Resumo: Este trabalho se propõe a pesquisar a jurisprudência acerca da legitimidade ativa para pleitear repetição do indébito em tributos indiretos, e os desdobramentos disso. Analisamos se o posicionamento jurisprudencial promove, na prática, a efetivação do direito de repetição de indébito e se está de acordo com a Constituição Federal. Para tanto, fazemos um breve relato histórico da evolução jurisprudencial sobre o assunto, e, posteriormente, estudamos as consequências do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça. Nossa pesquisa tem por objetivo realizar uma releitura do dispositivo legal que trata do tema (artigo 166 do Código Tributário Nacional), através de uma interpretação conforme a Constituição e à luz da razoabilidade. Ressaltamos a importância dos princípios sob um viés pós-positivista e contemporâneo. Após a exposição dos conceitos de institutos correlatos ao tema, partimos para a construção de uma nova visão do assunto, fornecendo argumentos para chegarmos à conclusão sobre a necessidade de uma possível superação de precedente, visando evitar barreiras ao direito de repetição do indébito.
Palavras-chave: Restituição do indébito tributário. Legitimidade. Tributos indiretos.
Abstract: This work proposes to investigate the jurisprudence on the active legitimacy to plead repetition of tributary overpayment in indirect taxes, and the unfoldings of this. We analyze whether the jurisprudential positioning promotes, in practice, the enforcement of the right of repetition of the tributary overpayment and if it is in accordance with the Federal Constitution. To do so, we make a brief historical account of the jurisprudential evolution on the subject, and, later, we study the consequences of the position of the Superior Court of Justice. Our research aims to make a rereading of the legal device that deals with the subject (article 166 of the National Tax Code), through an interpretation according to the Constitution and in the light of reasonableness.We emphasize the importance of principles under a post-positivist and contemporary bias. After exposing the concepts of institutes related to the theme, we start to construct a new view of the subject, providing arguments to arrive at the conclusion about the necessity of a possible precedent overcoming, in order to avoid barriers to the right of repetition of tributary overpayment.
Keywords: Restitution of the tributary overpayment; Legitimacy; Indirect taxes.
Sumário: Introdução. 1. Tributação indireta. 1.1. Metodologia da pesquisa. 1.2. Conceito de tributo. 1.3. Elementos da relação jurídico-tributária. 1.4. Conceito de tributação indireta e direta. 1.5. Contribuinte de direito e contribuinte de fato. 2. Restituição do indébito em tributos indiretos. 2.1. Conceito de restituição do indébito. 2.2. O tema no Código Tributário Nacional. 2.3. Súmula 546 do Supremo Tribunal Federal. 2.4. Posicionamento dos tribunais superiores acerca da legitimidade. 3. Projeto de lei complementar 167/2012. 4. Fundamentos para superação do entendimento jurisprudencial (overruling). 4.1. Contextualizando a polêmica situação da legitimidade ativa. 4.2. A correta interpretação do artigo 166 do Código Tributário Nacional à luz da Constituição Federal. 4.3. Divergência sobre o tema dentro do próprio Superior Tribunal de Justiça. 4.4 Ineficiência da tutela jurisdicional, afronta à economia processual e à isonomia. 4.5. Afronta ao direito fundamental da inafastabilidade da tutela jurisdicional. 4.6. O Estado sendo prejudicado. 4.7. Afronta ao postulado da proporcionalidade/razoabilidade. Conclusão. Referências.
Introdução
O tema proposto é acentuadamente polêmico e possui grande relevância social e econômica, uma vez que os tributos indiretos representam considerável fonte de arrecadação do Estado e a interpretação da matéria possui alto grau de dificuldade, apresentando divergências doutrinárias, especialmente no tocante à legitimidade ativa.
Nosso estudo tem por objetivo principal abordar tais divergências, mostrar o posicionamento jurisprudencial, suas consequências, e fornecer argumentos para uma possível superação de precedente, à luz da razoabilidade e da interpretação conforme a Constituição.
A presente pesquisa é bibliográfica e jurisprudencial. Inicialmente investigamos a jurisprudência dos tribunais superiores acerca da questão problema objeto de nosso estudo. Posteriormente, pesquisamos bibliografia referente à temática em pauta. Nossa pesquisa foi feita em doutrina, artigos científicos, dissertações, teses e revistas científicas. Utilizamos o método hipotético-dedutivo e o historicismo crítico.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não admite a legitimidade ativa do contribuinte de fato para pleitear restituição do indébito tributário, sob o argumento que o referido contribuinte não integra a relação jurídica tributária pertinente. A egrégia corte atribui a referida legitimidade apenas ao contribuinte de direito, desde que comprove não ter repassado o encargo financeiro a terceiro, ou esteja por este autorizado a ser ressarcido caso tenha repassado tal encargo.
Este posicionamento gerou severas críticas dos estudiosos sobre o tema. Diante desse entendimento exageradamente positivista, em determinadas situações acaba por não haver a restituição do indébito. É possível ainda que, mediante os excessivos empecilhos impostos, não haja legitimados para pleitear o indébito, culminando no enriquecimento indevido do Estado e oneração excessiva ao contribuinte, bem como violação ao direito fundamental de inafastabilidade da apreciação jurisdicional, configurando também verdadeira afronta a outros preceitos constitucionais. Percebemos que, em determinadas situações, até mesmo a Fazenda Pública pode ser prejudicada.
Desta forma, o que motivou o presente estudo foi a indignação com a sensação de injustiça cometida com o contribuinte, tanto de direito quanto de fato, e que pode acabar prejudicando até mesmo o Estado.
Não há razoabilidade em se manter um posicionamento que prejudique o contribuinte e o próprio Estado. Não há razoabilidade em se manter um posicionamento que retira do contribuinte o direito de reclamar uma lesão, afrontando, dentre outros princípios, o princípio da vedação ao enriquecimento indevido e o princípio da inafastabilidade da apreciação jurisdicional, preconizado no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal.
Assim, nossa pesquisa estuda as consequências do atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema em voga, e busca fundamentos para a superação do entendimento dos tribunais superiores acerca da questão, procurando um posicionamento mais justo, razoável e eficiente, tanto para o contribuinte quanto para o Estado, em conformidade com a Constituição Federal e com a razoabilidade.
Para tanto, o primeiro capítulo de nosso estudo traz a conceituação de institutos correlatos ao tema, cuja exposição é essencial para a correta compreensão do assunto em debate.
