Resumo: As interações entre a democracia e o sistema capitalista de mercado são mais complexas do que a praxe cotidiana tende a supor. A análise das principais características e fundamentos dos dois institutos permite a identificação de alguns pontos de conflito. O objetivo do presente trabalho é justamente apresentar de modo conciso e técnico alguns destes conflitos teóricos, capazes de por em dúvida a compatibilidade ou afeição teórica entre o regime democrático e o sistema de produção capitalista. Demonstramos que sob certo aspecto, a eficiência econômica capitalista, necessária à sempre maior acumulação de riqueza, é mitigada pelas práticas democráticas; o mesmo se diga da igualdade política, tão cara a democracia, porém, em certo sentido, prejudicada pela desigual propriedade dos meios de produção, própria do capitalismo. Não nos furtamos, por outro lado, de analisar como estas zonas de conflito podem ser teoricamente superadas, servindo o processo democrático como meio de legitimação das práticas capitalistas, ao mesmo tempo em que a igualdade política formal é garantida nos regimes poliarquicos atuais.
Palavras-chave: Democracia; capitalismo; interações; conflitos.
Sumário: 1 – Introdução; 2 – Características da Democracia; 3 – Capitalismo de mercado; 4 – Relações entre o capitalismo e a democracia; 5 – Conclusão; 6- Referências bibliográficas.
1. Introdução
Correlação frequente na atualidade é aquela que se faz entre capitalismo e democracia. É comum apresentar estes institutos como se possuíssem uma ligação necessária, como se fossem duas faces da mesma moeda, o que geraria uma dependência simbiótica para sua existência e desenvolvimento.
Em que pese sua difusão, em especial, nos meios de comunicação midiática ocidentais e nos argumentos de analistas ideologicamente comprometidos, este é um tratamento simplista e equivocado do tema. Simplista, pois, em regra, reduz tanto o capitalismo como a democracia a conceitos unívocos, nos quais se constata a desconsideração de suas complexas e, até hoje, não consolidadas características. Equivocado, pois ignora inúmeros argumentos teóricos e exemplos práticos, aptos a demonstrar a possibilidade de coexistência pacífica e até profícua entre capitalismo e regimes antidemocráticos.
O que propomos, portanto, é a análise, nas páginas que se seguem, das características (anti)democráticas do capitalismo de mercado, de modo a desmistificar a apontada relação necessária entre os institutos.
Não pretendemos fazer qualquer espécie de apologia a regimes despóticos de todos os matizes, mas apenas destacar ao leitor tendências antidemocráticas que permeiam o capitalismo de mercado. O conhecimento de tais movimentos antidemocráticos deve interessar intensamente aos defensores da democracia, pois apenas com ampla consciência de tais dados terão meios para neutralizar ou minimizar seus perniciosos efeitos.
Estabelecidos o objetivo e a importância do trabalho para sua consecução buscaremos a fixação de um conceito aceitável e completo de democracia, bem como das principais características do capitalismo de mercado, evitando-se os equívocos gerados pela simplificação excessiva ou o direcionamento arbitrário da discussão. Apenas com este trabalho inicial, sentiremos estar aptos a identificar aspectos conflitivos entre os institutos.
Considerados os limites metodológicos e formais da presente espécie de trabalho, teremos como marco teórico a obra de Robert A. Dahl, “Sobre a Democracia”, sem descurar dos apontamentos de outros autores que se dedicaram e muito contribuíram para o desenvolvimento do tema.
2. Características da Democracia
Como afirmamos linhas acima, para um adequado desenvolvimento do tema faz-se imprescindível a fixação de um conceito completo de democracia. Além disso, é preciso ter consciência da existência de uma democracia ideal e de uma real ou formal, sendo a primeira, a construção teórica dos estudiosos acerca de um regime perfeitamente democrático, e a segunda, sua existência real, obtida a partir do estudo da experiência prática dos países tidos por democráticos.
Caso fossemos obrigados a destacar somente uma característica marcante da democracia, nos valheríamos da expressão utilizada por Dahl: “a participação democrática desenvolve-se a partir do que poderíamos chamar de lógica da igualdade”[1]. A consideração da igualdade entre os cidadãos, igualdade natural e ampla, é requisito essencial para a definição de democracia. Apenas com agentes material e formalmente iguais seria possível, em última análise, a existência da verdadeira democracia, na qual estes indivíduos, esclarecidos e politicamente interessados, tomariam as decisões que interessam a toda a sociedade.
