Resumo: O trabalho enfoca os aspectos patrimoniais do casamento do maior de sessenta anos, antes e depois do advento do Código Civil de 2002. Trata, inicialmente, da trajetória do instituto na legislação brasileira e da forma como alguns países europeus regulamentam-na em suas legislações. Enfrenta também a polêmica acerca da constitucionalidade da imposição do regime de bens ao maior de sessenta anos, com panorama das posições conflitantes a tal respeito na Doutrina e na Jurisprudência. Por fim, aborda temas de relevância prática, como a vigência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal sob o Código Civil de 2002, o problema das doações realizadas entre cônjuges casados pelo regime obrigatório e a questão da aplicabilidade ou não do regime da separação legal à união estável.
Palavras-chave: Casamento – maior de sessenta anos – regime da separação legal – regime da separação obrigatória – constitucionalidade – comunhão de aqüestos – Súmula 377 – doações – validade – fraude – união estável.
Resumen: El trabajo destaca los aspectos patrimoniales del matrimonio del adulto mayor de sesenta años, antes y después del advenimiento del Código Civil brasileño de 2002. Versa, en principio, sobre la trayectoria del instituto en la legislación brasileña y de la manera como algunos países europeos la regulan en sus legislaciones. Confronta también la discusión acerca la constitucionalidad de la imposición del régimen de bienes al mayor de sesenta años, con vista de las posiciones conflictantes en respecto a la doctrina y en la jurisprudencia. Por fin, trata de temas de relevancia práctica, como la vigencia de la súmula nº 377 del Supremo Tribunal Federal brasileño bajo el Código Civil de 2002, la cuestión de las donaciones producidas entre cónyuges enlazados por el régimen obligatorio y la cuestión de la aplicación o no del régimen de separación legal hacia la unión estable.
Palabras llaves: Matrimonio – mayor de sesenta años – régimen de separación legal – régimen de separación obligatoria – constitucionalidad – bienes adquiridos a título oneroso a costa de la colabaración común – súmula 377 – donaciones– validez – fraude – unión estable.
Sumário: 1. Introdução: o tema na legislação brasileira – breve notícia histórica – 2. Alguma noção da legislação comparada – 3. Sobre a constitucionalidade da imposição legal do regime da separação de bens ao casamento da pessoa maior de 60 anos – 4. O novo Código Civil e Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal – 5. Doações entre cônjuges casados pelo regime da separação legal: a matéria no novo Código Civil – 6. Nota sobre a aplicabilidade do regime obrigatório de bens à união estável – 7. Conclusão – 8. Bibliografia.
1. Introdução: o tema na legislação brasileira – breve notícia histórica.
Tradicionalmente, o patrimônio do homem maior de 60 anos e da mulher maior de 50 foi objeto de alguma espécie de proteção no ordenamento jurídico brasileiro.
Tanto no nosso ordenamento quanto no de outros países, a forma mais comum de proteção consiste na imposição de um regime de bens ao casamento celebrado por quem tenha superado aquele patamar etário.
Todavia, como veremos a seguir, nem sempre foi assim na legislação pátria, que no passado impunha, com o mesmo objetivo, a proibição de alienação de parcela do patrimônio.
Seja qual for o modus dessa tutela, a idéia a ela subjacente compreende a noção de que, nesses casos, o consorte pode encontrar-se em estado tal de vulnerabilidade (física, emocional ou ambas) que se torne mais facilmente suscetível à malícia de quem contemple na relação um interesse exclusivamente patrimonial.
Portanto, inspira-se a lei na intenção de subtrair do casamento tal conteúdo, incentivando-lhe o aspecto relacionado ao afeto; no dizer de Venosa, busca-se “afastar o incentivo patrimonial do casamento de uma pessoa jovem que se consorcia com alguém mais idoso.”[1]
Candido de Oliveira[2] observa que a Ordenação, em seu Livro IV, título 105, previa que a mulher, ao se casar sendo maior de 50 anos e tendo filhos ou outros descendentes, não poderia alienar, a qualquer título, mais de um terço dos bens que possuísse, pelo que tal parcela de seu patrimônio não se comunicava com o do marido.
Por força do Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890, artigo 58, §§ 1º e 2º, ao casamento da mulher maior de 50 anos e do homem maior de 60 anos impunha-se a incomunicabilidade de bens, com obrigatoriedade do regime dotal.[3]
Observe-se que o Esboço do Código Civil, de Teixeira de Freitas, deixou de albergar semelhante norma, pois não continha exceções ao regime legal da comunhão de bens.
O Código Civil de 1916 (o Código Beviláqua), por sua vez, adotou a orientação da legislação que sucedeu, prevendo em seu artigo 258, parágrafo único, II, a obrigatoriedade da adoção do regime da separação de bens ao casamento do homem maior de 60 anos e da mulher maior de 50.
No ano de 1977, a chamada Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77) abriu exceção à regra da incomunicabilidade prevista no artigo 258, II, da lei civil, prevendo:
“Art. 45. Quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existente antes de 28 de junho de 1977, que haja perdurado por 10 (dez) anos consecutivos ou da qual tenha resultado filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no art. 258, parágrafo único, II, do Código Civil.”
Embora tenha se tratado de importante avanço da legislação a respeito do assunto, há que se reconhecer sua pouca eficácia, já que a aplicabilidade do dispositivo é restrita às uniões de fato existentes antes de 28 de junho de 1977 (data da Emenda Constitucional nº 9, que introduziu o divórcio no Brasil), exigindo-se ainda que entre os nubentes tenha havido comunhão de vida com duração mínima de dez anos consecutivos ou da qual haja resultado prole.
O atual Código Civil, promulgado em janeiro de 2002 e vigorante desde janeiro do ano seguinte, preceitua ser obrigatório tal regime no casamento da pessoa maior de 60 anos (artigo 1.641, II). Portanto, sua diferença em relação ao diploma anterior situa-se apenas na previsão de um critério etário único, sem distinção entre o homem e a mulher, em atenção ao princípio isonômico.
Em linhas gerais, foi esse o percurso da matéria na legislação brasileira.