No segundo capítulo, adentramos de vez à questão problema, analisando a restituição do indébito em tributos indiretos, a questão no Código Tributário Nacional (artigo 166), a súmula 546 do Supremo Tribunal Federal e a jurisprudência acerca do tema.
No terceiro capítulo analisaremos o projeto de Lei Complementar 167/2012, que visa alterar a redação do artigo 166 do Código Tributário Nacional.
Por fim, o quarto capítulo nos fornece argumentos para uma possível superação de precedente, chegando-se à conclusão que seria mais razoável uma releitura do artigo 166 do Código Tributário Nacional, no sentido de conferir legitimidade ativa também ao contribuinte de fato para pleitear restituição do indébito, realizando uma interpretação conforme a Constituição Federal para atender ao que preceitua um Estado Democrático de Direito.
Vale frisarmos que nossa singela conclusão não visa fornecer uma solução definitiva ao tema, em razão de sua complexidade. Trata-se de uma possível interpretação conforme a Constituição do artigo 166 do Código Tributário Nacional, à luz da razoabilidade, procurando contribuir para os estudos acadêmicos sobre a polêmica questão problema de nosso estudo.
1 TRIBUTAÇÃO INDIRETA
1.1. Metodologia da pesquisa
Antes de adentrarmos propriamente no exame da legislação e do posicionamento dos tribunais superiores acerca da restituição do indébito tributário em tributos indiretos, bem como nas polêmicas inerentes ao tema, entendemos necessário explorar, ainda que superficialmente, alguns institutos jurídicos. Trazer tais conceitos é importante para, num segundo momento, verificarmos eventuais injustiças cometidas pelo legislador e pelos tribunais, obviamente contrárias ao que prega a boa aplicação do Direito, que em sua essência deve ser justo.
1.2. Conceito de tributo
Sumariamente, urge ressaltarmos os motivos e a importância da tributação, instituto essencial à existência do Estado. Pagar tributo é um ônus atribuído à sociedade para promover sua organização e manutenção, viabilizando as políticas públicas.
Como nos ensina Leandro Paulsen[1], “resta clara a concepção da tributação como instrumento da sociedade quando são elencados os direitos fundamentais e sociais e estruturado o estado para que mantenha instituições capazes de proclamar, manter e assegurar tais direitos”.
Assim, podemos afirmar que o Estado institui tributos com a finalidade principal de obter recursos ao Erário, para que possa desenvolver suas atividades e satisfazer o interesse público.
Nesse sentido, Jonathan Barros Vita[2] aduz que:
“Os tributos são formas artificiais de duplicação de operações neste (sub) sistema social, sendo versões descondicionalizadas da programação jurídica internalizadas pelo sistema econômico na forma de programas de propósito específico, viabilizando a autopoiesisdeste sistema”.
Posto isto, passemos à análise do conceito de tributo. O professor Leandro Paulsen[3] conceitua tributo da seguinte maneira:
“Cuida-se de prestação em dinheiro exigida compulsoriamente pelos entes políticos de pessoas físicas ou jurídicas, com ou sem promessa de devolução, forte na ocorrência de situação estabelecida por lei que revele sua capacidade contributiva ou sua vinculação a atividade estatal que lhe diga respeito diretamente, com vista à obtenção de recursos para o financiamento geral do Estado ou para o financiamento de atividades ou fins específicos realizados e promovidos pelo próprio Estado ou por terceiros no interesse público”.
Para obter o tributo, valendo-se de suas prerrogativas de Direito Público, o Estado promulga uma lei, que onera ao particular a obrigação de recolher ao Fisco certa quantia pecuniária em razão da ocorrência de determinado fato gerador do tributo.
O conceito legal de tributo é trazido pelo artigo terceiro do Código Tributário Nacional, onde se lê que tributo é “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
Quando o conceito legal estabelece que o tributo é prestação pecuniária, está esclarecendo que não pode ser pago em trabalho ou em produtos. Em regra, o tributo deve ser pago em moeda corrente ou equivalente. O termo “prestação compulsória” estipula que o pagamento do tributo é obrigatório, independente da vontade do particular. Vale ressaltar ainda que tributo não constitui sanção de ato ilícito, de forma que sua incidência não ocorre em razão de ato antijurídico.
A cobrança do tributo se faz mediante atividade administrativa plenamente vinculada, visando atender ao princípio da indisponibilidade do interesse público. Não existe discricionariedade na cobrança. Dessa forma, ocorrido o fato gerador o agente público deve realizar o lançamento e cobrar o valor devido, isso quando não couber ao próprio contribuinte realizar o lançamento por homologação.
Por fim, é importante frisar o princípio da legalidade tributária, consubstanciado no artigo 150, I, da Constituição, que veda aos entes federados instituir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Tal preceito é também aduzido pelo artigo 97 do Código Tributário Nacional. Sobre o referido princípio, nos ensina Hugo de Brito Machado[4]:
“Realmente, é induvidoso que, se somente a lei pode criar, somente a lei pode aumentar, a não ser nas hipóteses ressalvadas pela própria Constituição. Admitir, fora dessas hipóteses, que o tributo pode ser aumentado por norma inferior é admitir que essa norma inferior modifique o que em lei foi estabelecido, o que constitui evidente absurdo”.
Assim, quando se trata de tributação, como regra, apenas a lei possui legitimidade para estipular tributos, alterá-los, regulamenta-los e, de maneira geral, tratar da relação jurídico-tributária. É por este motivo que eventual cobrança tributária sem previsão legal ou em dissonância com a lei deve ser restituída, conforme veremos em momento mais oportuno de nosso estudo.
1.3. Elementos da relação jurídico-tributária
Este item de nosso estudo, por si só, também é muito abrangente e demandaria uma monografia inteira para abordar a fundo todos os seus aspectos. Como este não é o objeto de nosso estudo, analisaremos aqui superficialmente os institutos correlatos, a fim de fornecer apenas um panorama geral da situação para trilhar o caminho até onde pretendemos chegar com nossa pesquisa.
A lei estabelece que são apenas dois os sujeitos que formam a relação tributária, quais sejam, sujeito ativo e sujeito passivo. O sujeito passivo é aquele obrigado ao pagamento do tributo, podendo ser contribuinte ou responsável. Já o sujeito ativo é, nos termos do Código Tributário Nacional, a pessoa jurídica de direito público titular de competência para exigir o cumprimentoda obrigação tributária.