Este modelo democrático, que podemos ter como o ideal, isto é, no qual os indivíduos são politicamente iguais, apenas se consolidaria, segundo Dahl, se todos os cidadãos tivessem oportunidade de: a) formular suas preferências; b) expressar suas preferências; e, c) ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo[2]. Tais características são necessárias, mas não suficientes.
De modo a garantir a existência destas oportunidades, um regime que se pretende democrático deveria ostentar ao menos as seguintes características: a) participação efetiva, com oportunidades iguais e efetivas aos cidadãos; b) igualdade de voto; c) entendimento esclarecido, por meio da oportunidade de compreensão das alternativas possíveis; d) controle do programa de planejamento; e) inclusão ampla dos adultos[3]; f) direitos fundamentais[4]. Tudo isso, poderia ser dividido em duas dimensões, quais sejam, a contestação pública e o direito de participação. Quando faltar qualquer uma destas características ou houver a mácula a alguma destas dimensões, podemos afirmar que seus membros não são politicamente iguais, o que afastaria a democracia, ao menos em sua forma ideal.
Uma democracia perfeita, ou ideal, seria aquela na qual todas as características mencionadas acima se fariam presentes em um grau elevado, de modo a garantir perfeita igualdade política entre os cidadãos. A verdadeira democracia seria totalmente inclusiva e aberta à contestação pública material, isto é, com amplas oportunidades à participação real e esclarecida.
Podemos considerar que pretender a existência simultânea e completa de todas as características acima seria utópico; que vincular a existência da democracia a uma igualdade política total seria condenar tal instituto à irrelevância prática. Mas não é bem assim. Não podemos confundir a ideologia com a prática; aquela é um objetivo maior, um ideal a ser perseguido, que, porém, por vezes, deve fazer algumas concessões à realidade, de modo a que possa ter alguma utilidade prática.
A democracia real (ou Poliarquia, na expressão de Dahl[5]), portanto, é aquela que existe na prática, um regime altamente, mas não totalmente, popularizado e liberalizado. É este conceito, ou abrandamento da democracia ideal, que permite diferenciações necessárias entre regimes democráticos da atualidade, como os dos Estados Unidos, Brasil e Europa ocidental, daqueles despóticos, autocráticos ou de toda sorte, antidemocráticos, como os da Coréia do Norte, China, Irã, em que pese todos estes últimos invocarem a si mesmos, a pecha de democráticos. Somente comparativamente ao tipo ideal de democracia, portanto, podemos, por meio da análise entre a maior ou menor aproximação a este modelo, diferenciar os diversos regimes políticos existentes, enquadrando como democráticos aqueles que mais se aproximam ao modelo ideal.
E como identificar com maior facilidade um país democrático frente a tantos que invocam tal adjetivação? Como facilitar o trabalho do estudioso, não exigindo buscas a características teóricas que se percam em divagações metodológicas? Por meio da identificação de seis instituições políticas características da democracia, quais sejam[6]: funcionários eleitos; eleições livres, justas e freqüentes; liberdade de expressão; fontes de informação diversificadas; autonomia para associações; cidadania inclusiva. Somente a presença destas “instituições democráticas” permitiria que um país fosse tido por democrático.
Neste momento pode surgir o questionamento sobre o que contribui para a democratização de um país. Em outras palavras: quais as condições ou situações que contribuem para a inclusividade e efetivação da contestação pública? Como as instituições democráticas surgem em determinado país?
A resposta adequada e completa a estas questões, infelizmente, ultrapassa os limites materiais e metodológicos do presente estudo, dada sua complexidade e variabilidade no tempo e espaço. Não existem fórmulas democráticas seguras e prontas, sendo certo que diversas peculiaridades ou características podem garantir a viabilidade da democracia, ou mesmo, impedir seu desenvolvimento ou manutenção.