Cada vez mais comuns, os casamentos celebrados por pessoas que ultrapassaram referido patamar etário geram questões que, de longa data, dividem opiniões na Doutrina e nos Tribunais, relacionadas ao seu aspecto patrimonial – porque nos demais aspectos, evidentemente, tais casamentos em nada diferem dos celebrados por pessoas em idade inferior.
No cerne das discussões, surge a seguinte polêmica: poderia o Estado, sob fundamento protetivo, interferir na liberdade e autonomia de tais pessoas (maiores de 60 anos), impondo ao casamento por elas celebrado um determinado regime de bens? Ao assim proceder, não estaria o ente estatal invadindo a esfera privada além de um limite que se possa considerar razoável ou tolerável?
A moderna visão da matéria, sem dúvida, aponta para soluções que afastem, tanto quanto possível, ingerências do Estado no domínio privado. A propósito, o Código Civil em vigor contém dispositivos que consagram esse valor, como o artigo 1.513, onde se lê: “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”.
Todavia, como nem sempre as razões de política legislativa coincidem com as vanguardas do pensamento jurídico, o novo Código Civil brasileiro, frustrando expectativas[4], manteve em seu artigo 1.641, inciso II, norma semelhante àquela que o Código revogado contemplava no artigo 258, parágrafo único, II. Assim, persiste entre nós a polêmica sobre o tema.
O Projeto de Lei nº 209/2006, de autoria do Senador José Maranhão, propõe a revogação do dispositivo, com a seguinte ementa: “Revoga o inciso II do art. 1.641 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para permitir às pessoas maiores de sessenta anos a livre decisão sobre o regime de bens no casamento.”[5]
2. Alguma noção da legislação comparada.
As legislações estrangeiras variam no tratamento da matéria.
O Código Civil francês, por exemplo, é expresso ao declarar que, uma vez estabelecidas pelos cônjuges regras patrimoniais específicas quanto ao casamento e estando elas de acordo com os bons costumes, não serão sequer aplicáveis as disposições legais sobre a matéria, exceto, obviamente, no que diz respeito a normas de natureza cogente.[6]
A disposição faz sentido, principalmente se se levar em conta a inspiração libertária desse diploma legal, elaborado sob o influxo dos ideais da Revolução Francesa e fundado no princípio de não-intervenção estatal no domínio privado.
Da mesma forma, o BGB alemão consagra aos nubentes a liberdade de pactuar (artigo 1408). Porém, estabelece que, se os cônjuges excluírem o regime legal ou o invalidarem, terá lugar a separação de bens (artigo 1414). É essa a norma geral, aplicável a todo e qualquer casamento, independentemente da idade dos consortes.
Portanto, também não há na legislação alemã previsão de norma que adote a idade do nubente como critério para restringir a liberdade de escolha do regime matrimonial de bens.
Por outro lado, a lei portuguesa impõe a adoção do regime da separação ao casamento da pessoa que tenha completado 60 anos. Com efeito, dispõe o artigo 1.720 do Código Civil de Portugal:
“Art. 1720.º
1. Consideram-se sempre contraídos sob o regime da separação de bens: (…)
b) o casamento celebrado por quem tenha completado sessenta anos de idade.” [7]
3.Sobre a constitucionalidade da imposição legal do regime da separação de bens ao casamento da pessoa maior de 60 anos.
Muito se questiona, tanto na Doutrina como na Jurisprudência, a constitucionalidade da restrição hoje contida no artigo 1.641, II, do Código Civil.
De um lado, argumenta-se que não há razão justificadora de tão grave intervenção na esfera patrimonial da pessoa maior de 60 anos, que é plenamente capaz para o exercício de todos os atos da vida civil, especialmente nos dias de hoje, em face do aumento da expectativa de vida do brasileiro.
Com base nesse e em outros ponderáveis argumentos, a norma é taxada de inconstitucional por atentado à liberdade individual e à dignidade da pessoa humana, sustentando-se que, na prática, o dispositivo legal presumiria a incapacidade do seu destinatário.
A propósito, já o dizia Pontes de Miranda que tornar obrigatório o regime da separação de bens quando se teme que o casamento se faça para aproveitamento de alguém, sendo rico exatamente esse alguém, é proteger “cortando o protegido”.[8]
Modernamente, Silvio Rodrigues, Silvio Venosa, João Baptista Vilella e Paulo Luiz Netto Lobo[9], entre outros juristas de renome, preconizam a crítica à norma.
Na Jurisprudência, conhecido julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de relatoria do então Desembargador Antonio Cezar Peluso, declarou a desconformidade do dispositivo com a Constituição Federal de 1988. Em trecho do acórdão, que se tornou autêntico paradigma sobre o tema, proclamou-se:
“(…) Sendo incompatível com as cláusulas constitucionais de tutela da dignidade da pessoa humana, da igualdade jurídica e da intimidade, bem como a garantia do justo processo da lei…, já não vige a restrição constante do artigo 258, parágrafo único, II, do Código Civil” (TJSP, 2ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 007.512-4/2, julgado em 18.08.1998, v.u.)
Não obstante os judiciosos fundamentos dessa corrente de pensamento, há quem considere a presença do dispositivo no ordenamento plenamente justificável, reconhecendo-lhe natureza protetiva destinada a evitar casamentos motivados por interesses exclusivamente patrimoniais.
A norma – sustenta-se – tem por objetivo maior afastar do casamento o conteúdo patrimonial, privilegiando o aspecto que nele se relaciona à comunhão de vida, ao afeto, à formação e ao desenvolvimento da família.