Tais conceitos são definidos nos artigos 119 e 121 do Código Tributário Nacional:
“Art. 119. Sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público, titular da competência para exigir o seu cumprimento.
Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.
Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:
I – contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;
II – responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.”
Antes de prosseguirmos, vale uma rápida observação. De acordo com o citado diploma legal, sujeito ativo é o titular da competência tributária. Devemos frisar que, tecnicamente, essa afirmação é incorreta. O termo “competência tributária” significa o poder de criar tributos. A constituição federal é que atribui esse poder aos entes federados. Assim, o exercício da competência tributária pressupõe o exercício da capacidade legislativa. Por isso o termo “competência tributária” deve ser entendido como a capacidade de criar normas. Portanto, competência tributária é diferente de capacidade tributária ativa. Este sim seria o termo técnico correto para designar-se ao sujeito ativo da obrigação tributária, pois significa o poder de ser sujeito ativo de uma relação jurídico-tributária e pode ser delegada a terceiro, diferente da competência tributária.
Feita esta observação, podemos concluir que sujeito ativo é aquele que possui capacidade tributária ativa, ou seja, tem poder de exigir prestação pecuniária do sujeito passivo.
O sujeito passivo é aquele que possui o dever de cumprir a obrigação tributária. A sujeição passiva é dividida entre sujeito passivo contribuinte e sujeito passivo responsável, conforme preconiza o artigo 121 do Código Tributário Nacional. Contribuinte é aquele que tem relação direta e pessoal com o fato gerador da obrigação tributária. Já o responsável não pratica o fato gerador, possuindo relação indireta com tal fato.
Analisaremos mais a frente a classificação do contribuinte em contribuinte de direito e contribuinte de fato. Tal diferenciação é feita na tributação indireta, cerne de nosso trabalho. Em síntese, antecipamos nesse item que contribuinte de direito é o responsável pelo tributo, ao passo que contribuinte de fato é aquele que arca com a repercussão econômica do tributo.
O responsável é identificado a partir do estudo da responsabilidade tributária. A responsabilidade pode ser direta (também chamada de responsabilidade por solidariedade) ou indireta. A responsabilidade direta está expressa no artigo 124 do Código Tributário Nacional, que preconiza:
“Art. 124. São solidariamente obrigadas:
I – as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;
II – as pessoas expressamente designadas por lei.
Parágrafo único. A solidariedade referida neste artigo não comporta benefício de ordem”.
A responsabilidade indireta consiste no dever de recolhimento do tributo por outra pessoa que não o contribuinte. A responsabilidade indireta subdivide-se entre responsabilidade por substituição e responsabilidade por transferência.
Na responsabilidade indireta por substituição a lei impõe que a obrigação nasça na pessoa do substituto (é o terceiro vinculado de forma indireta ao fato gerador). Já na responsabilidade por transferência a obrigação tributária surge no nome do contribuinte, porém, ocorre um evento que transfere a terceiro a obrigação de pagar o tributo. São modalidades de tal responsabilidade a responsabilidade dos sucessores, a responsabilidade de terceiros e a responsabilidade por infrações, previstas entre os artigos 129 a 138 do Código Tributário Nacional.
Em apertada síntese, esses são os elementos da relação jurídico-tributária e algumas de suas modalidades. Não aprofundamos o estudo nas modalidades de sujeição passiva por questão de foco em nosso tema. Conforme alhures dito, destacamos apenas superficialmente os institutos correlatos, a fim de fornecer um panorama geral da situação e dar sustentação ao nosso estudo para trilhar o caminho até onde pretendemos chegar com nossa pesquisa.
Dessa forma, o importante no presente tópico é percebermos que a ação de repetição do indébito é composta pelos mesmos sujeitos que formam a relação jurídico-tributária. A diferença é que na cobrança tributária o sujeito ativo é o ente público detentor da capacidade tributária ativa e o sujeito passivo é o contribuinte ou responsável, ao passo que na repetição do indébito o sujeito ativo é o contribuinte ou responsável e o sujeito passivo é o ente público.
A princípio, parece fácil a análise da relação jurídica na repetição do indébito. Todavia, a discussão se torna muito mais complexa quando passamos a estudar tal relação sob a ótica dos tributos indiretos, conforme veremos a seguir.
1.4 Conceito de tributação indireta e direta
Há grande variedade de classificação de tributos existentes em nosso ordenamento pátrio. Em meio a essa diversidade, nos ateremos a analisar a classificação que interessa ao objetivo de nossa pesquisa, abordando a classificação dos tributos quanto à possibilidade de repercussão do encargo econômico-financeiro.
Nesse contexto, tributos indiretos são aqueles que, por sua própria natureza, permitem haver o repasse do encargo econômico-financeiro a um terceiro que não faça parte diretamente da relação tributária. Nesse sentido, nos ensina Ricardo Alexandre[5]que “são indiretos os tributos que, em virtude de sua configuração jurídica, permitem a translação do seu encargo econômico-financeiro para uma pessoa diferente daquela defina em lei como sujeito passivo”.
Assim, o valor do tributo pago é embutido no preço do produto, de modo que o consumidor final desse produto arque com o custo do tributo. Exemplo típico é o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) pago pelos lojistas, que repassam ao consumidor final o gasto com esse tributo, agregando ao preço da mercadoria o valor despendido no referido imposto. É a partir daí que surgem os conceitos de contribuinte de fato (consumidor final) e contribuinte de direito (lojista). Dentre os tributos, é na modalidade “impostos” que, em certos casos, é possível identificar tais espécies de contribuinte.
Cláudio Carneiro[6] aduz que:
“Os impostos indiretos são aqueles em que o contribuinte de direito é diferente do contribuinte de fato. São aqueles que incidem sobre o contribuinte de direito que, por sua vez, transfere o encargo fiscal a uma pessoa alheia à relação jurídica tributária, usualmente chamada de contribuinte de fato.”
Por outro lado, os tributos diretos caracterizam-se por não admitirem a transferência do encargo econômico-financeiro, de forma que tal encargo é suportado pelo sujeito que pratica o fato gerador ou é eleito pela lei tributária.