A existência de uma Constituição bem planejada, que garanta estabilidade, responsabilidade política e administrativa, existência e fortalecimento dos partidos políticos, sistema eleitoral adequado e um conjunto efetivo de direitos individuais e sociais, pode ser citada como exemplo de fator que favorece a manutenção e desenvolvimento de uma democracia recém-instalada. Outros exemplos citados de fatores que favorecem a democracia são uma formação sócio-cultural democrática, subordinação das forças militares e de segurança aos representantes eleitos, apoio estrangeiro ao regime democrático (ou, ao menos, não atuação contrária), fracas tensões culturais e, em alguns aspectos, o capitalismo, sob a ótica da liberdade e desenvolvimento que proporciona.
Verifica-se que o conceito de democracia aqui adotado faz uma opção metodológica pelas teorias democráticas que aceitam a compatibilização entre democracia e representação política, superando diversas tendências e tentativas históricas de somente taxar como democráticos governos de representação direta ou assemblear, nos quais, todos os cidadãos tidos como aptos politicamente tomariam todas as decisões políticas diretamente.
Em que pese a natural atração destes discursos e a tendência em considerar este último modelo “mais democrático” do que os demais, fato é que as condições sociais não permitem sua aplicabilidade eficiente a populações que superem centenas ou alguns poucos milhares de indivíduos, o que restringe de tal maneira a possibilidade de sua existência prática que a relega à condição de utopia, superada pelo realismo da democracia representativa. O que existe hoje a título de democracia direta, ao menos no nível macro de Estados-nação, são parcas ocasiões em que a população é chamada a decidir acerca de questão específica e, geralmente, restrita, por meio dos institutos do referendo e do plebiscito.
O que devemos compreender, portanto, é que não obstante as doutrinas clássicas da democracia atribuírem importância fulcral à participação popular nas decisões políticas do Estado temos que aceitar que, seja por limitações estruturais, seja por evolução no conceito, o verdadeiro exemplo de democracia que temos hoje é aquela do tipo representativa, um “arranjo institucional para se chegar a decisões políticas que realiza o bem comum fazendo o próprio povo decidir as questões através da eleição de indivíduos que devem reunir-se para realizar a vontade desse povo”, nos dizeres de Schupeter[7]. Esta é a democracia real, a Poliarquia de Dahl.
Não se trata de abrir mão do poder popular efetivo em troca de direitos passivos e limites constitucionais. A democracia atual, a real, não pode ser taxada como um desvirtuamento da verdadeira democracia. A questão não é tão simples assim. A democracia que temos hoje é aquela que se fez possível no atual momento histórico, o que não impede a busca incessante pela democracia ideal, pela evolução do processo democrático. De acordo com uma visão otimista, o regime político atual pode ser apenas um dos estágios iniciais na busca da democracia ideal. É assim que preferimos pensar.
3. Capitalismo de mercado
Após a realização, no tópico precedente, de breve exposição acerca das características básicas da democracia, tomadas como premissas deste estudo, passemos a sucinta consideração acerca do que se quer afirmar com a expressão capitalismo de mercado.
Inicialmente cabe fixar que o capitalismo é um método de produção, uma organização econômica da sociedade. Não se confunde com o regime político, podendo subsistir e se desenvolver, em tese, sob a égide de regimes democráticos ou autoritários. Não se nega, entretanto, a existência de interações mútuas entre os institutos, sendo certo que, até o presente, não há um consenso acerca das condições ideais para o desenvolvimento do capitalismo. O que se pode afirmar, a partir da observação prática de indicadores macro-econômicos, é que há certa tendência de predileção do capitalismo por países tidos por democráticos (ou seria uma predileção de países democráticos pelo sistema capitalista?); porém, algumas exceções a esta tendência, como China e Rússia, impedem qualquer generalização neste sentido.
O sistema capitalista tem na propriedade privada dos meios de produção sua principal característica identificadora. Não é por mero acaso, portanto, que Adam Przeworsky inicia sua obra “Estado e Economia no Capitalismo” com a seguinte afirmação: “O capitalismo é um sistema em que recursos escassos são privadamente apropriados”[8].
O domínio privado dos meios de produção confere ao próprio mercado a responsabilidade pela alocação de recursos, o que não afasta igual responsabilidade por parte do Estado. Enquanto o mercado age eminentemente segundo o interesse individual e, muitas das vezes, egoístico do proprietário dos recursos produtivos, o Estado age, ou ao menos deveria agir, de acordo com o interesse coletivo, adotando políticas que o mercado, por si só, não teria a capacidade ou o interesse em adotar.
