especializados para ocupar as vagas disponíveis no mercado.
Além disso, não podemos deixar de identificar um grave problema nas cidades brasileiras, qual seja, a ausência de políticas públicas para a implementação de uma infraestrutura urbana que respeite os portadores de deficiência física, não exacerbando as suas limitações inerentes, impedindo-os de se deslocar com independência e dignidade. Ainda há a prevalência do passado.
E o mais grave: os deficientes se defrontam com os preconceitos e com as discriminações existentes até então. São excluídos, pela própria família, pelo ensino com qualidade e participação social plena.
Partindo disso, não basta o Estado apenas aplicar multa no intuito de obrigar a empresa a cumprir as cotas, pois, para que o objetivo da norma seja alcançado, é necessário que se faça indicar, de maneira precisa, como cumprir tal obrigação.
Para Sérgio Pinto Martins[16]:
“[…] somadas as porcentagens de aprendizes e a de pessoas reabilitadas ou portadoras de deficiência, a empresa tem um grande percentual a destinar para pessoas específicas. Num contexto de globalização, tais porcentuais podem diminuir as condições de concorrência da empresa no mercado.
Não há dúvida de que a questão é social e necessita de considerações, porém a empresa não pode arcar sozinha com tais hipóteses, principalmente quando empresas de outros países não têm as referidas obrigações.”
E, conforme já vem decidindo, assim também tem entendido o Judiciário, pois está ponderando, antes de penalizar as empresas, as dificuldades em encontrar portadores no mercado em número suficiente para preencher a cota e reconhecendo os esforços apresentados por essas a tanto. Isso é o que mostra a matéria jornalística que iniciamos a introdução do presente estudo.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como meio de diminuir as diferenças de oportunidades existentes na sociedade, bem como a compensar todas as perdas acumuladas desde o passado de grupos de indivíduos negativamente discriminados, o legislador cuidou de justificar a necessidade de tratamento diferenciado a esses, criando políticas de reservas de vagas ou sistemas de cotas.
Nesse sentido, a política de cotas adotada pelo ordenamento jurídico pátrio foi um avanço, já que procura a inclusão no mercado de trabalho formal maior número de cidadãos, sobretudo aqueles historicamente discriminados.
Contudo, por não haver nenhum tipo de incentivo, mas tão somente punição ao empregador que não cumpre as cotas, tais políticas, por vezes, não se mostram tão eficazes, apresentando-se em forma de limitação, restrição ao poder potestativo do empregador em eleger quem admitir e manter em seu quadro de empregados.
Sim, em que pese essa modalidade de contratação estimular os empregadores no cumprimento das cotas, ela não atende ao fundamento inclusivo da norma internacional, posto que não basta inserir o trabalhador no ambiente de trabalho da empresa, mas sim, oferecer-lhe meios para que possa alcançar o tão almejado desenvolvimento profissional, de modo a construir uma vida produtiva, independente e autônoma.
O Estado não pode transferir tal responsabilidade para as empresas. Deve haver uma interação de todos: Estado, classe empresarial e sociedade em geral.
Isso porque, da forma como o atual sistema de reserva de vagas de emprego é previsto como mecanismo de inclusão, através de leis ordinárias que oportunizam o acesso ao trabalho formal, o que se pôde verificar é que, em relação ao emprego, muitas vezes as vagas destinadas a candidatos com deficiência não são preenchidas por falta de procura, ou por falta de pessoas habilitadas a tanto. Isso ocorre na maioria das oportunidades pelo baixo índice de escolaridade em geral.
Verificou-se que mesmo com a vigência da lei de cotas, o índice de trabalhadores deficientes com carteira de trabalho assinada alcança tão somente 1% do total de trabalhadores com emprego formal. Não mais que uma ínfima parcela da classe trabalhadora.
Nesse sentido, o Estado ainda tem um papel muito importante a contribuir para o processo inclusivo, já que a falta de conhecimento, por parte da sociedade, é um dos entraves ao atingimento da finalidade dessas políticas. Da mesma forma, outro entrave é a falta de capacitação para o trabalho, eis que não são ofertados suficientemente programas de capacitação profissional por parte do Estado.
Nesse contexto, vencer estes desafios deve se tornar uma meta por todos aqueles que tratam com seriedade do assunto. Tanto que não é raro o caso de empresas que assumem o papel do Estado quando qualificam a mão de obra, assumindo os seus custos; preparam os locais de trabalho, encontram, treinam todo o seu pessoal ao convívio social, atuando na integração social.
Necessária, portanto, a interação de todos: Estado, classe empresarial e sociedade em geral.
Mestranda no Curso de Direito Empresarial e Cidadania, pelo Centro Universitário Curitiba. Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1995). Atualmente é advogada – Gomes Coelho & Bordin Sociedade de Advogados e professora da Faculdade de Ensino Superior Dom Bosco. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho, atuando principalmente no direito empresarial
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