Eduardo Sabbag[7] diferencia impostos diretos e impostos indiretos da seguinte forma:
“Imposto direto é aquele que não repercute, uma vez que a carga econômica é suportada pelo contribuinte, ou seja, por aquele que deu ensejo ao fato imponível (exemplos: IR, IPTU, IPVA, ITBI, lTCMD etc.). Por outro lado Imposto Indireto é aquele cujo ônus tributário repercute em terceira pessoa, não sendo assumido pelo realizador do fato gerador. Vale dizer que, no âmbito do imposto indireto, transfere-se o ônus para o contribuinte de fato, não se onerando o contribuinte de direito (exemplos: ICMS e IPI). Em resumo, enquanto o imposto direto é aquele em que não há repercussão econômica do encargo tributário, tendo ‘a virtude de poder graduar diretamente a soma devida por um contribuinte, de conformidade com sua capacidade contributiva’, o imposto indireto é aquele em que o ônus financeiro do tributo é transferido ao consumidor final, por meio do fenômeno da repercussão econômica, não ligando ‘o ônus tributário a um evento jurídico ou material e não dispondo de um parâmetro direto para apurar a capacidade econômica do contribuinte”.
A classificação tributária em direta e indireta apenas nos serve para distinguir os tributos tecnicamente aptos a transferir seu encargo financeiro, pois na prática, sob um viés estritamente financeiro, qualquer tributo poderia ensejar tal transferência. Por isso a doutrina nos afirma que a simples transferência do encargo financeiro, por si só, não caracteriza o tributo como indireto. Aliás, é o que nos ensina Ricardo Alexandre[8]:
“O ICMS é um tributo cujas configurações constitucional e legal estabelecem que a pessoa nomeada contribuinte (o comerciante) repassa para uma outra (o consumidor) o ônus econômico do tributo. São claras as presenças do contribuinte de direito (o comerciante) e o de fato (o consumidor), de forma que este sofre o impacto do tributo – que tem seu valor oficialmente embutido no preço pago –, enquanto aquele faz o recolhimento do valor recebido. O tributo é indireto”.
O professor continua seus ensinamentos nos dizendo que:
“No caso do imposto de renda, não há previsão de transferência oficial do encargo para os consumidores. A pessoa que obtém a renda é que teoricamente sofre o respectivo ônus. Na prática, entretanto, a empresa beneficiada pelo rendimento acaba repassando o valor do tributo a ser pago para o preço dos bens ou serviços que vende. Há a repercussão econômica do tributo, mas não o que se poderia chamar de repercussão jurídica, somente verificada nos casos em que há previsão normativa da oficial transferência do encargo. O tributo é considerado direto.”
Assim, concluímos que a simples transferência do encargo financeiro, consubstanciando a mera repercussão econômica, não caracteriza o tributo como indireto. Este somente é verificado quando existe o que se chama de repercussão jurídica, concretizada quando há previsão normativa da oficial transferência do encargo.
Atualmente, possuem repercussão jurídica, havendo a possibilidade de caracterizarem-se como indiretos, os seguintes impostos: imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços (ICMS), imposto sobre produtos industrializados (IPI) e imposto sobre serviços (ISS).
1.5 Contribuinte de direito e contribuinte de fato
Sob uma perspectiva econômica, contribuinte é quem arca com o encargo financeiro do tributo. Sob um viés jurídico, contribuinte é a pessoa que realiza o fato gerador do tributo, ocupando a sujeição passiva tributária. É a partir dessa interação entre os planos jurídico e econômico que surgem as noções de contribuinte de fato, construída a partir de um viés econômico, e contribuinte de direito, construída a partir de um viés jurídico.
Os conceitos de contribuinte de fato e contribuinte de direito, conforme já vimos, são aplicados mediante situações de tributação indireta. Nelas, o ônus financeiro do tributo pode ser repassado a um terceiro. Assim, o sujeito passivo da obrigação tributária (contribuinte de direito)repassa o valor pago pelo tributo a terceiro (contribuinte de fato), que acaba por suportar o encargo tributário. Tal fenômeno pode ocorrer no imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS), imposto sobre produtos industrializados (IPI) no imposto sobre serviços (ISS).
Nesse sentido, Ricardo Alexandre[9]aduz que:
“No que concerne à obrigação tributária principal, deve-se tomar cuidado com uma palavra que se consagrou e passou a ser utilizada de maneira atécnica (…). Trata-se da palavra contribuinte (…). Assim, o sujeito que compra uma mercadoria qualquer arca com o ônus do ICMS e é, por isso, chamado de contribuinte. O problema é que o sujeito passivo da obrigação de recolher o ICMS da operação é o comerciante e não o consumidor. A relação jurídico-tributária se instaura tendo, no polo ativo, o Estado e, no polo passivo, o comerciante, legalmente definido como contribuinte.
Por tudo isso, hoje se fala em contribuinte de fato e em contribuinte de direito. No primeiro conceito estão enquadradas as pessoas que sofrem a incidência econômica do tributo (no exemplo dado, o consumidor), mesmo que formalmente não integrem a relação jurídico-tributária instaurada; no segundo caso, está enquadrada parte das pessoas que ocupam o polo passivo da relação jurídico-tributária (no exemplo, o comerciante), sendo obrigadas a efetivamente pagar o tributo ou penalidade pecuniária (nas obrigações acessórias a classificação não é aplicável).”
Importante frisarmos mais uma vez que pela intrínseca e inevitável ligação com o conceito de tributação indireta, os ditos contribuinte de direito e contribuinte de fato só são diferenciados quando ficar caracterizada a repercussão jurídica do tributo, conforme vimos no tópico anterior de nosso trabalho. A repercussão jurídica se configura quando a legislação acerca de determinado tributo prevê a possibilidade de transferência de seu ônus financeiro. Assim, percebe-se que não basta a mera repercussão econômica, mas também é necessária a repercussão jurídica para caracterizar a tributação indireta e, consequentemente, os contribuintes de fato e de direito.
2. RESTITUIÇÃO DO INDÉBITO EM TRIBUTOS INDIRETOS
2.1. Conceito de restituição do indébito
Para compreendermos a restituição do indébito em tributos indiretos, necessária se faz a análise do instituto da restituição do indébito. O Código Tributário Nacional trata do assunto em seu artigo 165, e nos apresenta a seguinte redação:
“Art. 165. O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos:
I – cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido;
II – erro na edificação do sujeito passivo, na determinação da alíquota aplicável, no cálculo do montante do débito ou na elaboração ou conferência de qualquer documento relativo ao pagamento;
III – reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória.”