O próprio Pontes de Miranda, embora crítico da imposição do regime da separação nesse caso, reconhece que o escopo da lei é evitar “explorações consistentes em levar-se ao casamento, para fins de comunhão de bens, mulheres em idade vulnerável, ou homens em fase de crise afetiva.”[10]
Atualmente, é também a posição de Zeno Veloso, para quem, na maioria das hipóteses em que se casam pessoas com mais de 60 anos, especialmente quando uma delas é mais nova, é razoável suspeitar-se de um casamento por interesse. Nesse sentido, argumenta:
“Embora reconheçamos que as pessoas de idade alta ou avançada não estão destituídas de impulsos afetivos e da possibilidade de sentirem amor, ternura, pretendendo, desinteressadamente, unir-se matrimonialmente com outrem, devemos também concordar que, na prática, será muito difícil acreditar-se que uma jovem de 18, 20 anos, esteja sinceramente apaixonada por um homem maior de 60 anos, nem, muito menos, que um rapaz de 20 anos venha a sentir amor e pura ou verdadeira atração por uma senhora de mais de 50 anos. Tirando as honrosas exceções de praxe, na maioria dos casos, é razoável suspeitar-se de um casamento por interesse.”[11]
E conclui que “a regra protetiva – o casamento sob o regime imperativo da separação – deve ser mantida” pois “os amores crepusculares tornam as pessoas presas fáceis de gente esperta e velhaca, que quer enriquecer por via de um casamento de conveniência, o que na linguagem popular se conhece por ‘golpe do baú’.” [12]
No mesmo sentido, embora sem pronunciamento expresso a respeito da constitucionalidade do artigo 258, parágrafo único, II, do Código Civil revogado, a Ministra Nancy Andrigue, do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, ressaltou o caráter protetivo da disposição em voto proferido ao ensejo do julgamento do Recurso Especial nº 260462-PR.
Primeiramente, não resta dúvida de que a norma em questão, tal como mantida no novo Código Civil, exige revisão legislativa ao menos para aumento do patamar etário utilizado para imposição do regime de bens.
Se – como é inegável – o critério utilizado pelo legislador leva em consideração a expectativa de vida do brasileiro (de tal forma que se evite que alguém de idade avançada seja prejudicado por um consórcio de finalidade exclusivamente patrimonial), é também evidente que o aumento desse índice estatístico no decorrer de quase um século (que separa o Código Civil de 1916 do Código de 2002) deveria estar refletido no novo diploma, como fato social inexorável.
Como novo parâmetro, o legislador do Código Civil poderia ter utilizado, por exemplo, os 70 anos previstos para a aposentadoria compulsória no serviço público. De todo modo, trata-se de questão competente ao legislador.
Sobre ser protetiva ou restritiva a norma inscrita no artigo 1.641, II, do Código Civil, observa-se que, embora o legislador se valha de uma restrição à autonomia da vontade do maior de 60 anos, tal restrição se faz com nítido caráter protetivo.
Em verdade, a questão de fundo situa-se em saber se é juridicamente possível a coexistência daquela restrição com as normas constitucionais de tutela da isonomia, da autonomia da vontade, da intimidade e da dignidade da pessoa humana.
Em outras palavras: até que ponto é legítimo, perante o ordenamento jurídico-constitucional, o fator de discrímen de que estamos tratando (idade do nubente) para a hipótese ventilada pelo legislador (imposição de regime de bens ao casamento)? A norma sobrevive se confrontada com o princípio constitucional da igualdade?
Colocada a questão nesses termos, merece destaque a advertência de Celso Antonio Bandeira de Mello[13] no sentido de que “não é no traço de diferenciação escolhido que se deve buscar algum desacato ao princípio isonômico”, esclarecendo:
“(…) tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles.”[14]
Aplicando-se o conhecido método interpretativo sugerido pelo notável publicista à hipótese em estudo, ter-se-á:
“(i) como fator de discriminação adotado pela lei brasileira para imposição do regime obrigatório da separação de bens no casamento: idade de um dos nubentes superior a 60 anos;
(ii) como possíveis fundamentos lógicos para a adoção do referido fator de discriminação: a maior vulnerabilidade (física, emocional ou ambas) da pessoa maior de 60 anos; a maior suscetibilidade ao consorte maliciosamente interessado no aspecto patrimonial do casamento; a necessidade de proteção daí resultante; a vedação ao enriquecimento sem causa deste consorte; o afastamento do conteúdo patrimonial do casamento e o reforço de outros atributos que lhe são inerentes, como a comunhão de vida, a formação da família e o desenvolvimento do afeto;
(iii) por fim, a tarefa de perquirir se esses fundamentos lógicos possivelmente justificadores do critério de discrímen estariam afinados com os preceitos constitucionais, isto é, se sobreviveriam aos valores consagrados na Carta Magna.”
Observadas tais questões sob o prisma do legislador, será inevitável lembrarmo-nos de que o ato de legislar leva em consideração um critério de maiorias.
Logo, a imaginar-se a maioria da população brasileira com idade superior a 60 anos, a norma contida no artigo 1.641, II, do Código Civil, não se mostra repugnante, como se tem propalado. Pelo contrário, mostra-se razoável.
Uma é a situação do sexagenário pertencente às classes sócio-econômicas mais abastadas. Se se encomendasse uma pesquisa, constatar-se-ia que esta categoria de sexagenários, em regra, dedicou-se aos trabalhos intelectuais, que lhe exigiram o uso constante das faculdades mentais, seja pela necessidade perene de estudo e atualização, seja pela complexidade dos trabalhos que lhe foram submetidos no decorrer de sua trajetória profissional. Portanto, é natural supor que aos 60, 70, 80 anos, dificilmente estará em situação de vulnerabilidade. Porém, num país desigual como o Brasil, essa parcela corresponde a uma minoria.
Distinta dessa minoria é a situação de um trabalhador braçal, de um metalúrgico ou de um motorista (todos, geralmente, com baixo grau de instrução) que conseguiram amealhar algum patrimônio ao cabo de suas vidas. Com relação a eles, certamente, há uma probabilidade maior de vulnerabilidade na hipótese visada pelo legislador, resultado do baixo grau de instrução, do desconhecimento da lei, da falta de recursos etc.[15]
É evidente que, a exemplo de outras disposições legais, também aqui a lei se vale de uma ficção jurídica: a de que toda pessoa que se casa com idade superior a 60 anos encontra-se vulnerável e, portanto, suscetível à malícia do outro consorte.
Porém, como bem se sabe, não é em todo e qualquer caso que a situação abstratamente concebida pelo legislador terá absoluta correspondência no mundo dos fatos. Faz parte da técnica de elaboração das leis a fixação de critérios que confiram segurança às relações jurídicas, tendo por base os dados providos pela experiência científica e a observação reiterada dos fatos sociais.