Por mais liberal que se possa adjetivar qualquer espécie de capitalismo já existente, nenhum deles pôde prescindir da atuação diretiva do Estado, por menor que fosse. Nas crises cíclicas do capitalismo, bem observadas por Marx e confirmadas a cada terremoto econômico, o mercado sempre acaba por recorrer ao Estado. Talvez aí um dos fundamentos para a tensa relação entre mercado e Estado, já que aquele, permanentemente clamando por liberdade e livre iniciativa, não pode abrir mão do poder coercitivo e legitimador deste último.
Esta legitimação, aliás, pode ser apontada como uma das duas condições necessárias para a existência, manutenção e desenvolvimento do capitalismo moderno. Sem ela, o capitalismo pode entrar em franco colapso, em razão de suas falhas intrínsecas, em especial, na distribuição da riqueza, geradoras de conflitos e revoluções indesejadas.
Ao lado da legitimidade, como segunda condição necessária ao capitalismo, temos a acumulação continuada de riqueza. O atual modelo capitalista exige o aumento constante de mercado, produção e riqueza, não convivendo pacificamente com a estagnação econômica. Conforme já afirmavam Marx e Engels, em seu Manifesto Comunista, “impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo terrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda a parte”[9].
Quando a acumulação de riquezas e a legitimidade se vêem de alguma forma ameaçadas é o capitalismo que não vai bem.
O que se disse sobre o capitalismo, em que pese a brevidade, é o que basta para a análise que se coloca a seguir.
4. Relações entre o capitalismo e a democracia
Não há qualquer espécie de consenso entre aqueles que se propõe a discutir as interações entre o sistema capitalista e os regimes democráticos. De um lado, com especial relevo a autores qualificados como marxistas, estão aqueles que, destacando as zonas problemáticas ou de atrito dos institutos, pregam sua incompatibilidade intrínseca; de outro, temos autores que, sem descurar dos percalços constatados, defendem o capitalismo de mercado como o sistema econômico mais favorável à democracia. Resolver questão tão grandiosa, portanto, não será o objetivo deste trabalho, que se contentará em trazer a lume alguns aspectos conflitivos desta relação.
Iniciaremos nossa análise recordando que as principais teorias acerca da democracia afirmam a participação popular ampla, igual e livre como um de seus pilares. Somente diante da possibilidade ampla de participação da população, em regra, consolidada por meio da escolha dos dirigentes políticos máximos, um regime poderia ser tido como democrático, isto é claro, desde que satisfaça a outros requisitos essenciais, que no momento se abstraem.
Os dirigentes eleitos pelo voto popular democrático, ao menos sob uma perspectiva teórica, devem contas à população, devendo agir como verdadeiros representantes dos interesses coletivos, muitas das vezes por meio de escolhas que contrariam interesses particulares individuais ou setoriais. É exatamente na consecução deste objetivo que os políticos, representantes do povo, se valem do poder de alocação de recursos do estado, aí incluindo, as transferências de renda, direcionamento de investimentos, imposição de taxas e tributos, ou mesmo, pela atuação direta na economia.
O que se afirma, com muita freqüência na doutrina, é que o Estado ao realizar sua função precípua, isto é, de administrador público, gera ineficiências. Aliás, Przeworsky chega a afirmar que “o Estado sequer precisa fazer qualquer coisa para que as ineficiências ocorram: basta a mera possibilidade de que possa vir a fazer qualquer coisa”[10].
Sob esta perspectiva, os mercados, por meio da tradicional lei da oferta e da procura, bem como por meio da livre iniciativa, seriam muito mais eficientes economicamente do que o Estado, que ao transferir rendas, alocar recursos de modo dissociado das leis de mercado e regular a economia geraria ineficiências.
A possibilidade da população opinar pode não gerar a melhor escolha sob o aspecto econômico. O fato da democracia permitir ao cidadão despossuído, não proprietário de qualquer recurso produtivo e muitas vezes sem qualquer preparo técnico, alocar, indiretamente através da escolha do dirigente político, recursos pertencentes a outrem, abre a possibilidade de escolhas ineficientes.