Em suma, depreendemos do supracitado dispositivo que o sujeito passivo da obrigação tributária tem direito à restituição do tributo pago indevidamente ou a maior que o devido, seja qual for a modalidade do seu pagamento. Assim, é atribuído ao Fisco o dever de restituir o indébito.
Podemos definir indébito tributário como sendo todo valor recolhido indevidamente pelo Fisco, em razão de alguma ilegalidade, algum erro de cálculo, ou até mesmo por reconhecimento de decisão judicial.
Devemos lembrar que a restituição, total ou parcial do tributo, também enseja os juros de mora e as penalidades pecuniárias, na mesma proporção, nos termos do artigo 167 do Código Tributário Nacional.
O tributo é prestação pecuniária compulsória instituída em lei (artigo terceiro do Código Tributário Nacional). Logo, sujeito passivo que paga tributo indevido ou maior que o devido legalmente estipulado acaba satisfazendo prestação pecuniária sem fundamento legal, e por isso tem direito ao ressarcimento. Constatada a ilegalidade da cobrança realizada, surge o direito de restituição.
Ao pagar tributo indevido, o contribuinte sofre lesão em sua propriedade. Assim, surge o direito de ressarcimento à quantia paga indevidamente. Nesse sentido, Marcelo Fortes de Cerqueira[10] aduz que:
“Nasce a obrigação efectual de devolução do indébito no preciso instante em que se concretiza, no campo das experiências sociais, o evento do pagamento indevido. O evento do pagamento indevido, por si só, já basta para a produção de efeitos jurídicos. É o marco a partir do qual já existem direitos subjetivos e deveres jurídicos correlatos (direito subjetivo do particular de exigir a restituição do tributo indevidamente recolhido e dever jurídico de o Estado devolvê- lo, respectivamente)”.
Verifica-se também que o referido dispositivo combate o enriquecimento ilícito do Estado, de forma que aquele que pagou, a título de tributo, um valor indevido, tem direito a restituição do indébito.
Nesse sentido, explica Ricardo Alexandre[11]:
“É cediço em direito que quem pagou o que não era devido possui direito à restituição. O fundamento da regra é princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, pois não é justo que alguém obtenha um aumento patrimonial sem que tenha ocorrido para tanto, sendo apenas beneficiário de erro de outrem”.
Assim, verificado o recolhimento indevido, surge o direito de restituição do indébito. Importante frisar que, conforme o artigo 165 do Código Tributário Nacional, a restituição independe de prévio protesto, uma vez que a obrigação tributária tem como fonte a lei.
Percebemos que os dois principais argumentos que justificam o direito à restituição do indébito são o princípio da legalidade tributária e a proibição do enriquecimento sem causa. Devemos ressaltar que a mera ilegalidade da cobrança, por si só, já é motivo suficiente para haver a restituição, independente de existir ou não enriquecimento indevido do Fisco ou empobrecimento do particular. É o que preconiza Andréa Medrado Darzé[12]:
“Com efeito, não se pode condicionar o direito à repetição à prova do efetivo empobrecimento do sujeito passivo tributário ou de qualquer outra pessoa envolvida, de forma mais ou menos direta, com o pagamento de tributo sem fundamento de validade, legal ou factual. Em nossa singela opinião, atitude como esta implica o estabelecimento de requisito novo, não previsto pela Constituição da República, que prescreve expressamente que somente é legítima a exigência de tributos nos patamares definidos pela lei”.
Para o particular, a legalidade significa dizer que lhe é permitido fazer tudo que a legislação não proíba. Já para o Estado, a legalidade significa dizer que é lícito fazer apenas aquilo que a lei permita. Assim, quando é cobrado valor sem previsão legal ou cobrado a maior que o limite legal, o enriquecimento indevido do Estado caracteriza sua ilicitude. Isso impede que o Fisco realize cobranças indevidas.
Nos tributos diretos a restituição do indébito é simples, de modo que quem paga valor indevido ou maior que o devido tem direito a ser restituído pelo Fisco. A polêmica gira em torno da restituição nos tributos indiretos.
Segundo o Superior Tribunal de Justiça, apenas o contribuinte de direito possui legitimidade ativa para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos, desde que comprove não ter repassado o encargo financeiro do tributo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a receber o ressarcimento.
Suponhamos que um lojista (contribuinte de direito) tenha pagado a título de imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) o valor de quinhentos reais, incluindo este valor no preço final do produto vendido ao consumidor final (contribuinte de fato). Posteriormente, descobre-se que a correta carga tributária seria duzentos reais, em razão de alíquota que fora cobrada acima do limite legal. Nesse panorama, percebemos que, de acordo com a jurisprudência, quem realmente arcou com o ônus financeiro do tributo (contribuinte de fato) não possui legitimidade para pleitear a restituição do indébito, mesmo havendo a repercussão jurídica, que como vimos é a existência de previsão normativa da oficial transferência do encargo. Assim, o direito fundamental da inafastabilidade da apreciação jurisdicional é violado, além dehaver enriquecimento sem causa do Estado. Em suma, eis a questão problema de nosso estudo, que esmiuçaremos mais a frente.
2.2. O tema no Código Tributário Nacional
A restituição do indébito em tributos indiretos é tratada no Código Tributário Nacional, em seu artigo 166:
“A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la”.
Nas palavras de Luciano Amaro[13]:
“O preceito reporta-se aos chamados "tributos indiretos", que, incidindo embora sobre o contribuinte "A" (dito contribuinte de direito), repercutem financeiramente sobre um terceiro (o chamado contribuinte de fato), que acaba suportando o ônus do tributo, embutido geralmente no preço de bens ou serviços”.
Devemos ressaltar que ao utilizar o termo “por sua natureza” o Código Tributário Nacional faz remissão aos tributos indiretos, de forma que não basta a mera repercussão econômica do tributo para caracterizá-lo como indireto, devendo haver também a repercussão jurídica, conforme nos ensina Ricardo Alexandre[14]:
“Ao se referir aos tributos que comportem, por sua natureza, a repercussão econômica, o CTN adota a definição de tributo indireto esposada nesta obra. Assim, não basta que seja possível a repercussão econômica, pois, conforme afirmado, tal possibilidade existe praticamente em todo tributo. É necessário que as normas que disciplinam o tributo prevejam a possibilidade oficial de transferência do encargo. Trata-se da repercussão jurídica e não apenas da repercussão econômica.”