Assim é que, por exemplo, ao se estabelecer que a pessoa maior de 18 anos está “habilitada à prática de todos os atos da vida civil” (Código Civil, art. 5º), traça-se uma linha imaginária segundo a qual todos aqueles que não tiverem completado essa idade são considerados, para efeitos jurídicos, incapazes de exercer tais atos. Nesse caso, nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira,[16] a lei lhes presume a total inexperiência, o incompleto desenvolvimento das faculdades mentais, a facilidade de se deixar influenciar por outrem e a falta de autodeterminação e auto-orientação.
Sem embargo, não é raro observar, na prática, jovens de 15 anos agindo como se 20 tivessem. Ainda assim, ninguém se arvora a dizer que a lei é inconstitucional por considerá-lo incapaz…
Por essas razões, apesar das críticas usualmente direcionadas ao dispositivo, é certo que, tomado o amplo espectro de destinatários da lei, especialmente quando se trata da “constituição do homem comum” (definição que Miguel Reale atribui ao Código Civil), sua manutenção no ordenamento traz mais benefícios do que prejuízos.
Trata-se, ademais, de norma cultural e socialmente aceita, pois dificilmente o leigo se espanta ao dela tomar conhecimento. Pelo contrário, reconhece-lhe razoabilidade.
Em defesa da manutenção da norma por uma questão de segurança jurídica, manifesta-se Ênio Santarelli Zuliani, ponderando que:
“A intervenção do Estado neste assunto é de ordem preventiva, uma garantia para a paz familiar, porque, afinal, o patrimônio de uma história de lutas, dificuldades, sacrifícios de um núcleo familiar, poderá ser dissolvido com a mesma rapidez com que se encerra a carícia dissimulada.”[17]
Finalmente, em relação àqueles casos que, por assim dizer, escaparem do escopo do legislador, nada impedirá que o sexagenário casado pelo regime da separação legal realize atos de liberalidade (doações ou testamento) por meio dos quais transfira determinados bens ao outro cônjuge. De mais a mais, como também ressalta Ênio Zuliani: “Confia-se na jurisprudência para modificar o efeito desta norma para casos concretos, como quando se admitiu a validez da doação que marido sexagenário fez à consorte, apesar do regime de separação obrigatória. Para o sentido abstrato é vantajoso o regime da separação, desaconselhada a mudança.”[18]
4. O novo Código Civil e a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal
É interessante observar que, originalmente, o Projeto do Código Civil previa, na parte final do dispositivo em discussão, a expressão “sem a comunhão de aqüestos”; isto é, o regime de bens do casamento do maior de 60 anos continuaria a ser o da separação, mas, além disso, os bens adquiridos durante o casamento, onerosamente e com esforço comum (os chamados aqüestos), não se comunicariam.
Com a redação original do Projeto, pretendia-se evitar a “distorção” que, no entender de alguns, fora provocada pela Súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe:
“No regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.”
Sustentam os críticos da mencionada Súmula que, ao se autorizar a comunhão dos aqüestos no regime da separação legal, estar-se-ia equiparando este ao de comunhão parcial de bens, vulnerando a pureza que a lei quis garantir ao regime de adoção obrigatória, pelo qual nem mesmo os aqüestos deveriam se comunicar.
Vemos tal crítica com reservas, pois não faz sentido deixar de fora da comunhão, qualquer que seja o regime adotado ou sendo ele o obrigatório, os bens adquiridos onerosamente durante a constância do casamento, com esforço comum, notadamente nos casos em que houver efetiva contribuição material de ambos os cônjuges.
Não foi por outra razão que a Jurisprudência passou a ampliar a aplicação da súmula 377 até mesmo ao regime da separação convencional.[19] Também a moderna doutrina brasileira inclina-se para a comunhão dos aqüestos, considerando a comunhão de interesses dos cônjuges na constituição de um patrimônio formado de bens adquiridos pelo esforço comum.
Ora, se o objetivo da norma é proteger o patrimônio amealhado pelo sexagenário antes do casamento, e de fato não é outro o escopo da lei, afina-se ao princípio da razoabilidade a solução no sentido de que a incomunicabilidade atinja apenas os bens adquiridos antes do casamento e aqueles que lhe sobrevierem por sub-rogação real, isto é, com o produto de bens cuja titularidade remonta a data anterior ao enlace.
Por isso, a nosso ver, foi acertada a não manutenção da redação originalmente proposta ao artigo 1.641, II, tamanhas seriam as injustiças que provocaria ao excluir, aprioristicamente, a comunhão de aqüestos no regime obrigatório.
A redação afinal adotada, embora não seja expressa a respeito da comunicabilidade dos aqüestos, é melhor, pois confere ao intérprete tal tarefa.
E a exegese mais recomendada, nesse ponto, é a que admite a comunhão dos aqüestos, mas exige para tanto a prova do esforço comum na aquisição. Foi essa a solução sufragada pelo Superior Tribunal de Justiça, embora ainda sob a égide do Código Civil de 1916, no Recurso Especial nº 9938-0-SP, do qual foi Relator o eminente Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.[20]
Nesse ponto, duas observações devem ser feitas.
Primeira: nem sempre será fácil a prova da contribuição pelo cônjuge que se achar prejudicado, mesmo sendo ela de natureza material.
Se, por exemplo, para aquisição de um imóvel, que se registre em nome de apenas um dos cônjuges, o outro tenha feito resgate de numerário aplicado em instituição financeira, bastará que se junte aos autos do processo documentos que comprovem a transação (i.e.: extrato bancário, comprovante de depósito, transferência eletrônica etc.).
Neste caso, o cônjuge prejudicado ao término do casamento terá meios de produzir, com relativa tranqüilidade, a prova de sua contribuição, obtendo a partilha dos bens para cuja aquisição concorreu.
Todavia, imagine-se que tal contribuição tenha sido implementada de forma indireta, ao longo dos anos de convivência, pelo cônjuge prejudicado ao término do casamento. Note-se que, nesta hipótese, embora sua contribuição material seja inegável, será de difícil comprovação em juízo.
Justamente por esse motivo, relacionado à dificuldade de comprovação da contribuição material em alguns casos, apresenta-se insatisfatório o critério que pretende resolver a questão à luz do direito das obrigações, procedendo-se à partilha segundo os critérios que o norteiam, na medida da contribuição comprovada.