Ademais, o próprio processo político de eleição e tomada de decisões de governo, toda a burocracia envolvida, contribui para o aumento da ineficiência gerada pelo Estado. É fato notório que, visando influenciar as decisões governamentais, há um grande gasto financeiro, de tempo e força humana dos detentores do poder econômico; situação agravada pelo fato de que muitas vezes seus interesses entram em conflito, exigindo o desperdício maior de recursos.
O custo do processo democrático, portanto, é alto. Além disso, a atuação do Estado, comprometido, ao menos teoricamente, com o interesse público, muitas vezes gera decisões que contrariam o mercado. Tudo isso acaba por atingir diretamente a principal sustentação do modelo capitalista de mercado, qual seja, a acumulação de renda. Então estaria fadado o capitalismo a sucumbir frente à evolução do regime democrático ou vice-versa? Não necessariamente.
Como afirmamos no tópico próprio, o capitalismo se sustenta em dois aspectos básicos: acumulação de riqueza e legitimidade. Se o primeiro é de certa forma prejudicado pelos processos democráticos, vez que ineficientes sob a perspectiva econômica, o segundo, acaba sendo garantido e maximizado por esta própria democracia.
Esta legitimação democrática é obtida por meio de diversos artifícios: quando o cidadão participa da formação do governo; quando seus representantes tomam decisões coletivamente embasadas; quando se realizam transferências de renda, aumentando o bem-estar coletivo; quando o Estado aloca recursos em educação, saúde e bens públicos. Em todos estes momentos, ao mesmo tempo em que se pode afirmar menor acumulação de riqueza pelos proprietários capitalistas, garante-se a legitimidade do sistema, evitando-se levantes revolucionários ou contestações amplas e veementes ao mesmo.
Além desta legitimação gerada pela atuação do Estado, a afirmação no sentido de que sua intervenção é ineficiente quando comparada com a lógica do mercado pode ser seriamente posta em dúvida. Para isto, basta a análise de algumas crises dos mercados capitalistas onde veremos que, em regra, o Estado é chamado a intervir de modo a restabelecer a normalidade do mercado que, por si só, não tem forças para se desincumbir de tal tarefa satisfatoriamente.
Outro aspecto conflituoso na relação entre democracia e capitalismo é o fato deste sistema econômico, necessariamente, gerar desigualdades na distribuição dos recursos entre os cidadãos.
Baseado na propriedade privada dos meios de produção e incentivador da maior acumulação possível de riqueza o capitalismo não garante qualquer espécie de igualdade econômica entre os cidadãos. Os mais aptos, inteligentes, competentes, persistentes, trabalhadores e até os com maior sorte serão os capitalistas melhor sucedidos, que servirão de inspiração e exemplo aos demais indivíduos. Podemos afirmar que a distribuição desigual da riqueza, na verdade, acaba por ser uma das principais características do capitalismo de mercado.
Talvez a principal conseqüência da irregular distribuição de renda e dos meios de produção, própria do sistema capitalista, seja a também desigual distribuição dos demais recursos disponíveis: status, prestígio, informação, conhecimento, saúde e, entre outros, do poder político. Não há teórico que possa desacreditar afirmações, tais como as de Ellen Meiksins Wood[11], de que a riqueza garante acesso privilegiado ao poder.
O poder econômico se transformou, impulsionado pelo capitalismo, no catalisador de todas as demais expressões de poder, sendo impossível dissociar a renda, do controle ou influência maior nas práticas governamentais. As diferenças econômicas, sociais, educacionais, religiosas e culturais acabam por gerar indesejável desigualdade política, seja por meios expressos, como cláusulas censitárias, ou por meios insidiosos, como a falta de preparo intelectual para candidatura a cargo político ou para uma escolha política consciente.
Portanto, podemos afirmar, a partir das considerações supra, que a acumulação de riqueza, própria do capitalismo, coloca em risco o principal pressuposto e objetivo da democracia que é a igualdade política dos cidadãos. Por outro lado, fazendo um raciocínio inverso, a difusão de um sentimento de desigualdade política na sociedade é perniciosa ao capitalismo, uma vez que abala sua necessária legitimação.
Mais do que aspectos ligados à eficiência do processo democrático para o capitalismo que, como se viu, são de certa forma mitigados pela legitimidade obtida por este mesmo processo, a desigualdade política dos cidadãos, decorrência natural da apropriação e alocação privada dos meios e recursos produtivos, é o principal problema a ser enfrentado na defesa da compatibilidade entre capitalismo e democracia.