Este é o posicionamento da doutrina majoritária e da jurisprudência, no sentido de reconhecer a aplicação do supracitado enunciado normativo sobre tributos indiretos. Porém, a interpretação do artigo 166 do Código Tributário Nacional é alvo de acentuada polêmica, havendo diversas posições doutrinárias sobre este dispositivo legal. Conforme preconiza Andréa Medrado Darzé[15], as principais interpretações doutrinárias são nos seguintes sentidos:
“Solução Interpretativa no 1º: O artigo 166 do CTN é inconstitucional, não devendo por esta razão ser aplicado em qualquer caso.
Solução Interpretativa nº 2: O presente artigo é constitucional ainda que venha a representar efetivo obstáculo à restituição. Isso porque, na ausência de justo título que ampare tanto o Estado quanto o sujeito passivo do tributo, deve prevalecer o princípio da supremacia do interesse público, incorporando-se as quantias indevidamente recolhidas ao Erário.
Solução Interpretativa nº 3: O referido enunciado normativo é constitucional desde que se restrinja a sua aplicação aos tributos indiretos.
Solução Interpretativa n 4: É legítima a aplicação do artigo 166 do CTN apenas aos casos em que há repercussão jurídica, o que ocorreria:
– exclusivamente nas hipóteses de substituição tributária;
– apenas nas situações em que o tributo é lançado e destacado em documento fiscal;
– nas hipóteses de substituição tributária e quando o tributo é lançado e destacado em documento fiscal; e
– nos tributos incidentes sobre o consumo.”
No tocante à tese da inconstitucionalidade, a referida autora afirma que os principais argumentos de quem defende a inconstitucionalidade do dispositivo legal em tela podem ser sintetizados da seguinte maneira:
“(a)O direito à restituição do indébito tributário tem fundamento na Constituição da República; (b) é vedado ao Estado enriquecer sem causa; (c) a restituição do indébito é questão jurídico-tributária divorciada do negócio jurídico de direito privado subjacente; (d) em virtude do uso, previsto na legislação, de notas fiscais simplificadas ou de máquinas registradoras, é impossível identificar o comprador que suportou o ônus do tributo, individualizando-se, assim, a restituição; (e) a exigência do art. 166 do CTN viola o princípio isonomia, impondo ao contribuinte que pagou tributo indevido, direto ou indireto, um encargo não suportado pelo contribuinte que simplesmente se absteve de recolher referido tributo; (f) Existindo o Estado sobretudo para servir à sociedade, não pode valer-se de meios reprováveis pela moral para alcançar seus objetivos, como está a fazer quando obstaculiza, na hipótese do art. 166 do CTN, a restituição do indébito sob a justificativa de evitar o locupletamento ilícito do particular.”[16]
Além daqueles que defendem a inconstitucionalidade do artigo 166 do Código Tributário Nacional, há também doutrinadores que, apesar de reconhecer a constitucionalidade do referido dispositivo, alegam que somente o sujeito passivo do tributo possui legitimidade ativa para pleitear a restituição do indébito, por não reconhecerem a existência jurídica do contribuinte de fato. Nesse sentido, Andréa Medrado Darzé transcreve o posicionamento de José Eduardo Soares de Melo, que afirma:
“Embora o ônus financeiro seja normalmente suportado pelo adquirente de bens/serviços, mediante pagamento de preço, a verdade é que a relação jurídica – envolvendo pagamento e recebimento do tributo – somente vinculou o contribuinte e a pessoa de direito público. Os adquirentes de bens/serviços representam figuras totalmente estranhas à relação jurídica tributária (Fisco x Contribuinte) em razão do que não possuem nenhuma legitimidade tributária para postular a repetição do indébito tributário.”[17]
Em nosso entendimento, essa tese é totalmente descabida, pois viola por completo o direito fundamental de inafastabilidade da tutela jurisdicional, bem como ignora a repercussão jurídica e faz com que o contribuinte de fato seja lesado.
É evidente que o contribuinte de fato não paga tributo, porém, é quem suporta o ônus financeiro do tributo indireto. Assim, não seria razoável afastar sua legitimidade ativa para pleitear repetição do indébito.
Caracterizando a questão problema de nossa pesquisa, existe também a doutrina que defende que apenas o sujeito passivo do tributo (contribuinte de direito) tem direito de requerer a restituição do indébito, desde que não tenha transferido o encargo financeiro do tributo a terceiro, ou, caso o tenha transferido, haja prévia autorização do terceiro (contribuinte de fato) a receber o ressarcimento. Lamentavelmente é este o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça. Em nosso sentir, o presente entendimento se equivoca, em meio a outras razões, porque admite a existência do contribuinte castrado, “já que, teoricamente, seria titular de um direito, mas não o poderia exercer diretamente”.[18]
Contrariando as demais correntes, existe a doutrina que confere legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear restituição do indébito. É a esta tese que nos filiamos. Alfredo Augusto Becker[19] é um dos doutrinadores que defendem a legitimidade ativa do contribuinte de fato, aduzindo que:
“(…) o contribuinte de jure não tem legitimidade para pedir a restituição do tributo por ele pago indevidamente (exclusivamente) no caso de repercussão jurídica do tributo, isto é, quando a lei outorga ao contribuinte de jure o direito de reembolso ou retenção do tributo perante uma terceira pessoa”.
Analisadas as principais correntes doutrinárias, faremos uma exposição do que seria a correta interpretação do artigo 166 do Código Tributário Nacional em nosso entendimento. Retornaremos ao assunto também no capítulo 4.
Extraímos do referido dispositivo que a restituição do indébito de tributos indiretos é condicionada à comprovação de existência de transferência do encargo financeiro ou de expressa autorização pelo terceiro que assumiu o encargo.
A jurisprudência dos tribunais superiores se faz no sentido que apenas o contribuinte de direito possui a supracitada legitimidade ativa, que fica condicionada à comprovação de ter repassado o encargo financeiro do tributo ao contribuinte de fato, ou estar por este expressamente autorizado a pleitear o ressarcimento. Tal argumento é sustentado pelo Superior Tribunal de Justiça sob a justificativa de o contribuinte de fato não fazer parte da relação jurídico-tributária. Aprofundaremos o estudo da jurisprudência no momento oportuno.