Afinal, o casamento é mais que uma sociedade comercial ao fim de cujo exercício se elaboram os respectivos balanços, apurando-se matematicamente os haveres de cada sócio; da mesma forma, as relações patrimoniais entre os cônjuges não se regem pelo mesmo rigor contábil com que se administra um empreendimento comercial.
E, em matéria de Direito de Família, continua válida a advertência de Pontes de Miranda no sentido de que, apenas excepcionalmente, deverá o intérprete se valer de normas relativas a outros ramos do Direito Civil.
Segunda observação: ainda no que diz respeito à prova do esforço comum, é importante destacar que, nos casos em que estiver em debate a chamada contribuição imaterial de um dos consortes, o intérprete deverá ponderar com redobrada atenção as circunstâncias do caso concreto, evitando o risco de enriquecimento sem causa desse consorte.
Retomando o ponto inicial do presente tópico, havíamos observado que se retirou da parte final do artigo 1.641, II, do Código Civil, a expressão primitivamente constante do Projeto, pela qual se afastaria expressamente do regime da separação obrigatória a comunhão de aqüestos. Também observávamos que, mantida aquela redação, inúmeras injustiças certamente seriam perpetradas e, por essa razão, a alteração foi positiva.
Com essa solução, contudo, o legislador não resolveu a polêmica sobre o tema.
Pelo contrário, parece tê-la acirrado, pois deixou de reproduzir no novo diploma a regra contida no artigo 259 do Código Civil de 1916 – dispositivo cuja interpretação serviu de base à elaboração da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Dizia o referido artigo:
“Art. 259. Embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento”.
Portanto, quanto aos bens adquiridos durante o casamento, o Código anterior determinava a aplicação dos princípios do regime de comunhão, ainda que se tratasse de regime diverso.
Com a revogação do artigo 259 (sem correspondente no Código em vigor), a Doutrina hoje sustenta, majoritariamente, que a súmula 377 perdeu a razão de ser, devendo por isso ser revogada.
Não há como negar razão àqueles que se posicionam nessa direção: sabe-se que a elaboração e a interpretação das súmulas pautam-se na análise dos precedentes e, no caso da 377, tais precedentes têm por claro fundamento o revogado artigo 259.
Portanto, adeptos da crítica ao verbete, como Cahali, hoje sustentam que, com o novo Código, finalmente se passou a contemplar o regime de separação simples de bens anteriores e aquisições benévolas, sem comunhão de aqüestos.
Entretanto, é preciso que se esteja alerta para que, com esse entendimento, não se contrarie o próprio espírito do novo Código Civil, cuja orientação social (princípio da socialidade), ao contrário do espírito individualista que regia o Código de 1916, repugna qualquer espécie de enriquecimento ilícito.
Isso porque, se se defende que a súmula 377 deve ser revogada, aplicando-se sem ressalvas o regime da separação legal, pode-se abrir caminho para a injustiça e para o enriquecimento sem causa de um dos cônjuges – aquele em nome de quem está registrado o patrimônio adquirido com esforço comum – em detrimento do outro, que depositou confiança no parceiro.
Portanto, a aplicação pura e simples do regime da separação obrigatória de bens previsto no artigo 1.641, apesar de aparentemente correta do ponto de vista técnico, poderá apresentar como conseqüência um resultado jurídico socialmente intolerável, porque contrário à principiologia inspiradora da Constituição Federal e do novo diploma civil.
Para evitar tal resultado, diferentes soluções são propostas pela Doutrina, como as que a seguir destacamos:
Francisco Cahali: o autor defende a revogação da Súmula, com a seguinte solução: uma vez comprovado o esforço comum dos cônjuges para a aquisição de bens, ter-se-á constituído uma sociedade de fato em relação ao patrimônio registrado em nome de apenas um dos consortes, justificando a respectiva partilha quando da dissolução do casamento, afastada a contribuição imaterial.[21]
Silmara Chinelato: também partidária da revogação da súmula[22], sustenta que, em se tratando de bens adquiridos após o casamento celebrado pelo regime de separação obrigatória, aplicar-se-á a presunção de esforço comum. E isso por analogia ao que o novo Código Civil dispõe para a união estável ao determinar que se lhe apliquem as regras próprias ao regime da comunhão parcial (artigo 1.725), já que sob este regime “comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento”. Além disso, defende a possibilidade de que a contribuição imaterial seja suficiente para garantir o direito à partilha, desde que comprovada. A respeito, discorre:
“Ao reconhecer o regime da comunhão parcial, como o regime legal de bens na união estável, quando não haja contrato de convivência, parece que o artigo 1.725 também reconhece a relevância da colaboração imaterial, já que o esforço comum é presumido.
Enfatizar apenas a colaboração financeira para os casados e reconhecer aos companheiros também a imaterial parece importar em inadmissível tratamento desigual para casados e conviventes.
Por tais razões, parece-me razoável ser valorizada a colaboração imaterial entre cônjuges casados sob o regime legal de separação de bens, presumindo esforço comum na aquisição de bens na constância do casamento.
Por tal fundamento e não em decorrência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, que parece ter sido revogada pela inexistência do artigo 259, que a embasou, pode ser sustentada a comunhão de aqüestos no regime da separação legal de bens, devendo ser comprovada a colaboração imaterial em cada caso concreto.”[23]
Zeno Veloso: em artigo publicado antes da promulgação do Código Civil de 2002, o autor propunha, de lege ferenda, o acréscimo da expressão “com comunhão de aqüestos” ao artigo 1.641. Com efeito, sustentava:
“O Projeto de Código Civil (nº 634175), art. 1.669, II, manteve a solução do Código vigente, dispondo ser obrigatório o regime de separação de bens no casamento, sem a comunhão de aqüestos, do maior de 60 e da maior de 50 anos.
De nossa parte, advogamos, para o tema, uma solução intermediária. (…)”.