Caso nos apeguemos nas formas mais ortodoxas de definir a democracia, nas quais a igualdade entre os cidadãos é elevada ao seu máximo grau, representando, verdadeiramente, o governo do povo e para o povo, dificilmente poderíamos compatibilizar o capitalismo com a democracia. Sempre o grau de desigualdade superaria o tolerável, não havendo um só exemplo de sociedade democrática.
Outrossim, se deixarmos um pouco de lado a democracia utópica ou ideal, fazendo uma concessão à democracia real ou poliarquia, a compatibilidade almejada poderá ser alcançada. A poliarquia, conforme já afirmamos precedentemente, se contenta com menor grau de igualdade democrática. É um regime popularizado e liberalizado que, porém, não atingiu o ideal de igualdade plena entre os cidadãos.
A poliarquia acaba, portanto, nos dizeres de O’Donnell[12] e Ellen Wood[13], se resumindo a aspectos formais, muitas vezes ligados a cidadania passiva, isto é, o direito de votar, em detrimento dos requisitos da justiça substancial e da igualdade social. O exercício desta espécie de cidadania democrática não ameaça o sistema capitalista vigente, ao contrário, o legitima.
Ao relegar a um segundo plano as desigualdades materiais dos cidadãos garante-se a compatibilidade entre o capitalismo e a democracia. A igualdade formal, própria das poliarquias, expressa, em especial, por direitos civis e políticos, dentre os quais se destacam, a liberdade de expressão, de informação e de associação e o direito de votar e ser votado em eleições livres, frequentes e justas, acaba por se tornar grande aliada do capitalismo.
5. Conclusão
Procuramos demonstrar que as relações entre o capitalismo e a democracia são bem mais complexas e conflituosas do que uma análise simplista da realidade sugere.
A observação empírica dos países e de seus sistemas econômicos poderia gerar uma equivocada conclusão no sentido de que o capitalismo teria uma ligação necessária e dependente com a democracia. Tal conclusão, como procuramos demonstrar, seria precipitada, haja vista os conflitos detectados quando da análise atenta das características principais dos dois institutos.
Assim, quando analisamos o processo democrático da forma como é idealizado, constatamos que a opinião de todos, isto é, a opinião coletiva, pode não ser a mais eficiente sob o ponto de vista da acumulação de riquezas, característica essencial ao capitalismo. Ademais, a propriedade privada dos meios de produção, aliada à livre iniciativa, tem enorme potencial gerador de desigualmente econômica dos cidadãos, o que em última instância é capaz de macular a almejada igualdade política, própria dos regimes democráticos.
Além de relatar o que entendemos ser os principais problemas identificáveis na relação entre democracia e capitalismo, tivemos a preocupação de apontar as soluções teóricas encontradas para os mesmos.
Diante do problema da teórica ineficiência democrática para a acumulação de riquezas destacamos, em contraposição, o caráter legitimador da democracia, essencial para a manutenção do capitalismo de mercado e gerador de uma espécie de eficiência social. Diante do problema da desigualdade gerada inerentemente pelo modelo capitalista surge a idéia da poliarquia ou democracia formal, capaz de se compatibilizar com situações de desigualdade econômica, desde que subsistam aspectos de igualdade política, como a liberdade de expressão, de informação e de associação e o direito de votar e ser votado em eleições livres, frequentes e justas.
Não pretendemos, com este breve estudo, esgotar a análise dos pontos de convergência e afastamento existentes na relação entre democracia e capitalismo. Temos consciência da complexidade do tema, a qual exigiria estudos aprofundados de uma gama muito maior de variantes dos que as aqui abordadas. Entendemos, porém, que qualquer contribuição neste tema é relevante, pois ajuda a compreender as relações existentes entre estes dois importantes e, hoje, quase hegemônicos (ao menos sob o aspecto intelectual) institutos.
Por fim, o que podemos afirmar após as análises realizadas é que caso se atinja, em algum momento histórico futuro, o exercício da democracia real, este, provavelmente, se dará sob a égide de um sistema econômico com características diversas do atual modelo capitalista. A evolução democrática estará sempre atrelada à evolução do modelo econômico utilizado.
Graduado em Direito pela UFJF; especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva; mestrando em Direito pela PUC-Rio; Advogado da União.
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