Com tal posicionamento dos tribunais, o consumidor final (contribuinte de fato) que arca indevidamente com uma cobrança tributária fica impossibilitado de pleitear diretamente junto ao Fisco a restituição do indébito, pois depende da boa vontade do comerciante (contribuinte de direito), que pode não ter interesse em ajuizar a ação de restituição, vez que não obteve prejuízo ao repassar o encargo financeiro do tributo.
Contudo, em nosso sentir, a redação do artigo 166 do Código Tributário Nacional é ambígua acerca da legitimidade ativa para pleitear a restituição do indébito. A interpretação pode ser feita no sentido de que é possível a restituição ao contribuinte de fato, desde que este “prove haver assumido o referido encargo”, nos termos do próprio dispositivo. Em nossa interpretação, o dispositivo legal em tela apenas nos diz que o legitimado a pleitear o ressarcimento deve ser quem suportou o encargo financeiro. Nesse sentido, também pensam alguns doutrinadores, tal como Ricardo Alexandre[20]:
“Há entendimento doutrinário segundo o qual o art. 166, do CTN, ao facultar a restituição do tributo “a quem prove haver assumido o referido encargo”, possibilitaria que o contribuinte de fato, de posse de documento que comprove ser ele o real atingido pelo ônus do tributo (nota fiscal), estaria legitimado a pleitear a restituição. Esta é a interpretação que mais se coaduna com os ideais de justiça, propiciando àquele que efetivamente foi lesado a possibilidade de reparação direta do seu prejuízo”.
O referido autor se posiciona a favor da legitimidade ativa do contribuinte de fato para pleitear restituição do indébito. Também entendemos ser esse entendimento o mais razoável, por se aproximar mais aos ideais de moral, institucionalismo e justiça, pois geraria o ressarcimento a quem realmente foi lesado. Aprofundaremos o estudo sobre esses institutos no item 4.2 de nosso estudo, ao analisarmos, em nosso sentir, a correta interpretação do artigo 166 do Código Tributário Nacional, à luz dos princípios constitucionais e dos ideais supracitados. Ainda, tal entendimento seria mais benéfico também à coletividade e ao próprio Estado, pois contribuiria para a celeridade dos processos, evitando demandas desnecessárias, atendendo ao princípio constitucional da eficiência da prestação dos serviços públicos. Adentraremos nesse assunto mais a frente em nossa pesquisa, no tópico específico.
Apesar do entendimento do professor Ricardo Alexandre, aqui exposto para corroborar nosso pensamento, devemos frisar mais uma vez que a doutrina se divide, e reconhecemos que a corrente à qual nos filiamos é minoritária. Paulo de Barros Carvalho[21] afirma que:
“Assim é que a norma veiculada pelo artigo 166, do Código Tributário Nacional, não pode ser aplicada de maneira isolada; há de integrar-se com todas as regras do sistema, sobretudo com as veiculadas pelos artigos 121, 123 e 165, do Código Tributário Nacional. Em nenhuma delas está consignado que o terceiro que arque com o encargo financeiro do tributo possa ser contribuinte. Portanto, só o contribuinte tributário tem direito à repetição de indébito e, via de consequência, só a ele é atribuído legitimidade processual para tal empreendimento”.
Nosso estudo constatou que doutrina majoritária concorda com o posicionamento jurisprudencial sobre o tema, argumentando que apenas o contribuinte de direito faz parte da relação jurídico-tributária, e, consequentemente, apenas este teria legitimidade ativa para pleitear restituição do indébito, sob a condicionante de comprovar a não transferência do ônus financeiro a terceiro ou receber sua autorização (do terceiro que arcou com o referido ônus) para restituição.
Como percebemos, a interpretação do artigo 166 do Código Tributário Nacional é acentuadamente polêmica e gera divergências entre a opinião dos doutrinadores. Em nosso sentir, a doutrina que defende a legitimidade ativa do contribuinte de fato é mais acertada, conforme tentamos demonstrar no transcorrer do presente estudo.
Por fim, a título de complemento, para concretizar a análise do artigo 166, devemos ressaltar um termo que gera dúvidas. O termo “restituição de tributos” nos remete, num primeiro momento, à ideia de crédito em dinheiro, isto porque a repetição do indébito tributário é gênero, que possui a restituição e a compensação como modalidades. Em síntese, na restituição o particular recebe o crédito em pecúnia, ao passo que, na compensação, o crédito é compensado com um débito. Doutrina majoritária e jurisprudência coadunam no sentido de o artigo 166 do Código Tributário Nacional abranger tanto a restituição quanto a compensação, conforme se depreende, dentre outros julgados, do Recurso Especial 1366622, de São Paulo. Portanto, quando nos referirmos à restituição do indébito no presente estudo, devemos compreender “restituição” no sentido amplo, abarcando tanto restituição quanto compensação do crédito advindo do indébito.
2.3. Súmula 546 do Superior Tribunal Federal
Interpretando o artigo 166 do Código Tributário Nacional, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula 546, aduzindo que “cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo”.
Desta forma, mesmo com a alusão “a quem prove haver assumido referido encargo”, feita pelo artigo 166 do Código Tributário Nacional, o atual entendimento da jurisprudência é que apenas o contribuinte de direito possui legitimidade ativa para pleitear a repetição de indébito em tributos indiretos, desde que prove não ter repassado ao contribuinte de fato o ônus financeiro do referido tributo, ou, no caso de tê-lo transferido, estar expressamente autorizado a recebê-lo.
Este também é o entendimento doutrinário majoritário, como observamos pelo posicionamento de Paulo de Barros Carvalho[22]
“[…] só o contribuinte tributário tem direito à repetição de indébito e, via de consequência, só a ele é atribuído legitimidade processual para tal empreendimento. Advirta-se que o terceiro que suporta com o ônus econômico do tributo não participa da relação jurídica tributária, razão suficiente para que se verifique a impossibilidade desse terceiro vir a integrar a relação consubstanciada na prerrogativa da repetição do indébito, não tendo, portanto, legitimidade processual. Resulta dessas considerações que é ao sujeito passivo da obrigação tributária, ou responsável, que realizou o evento jurídico do pagamento indevido, que pertence o direito subjetivo de figurar no polo ativo do liame da devolução do indébito tributário”.