“…a regra protetiva – o casamento sob o regime imperativo da separação – deve ser mantida (…) Mas, ao contrário do que prevê o Projeto de Código Civil, o regime de separação de tais casamentos deve ser com a comunhão de aqüestos. Aliás, por construção da jurisprudência, é a solução adotada entre nós, conforme a Súmula nº 377 do STF (…).”[24]
Quanto ao posicionamento de Cahali, permitimo-nos retomar as observações retro tecidas, onde estão expostas as críticas à tese que propõe resolver questão afeta ao casamento com regras próprias do direito das obrigações.
Quanto à orientação de Silmara Chinelato, a despeito da premissa aparentemente correta levada em conta pela autora (no sentido de que a analogia se impõe para que não haja distinção de tratamento entre união estável e casamento), observamos, com a devida vênia, que há aí uma contradição.
Ora, se se pretende aplicar a presunção de esforço comum que vigora no regime de comunhão parcial, não faz sentido a exigência de prova da contribuição imaterial. Neste caso, caberia ao cônjuge proprietário, em querendo, provar que não houve contribuição do outro consorte, ilidindo a presunção que milita em favor deste.
Por fim, o entendimento de Zeno Veloso consistia em sugestão de lege ferenda, de modo que desconhecemos sua interpretação do dispositivo tal como mantido no Código em vigor.
Na Jurisprudência, destacamos recente julgamento da 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em que, afastando-se a aplicação da Súmula 377 em hipótese de bem adquirido durante casamento pelo regime da separação obrigatória, entendeu-se que eventual esforço comum na aquisição do patrimônio deveria ser comprovado em ação própria.
Tal solução, que nos parece a melhor, afasta a presunção de esforço comum (material ou imaterial), exigindo a prova da contribuição por parte do cônjuge que se achar prejudicado. Para maior clareza, transcreve-se a ementa do acórdão:
“Inventário – Pretensão de herdeiro necessário à meação em numerário depositado – Regime da separação legal – Não aplicação da Súm. 377 do STF – Necessidade de comprovação, pela via autônoma, de que o bem foi adquirido por meio de esforço comum, de modo a se operar, eventualmente, a comunicação – Agravo não provido” (TJSP, 4ª Câmara de Direito Privado, Agravo de instrumento nº 373.874-4/9-00, Relator Desembargador José Geraldo de Jacobina Rabello, j. 17.03.2005, v.u.)
Por essas considerações, entendemos que a melhor leitura da questão se orienta no sentido de que, no regime de separação obrigatória previsto no artigo 1.641 do Código Civil, a comunicabilidade dos bens adquiridos onerosamente durante o casamento depende da prova da contribuição, não se aplicando a presunção de esforço comum.
No avaliar dessa prova, porém, o Judiciário deverá ser flexível, na consideração de que as relações patrimoniais do casamento não se operam tal como a contabilidade de uma empresa – motivo pelo qual, como já se disse, posicionamo-nos contra a teoria que defende, nessa hipótese, a aplicação do direito obrigacional.
Quanto à colaboração exclusivamente imaterial, entendemos que deva ser admitida excepcionalmente e desde que, pela análise das circunstâncias do caso concreto, fiquem demonstradas a relevância e a influência para aquisição do patrimônio.
Dessa forma, prestigia-se, de um lado, a tendência delineada no novo Código Civil para preservação da pureza do regime da separação legal, evidenciada pela não reprodução de dispositivo semelhante ao artigo 259 do Código Civil de 1916.
De outro, evita-se o enriquecimento ilícito de qualquer dos consortes, assegurando-se a partilha dos bens adquiridos mediante efetiva participação de ambos, afastada, como regra geral, a contribuição imaterial – que tem lugar, ex lege, no regime da comunhão parcial.
5. Doações entre cônjuges casados pelo regime da separação legal: a matéria no novo Código Civil.
Outra questão, igualmente polêmica, relacionada ao aspecto patrimonial do casamento celebrado pelo maior de 60 anos, consiste na validade de doações realizadas entre cônjuges casados sob tal regime de bens.
Sobre se são possíveis ou não tais doações, não há consenso entre doutrinadores e Tribunais.
Ora se defende a plena validade de tais negócios, sob o argumento de que aos sessenta anos a pessoa possui o completo discernimento para destinação do seu patrimônio; ora se lhes decreta a nulidade por considerá-los contrários à norma de ordem pública impositiva do regime de separação.
Na Doutrina, Caio Mario da Silva Pereira, Orlando Gomes e Washington de Barros Monteiro alinham-se no entendimento de que são proibidas as doações de um cônjuge ao outro se casados pelo regime da separação legal de bens.[25]
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, constata-se divergência entre Câmaras. A 10ª Câmara de Direito Privado, no julgamento do recurso de Apelação Cível nº 106.713-4/1-00, em 05 de setembro de 2000, sendo Relator o Desembargador Ruy Camilo, decidiu pela validade de doação realizada nessas condições, conforme ementa que a seguir se transcreve:
“DOAÇÃO – Cônjuge varão, sexagenário, que doa metade da parte ideal de seu único imóvel à mulher – Admissibilidade, ainda que o casamento tenha sido celebrado sob o regime da separação de bens, por força do artigo 258, parágrafo único, II, do Código Civil – Impossibilidade de se presumir, nos dias de hoje, que o homem de 60 anos e a mulher de 50, em plena capacidade intelectual e laborativa, não tenham capacidade de discernimento quanto à administração de seus bens”
Por outro lado, decidiu em sentido contrário a 4ª Câmara de Direito Privado do mesmo Tribunal, em aresto de Relatoria do Desembargador Orlando Pistoresi, conforme trecho do acórdão que se transcreve:
“(…) Efetivamente, somente são permitidas doações entre cônjuges, seja antes, seja após o casamento, se a tanto não se opõe o regime matrimonial. Em se tratando de regime de separação obrigatória, nula será a liberalidade por força do que dispõem os artigos 226, 230 e 312 do CC. Doutrina Washington de Barros Monteiro que: (…) não pode haver doação entre consorciados, no regime da separação legal; inadmissíveis seriam tais doações, que burlariam o preceito determinador da obrigatória separação’ (Curso de Direito Civil, 17ª Edição, 2/191-192). Em igual sentido, Clóvis Beviláqua: Também não podem, como, em geral, todos aqueles que a lei impõe o regime da separação, fazer doações inter vivos, um ao outro. De outro lado, a lei seria, facilmente, burlada. É esta uma proposição que dispensa qualquer esclarecimento. É uma inferência que se impõe.’ (Código Civil Comentado).” (RT 710/66)
No Superior Tribunal de Justiça, prevalece o entendimento que considera nulas as doações feitas sob tais condições, conforme precedente já mencionado (Recurso Especial nº 260462, 3º Turma, Relatora Ministra Nancy Andrigue, julgado em 17/04/2001, DJ 11.06.2001, p. 205) e, na mesma direção, Recurso Especial nº 76.531, Relator Ministro Aliomar Baleeiro (RTJ 74/159).
Com o advento do novo Código Civil, a matéria merece nova reflexão.
Com efeito, o novo diploma não contemplou a chamada doação antenupcial, como fazia o Código Civil de 1916, cujo revogado artigo 312 dispunha:
“Art. 312. Salvo o caso de separação obrigatória de bens (art. 258, parágrafo único) é livre aos contraentes estipular na escritura antenupcial, doações recíprocas ou de um ao outro, contanto que não excedam à metade dos bens do doador (arts. 263, n. VIII, e art. 232, n. II).”
Como se vê, referido dispositivo – que se aplicava igualmente às doações realizadas no curso do casamento e não apenas às que fossem feitas no pacto antenupcial – vedava expressamente a liberalidade entre cônjuges casados pelo regime da separação obrigatória.[26]
A conclusão é a de que, na ausência de norma que reconheça expressamente a nulidade dessas doações, elas são válidas, observando-se, no mais, os requisitos próprios ao contrato de doação (artigos 538 e seguintes do Código Civil).
E, em matéria de validade, submetem-se à regra geral dos negócios jurídicos, prevista no artigo 166 e seus incisos, verbis:
“Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
II – for ilícito, impossível ou indeterminável seu objeto;
III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
IV – não revestir a forma prescrita em lei;
V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para sua validade;
VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção;”
Dentre tais hipóteses, poderão interessar ao presente estudo as que constam dos incisos III e VI: é nulo o negócio quando “o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito” ou quando “tiver por objetivo fraudar lei imperativa”, porque é justamente o que poderá ocorrer caso a doação tenha por objetivo burlar o regime de separação imposto pela lei, transferindo a um dos cônjuges parcela substancial do patrimônio do outro.
Logo se vê que a questão ganhou outra dimensão no Código em vigor, pois eventual reconhecimento de nulidade da doação realizada entre cônjuges casados pelo regime obrigatório depende agora da prova de que o motivo determinante do negócio, comum às partes, era ilícito, ou de que tinha por objetivo fraudar lei imperativa.
No Código revogado, diferentemente, o reconhecimento da nulidade fazia-se pela simples constatação de que doador e donatário eram casados pelo regime da separação legal (embora a Jurisprudência já viesse obtemperando a rigidez da norma).
Portanto, constata-se que hoje vigora, como regra, a validade das doações realizadas entre cônjuges casados pelo regime obrigatório e, como exceção, a nulidade, desde que comprovada a prática de negócios fraudulentos.
Afasta-se, com isso, a possibilidade de decretação da nulidade com base na alegação genérica de presunção de fraude ao regime imposto pelo artigo 1.641.
A um, porque, em matéria de nulidade, não é dado ao intérprete concluir por meio de presunções ou interpretação extensiva (como quando se afirma que com tais doações se presume a intenção de burlar o espírito da norma).
A nulidade, que emana da lei e nela está expressa, não se infere, se constata. Mesmo nos casos em que não estejam presentes expressões do tipo “É nula”, “É defeso” etc., a proibição da prática desse ato, necessária ao reconhecimento da nulidade, deve estar presente na lei, como estava no revogado artigo 312.
A respeito, vale transcrever a advertência de Martinho Garcez no sentido de que:
“As nulidades de pleno direito ou nascem da violação das leis proibitivas, promulgadas no interesse da ordem pública, porque aquilo que se faz contra a proibição da lei é nulo, ainda que não esteja expressamente declarada a cláusula anulatória; ou nascem da violação das leis constitutivas das fórmulas ou condições essenciais aos atos que elas instituem.”[27]
Também Humberto Theodoro Júnior, ao dissertar sobre o disposto no artigo 166, VI, do novo Código Civil, onde se prevê a hipótese de nulidade do negócio jurídico quando este “tiver por objetivo fraudar lei imperativa”, observa que se deve “evitar a interpretação analógica ou extensiva em matéria de fraude à lei. (…) As normas que restringem direitos são sempre de interpretação restrita.”[28]
A dois, deve haver clareza na percepção da real natureza jurídica da proibição contida no artigo 1.641, II, do Código Civil, pois eventuais dúvidas a respeito poderão guiar o intérprete para caminho enganoso.
Trata a norma, com efeito, de um impedimento específico para ato jurídico determinado, qual seja, a proibição de que o casamento do sexagenário se faça por regime de bens diverso do regime de separação. Apenas isso.
Relembra Caio Mario[29]que, em casos dessa ordem, determinados atos são atingidos “de uma restrição limitada”. Vale dizer: a restrição esgota-se em si mesma; não pode ser estendida ou ampliada, assim como seus efeitos.
Não se trata, portanto, de norma atributiva de incapacidade ao maior de 60 anos, pois, a propósito, é bom lembrar que a incapacidade civil emana da proibição legal expressa ou de sentença judicial.[30]
Sem essa clareza de compreensão sobre a natureza jurídica da norma, corre-se o risco de concluir que a doação que o sexagenário fizesse ao seu cônjuge seria nula por falta de agente capaz (Código Civil, artigo 104, I e artigo 166, I), o que seria inaceitável.
A reforçar essa tese (de que a proibição contida no artigo 1.641, II, não atribuiu ao sexagenário qualquer modalidade de incapacidade e nada mais significa senão o que ali está escrito), acrescente-se que o artigo 1.642, VI, prescreve que tanto o marido quanto a mulher podem, livremente, qualquer que seja o regime de bens, praticar todos os atos “que não lhe forem vedados expressamente.”
Pois bem. Muito embora a questão tenha passado por essa modificação no novo Código, Doutrina e Jurisprudência (já atualizadas) continuam a divergir.
Sílvio Rodrigues, na última atualização de sua obra, afirma que “deixa de existir” a restrição à liberalidade por aquelas pessoas a quem a lei impõe o regime da separação obrigatória. [31]
Na mesma direção, decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais em acórdão datado de 29.03.2005, ponderando-se que: “Alargar o sentido da norma prevista no artigo 1.641, II, do CC para proibir o sexagenário, maior e capaz, de dispor de seu patrimônio da maneira que melhor lhe aprouver, é um atentado contra sua liberdade individual”.[32]
Por outro lado, VENOSA continua a sustentar que não podem os cônjuges casados sob o regime da separação obrigatória fazer doações entre si, pois seria forma de fraude ao regime de bens imposto por lei.[33]
Confrontadas as posições que já se tem sobre o assunto, parece-nos certo que, por um lado, a ausência de norma proibitiva expressa significa que são permitidas as doações em tais circunstâncias.
Por outro, porém, a doação realizada entre cônjuges casados pelo regime da separação legal poderá ser considerada nula se se comprovar que teve por objetivo fraudar a norma imperativa de imposição do regime de separação.
Em conclusão, tais doações são válidas até que se comprove terem sido realizadas com a intenção de burla ao regime de bens imposto por lei.
É preciso reconhecer que, no mais das vezes, essa prova resultará da demonstração de elementos indiretos, considerando que dificilmente a intenção fraudatória será explícita.
Portanto, partindo das peculiaridades do caso concreto, o intérprete deverá ponderar aspectos relevantes, tais como: (i) a representativa econômica da doação diante do patrimônio do doador; (ii) a idade e o estado físico-psíquico do doador à época da realização do negócio; (iii) a diferença de idade entre os cônjuges etc., de tal forma que, se a doação recair sobre parcela substancial do patrimônio do doador; se seu estado físico, psíquico ou ambos forem considerados anormais para os padrões de sua idade; se for acentuada a diferença de idade entre os cônjuges etc., em tais hipóteses, enfim, será razoável suspeitar-se de um casamento realizado por interesse exclusivamente patrimonial e da intenção de burlar o regime legal de bens por meio da dilapidação do patrimônio do doador.
Caso contrário, não há vedação à liberalidade com a qual um dos cônjuges queira agraciar o outro, demonstrando-lhe seu afeto.
6. Nota sobre a aplicabilidade do regime obrigatório de bens à união estável.
Uma última questão que pretendemos abordar diz respeito à aplicabilidade ou não do regime da separação obrigatória previsto no artigo 1.641, II, à união estável em que um dos companheiros tiver idade superior a 60 anos, já que, em princípio, tal restrição se aplicaria exclusivamente ao casamento.
Sobre esse aspecto, a exemplo de outros, o novo Código Civil provoca polêmica.
Diz o artigo 1.725:
“Art. 1725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.
Em seu Livro IV (“Direito de Família”), Título II (“Direito Patrimonial”), Subtítulo I, o Código trata do “Regime de Bens entre os Cônjuges”, em cujas “Disposições Gerais” se situa a norma proibitiva do casamento do sexagenário por regime diverso do de separação (artigo 1.641).
Portanto, dispondo o artigo 1.725 que o regime da comunhão parcial se aplica às relações patrimoniais advindas da união estável, não há razão plausível para que se afastem as “Disposições Gerais” relativas aos regimes de bens, fazendo incidir apenas as “Disposições Especiais” próprias ao regime de comunhão parcial.
É o que sustenta Regina Beatriz Tavares da Silva, atualizadora da obra do Professor Washington De Barros Monteiro:
“O artigo 1.641, n. I e II, que também é disposição geral do regime de bens da comunhão parcial, deve aplicar-se não só ao casamento, mas também à união estável. Segundo esse dispositivo, o casamento (…) contraído por pessoa com idade superior a sessenta anos tem, obrigatoriamente, o regime de separação de bens. Saliente-se que o disposto no art. 1.723, § 2º, do novo Código Civil, segundo o qual ‘As causas suspensivas do artigo 1.523 não impedirão a caracterização de união estável’, está em perfeita consonância com o que foi exposto: a união estável não deixa de existir e produzir efeitos, como os deveres entre os companheiros, se houver causa suspensiva ou um dos conviventes tiver mais de sessenta anos, e o regime de bens a vigorar nessa união deve ser o da separação obrigatória. Não faria qualquer sentido a lei tratar diversamente a pessoa que se casa com causa suspensiva ou com mais de sessenta anos, submetendo-a obrigatoriamente ao regime da separação de bens, e aquela que passa a viver em união estável, nas mesmas circunstâncias, já que a finalidade protetiva da lei é a mesma para ambos os casos. Além disso, seria muito fácil burlar as normas sobre o regime da separação obrigatória de bens; bastaria que quem estivesse sob causa suspensiva ou com mais de sessenta anos, para evitar aquele regime, em vez de casar-se, passasse a viver em união estável. O sistema jurídico não pode aceitar fraudes à lei.”[34]
E no mesmo sentido, Érica de Oliveira Canuto:
“É de todo inaceitável que exista sanção de obrigatoriedade de regime de separação de bens em certas situações para o casamento e não tenha a mesma correspondência na união estável. As duas situações (casamento e união estável) devem ser interpretadas de maneira igualitária.”[35]
Embora tal leitura, que nos parece correta, resulte da aplicação direta do artigo 1.725 (que remete o intérprete ao art. 1.641), poder-se-ia alegar que, por meio dela, está-se aplicando analogicamente o artigo 1.641 à união estável, o que seria vedado.
Entretanto, mesmo se assim for, a analogia fica autorizada em face do caráter protetivo da norma e da sua interpretação finalística ou teleológica, que busca a melhor aplicação da lei na identificação dos fins sociais a que ela se dirige (artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil), que consiste em evitar uniões motivadas por interesses exclusivamente patrimoniais, das quais possa resultar o injusto enriquecimento de um dos consortes.
Bacharel em Direito pela PUC/SP. Pós-graduado em Direito Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Autor de artigos nas áreas de Direito Civil, Direito de Família e Direito Processual Civil. Advogado em São Paulo.
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