Destarte, conforme vimos, a interpretação do Superior Tribunal de Justiça, através do artigo 166 do Código Tributário Nacional e da súmula 546 do Supremo Tribunal Federal, é no sentido de não atribuir legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos. Única exceção à regra, onde é atribuída a supracitada legitimidade ativa ao contribuinte de fato, é o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) de energia elétrica e de fornecimento de água, conforme perceberemos no próximo tópico da pesquisa, ao analisarmos a jurisprudência sobre o assunto.
2.4. Posicionamento dos tribunais superiores acerca da legitimidade
Realizando uma breve análise histórica da restituição do indébito em tributos indiretos, percebemos que no passado não havia nenhuma possibilidade de tal restituição, conforme se compreende da súmula 71 do Supremo Tribunal Federal, datada de dezembro de 1963, que aduz o seguinte: “Embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto”.
À época o Supremo era responsável pela análise de matéria infraconstitucional federal, pois ainda não havia sido criado o Superior Tribunal de Justiça. A Suprema Corte justificava tal entendimento argumentando que o contribuinte que praticou o fato gerador, recolheu o tributo indireto e repassou o encargo financeiro do tributo a terceiro não possuiria legitimidade para pleitear restituição, pois não sofre as consequências da exação. Dizia-se que entre haver locupletamento indevido do Estado ou do particular, era preferível que houvesse tal locupletamento do Estado, pois assim ao menos o enriquecimento indevido reverteria em prol da sociedade.
Esta súmula foi alvo de muitas críticas, que debruçavam-se em alegar que tal entendimento era um estímulo à cobrança de tributos indevidos, ferindo os princípios da legalidade tributária, da moralidade, entre outros. Nesse contexto, foi reaberto o debate acerca legitimidade para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos.
Avançando em seu entendimento, em 1969 o Supremo editou a súmula 546, conforme já vimos, conferindo apenas ao contribuinte de direito a legitimidade ativa para pleitear a restituição do indébito tributário.
Percebemos que, historicamente, a jurisprudência sempre impôs empecilhos à restituição de tributos indiretos, seja pelo Supremo Tribunal Federal, quando a este cabia dar a ultima palavra sobre legislação federal, seja pelo Superior Tribunal de Justiça, que atualmente possui tal competência.
Até o início dos anos 2000, o Superior Tribunal de Justiça convivia com dois entendimentos, no sentido de conferir legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear repetição do indébito em tributos indiretos[23]e no sentido de conferir legitimidade ativa também ao contribuinte de direito, desde que comprovado o não repasse do encargo financeiro do tributo ao contribuinte de fato, ou estar por este autorizado a receber a restituição.[24]
Assim, o Superior Tribunal de Justiça conferia legitimidade tanto ao contribuinte de direito quanto ao contribuinte de fato para pleitear a repetição do indébito em tributos indiretos.
Em razão da multiplicidade de recursos sobre o tema, a matéria foi submetida ao procedimento do artigo 543-C, do Código de Processo Civil de 1973, à época vigente. Assim, o Recurso Especial 903394, de Alagoas, julgado em sede de recurso repetitivo, no ano de 2010, serviu como parâmetro para outras lides. Foram analisados vinte acórdãos do Superior Tribunal de Justiça relacionados ao tema, publicados entre 2012 e 2016, todos fazendo menção ao supracitado Recurso Especial. Por isso o utilizamos como referência em nossa pesquisa para representar a jurisprudência contemporânea sobre o assunto e estudá-lo a fundo.
Importante frisar também que, apesar da posição consubstanciada no referido julgado em sede de recurso repetitivo, posteriormente foram proferidas isoladas decisões em sentido contrário[25], atribuindo legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear repetição do indébito em tributos ou incidências indiretas. Essas decisões que contrariam o recurso paradigma acerca do tema foram poucas, mas demonstram a falta de uniformidade nas decisões do Superior Tribunal de Justiça e evidenciam o quanto a questão é polêmica.
Feita esta observação, devemos concluir que o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça, construído em sede de recurso repetitivo, é no sentido de, como regra, negar legitimidade ativa ao contribuinte de fatopara pleitear restituição do indébito em tributos indiretos, sob o principal argumento que o contribuinte de fato não integra a relação jurídica tributária pertinente.
Em razão da importância do posicionamento explicitado no Recurso Especial 903394, julgado em sede de recurso repetitivo e que serve de parâmetro para julgamentos acerca do tema, julgamos necessário transcrever os principais trechos do referido Recurso Especial, de relatoria do ministro Luiz Fux:
“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. IPI. RESTITUIÇÃO DE INDÉBITO. DISTRIBUIDORAS DE BEBIDAS. CONTRIBUINTES DE FATO. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. SUJEIÇÃO PASSIVA APENAS DOS FABRICANTES (CONTRIBUINTES DE DIREITO). RELEVÂNCIA DA REPERCUSSÃO ECONÔMICA DO TRIBUTO APENAS PARA FINS DE CONDICIONAMENTO DO EXERCÍCIO DO DIREITO SUBJETIVO DO CONTRIBUINTE DE JURE À RESTITUIÇÃO (ARTIGO 166, DO CTN). LITISPENDÊNCIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULAS 282 E 356/STF. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ. APLICAÇÃO.
1.O "contribuinte de fato" (in casu, distribuidora de bebida) não detém legitimidade ativa ad causam para pleitear a restituição do indébito relativo ao IPI incidente sobre os descontos incondicionais, recolhido pelo "contribuinte de direito" (fabricante de bebida), por não integrar a relação jurídica tributária pertinente. (…)
4. Em se tratando dos denominados "tributos indiretos" (aqueles que comportam, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro), a norma tributária (artigo 166, do CTN) impõe que a restituição do indébito somente se faça ao contribuinte que comprovar haver arcado com o referido encargo ou, caso contrário, que tenha sido autorizado expressamente pelo terceiro a quem o ônus foi transferido.
5. A exegese do referido dispositivo indica que: "…o art. 166, do CTN, embora contido no corpo de um típico veículo introdutório de norma tributária, veicula, nesta parte, norma específica de direito privado, que atribui ao terceiro o direito de retomar do contribuinte tributário, apenas nas hipóteses em que a transferência for autorizada normativamente, as parcelas correspondentes ao tributo indevidamente recolhido: Trata-se de norma privada autônoma, que não se confunde com a norma construída da interpretação literal do art. 166, do CTN. É desnecessária qualquer autorização do contribuinte de fato ao de direito, ou deste àquele. Por sua própria conta, poderá o contribuinte de fato postular o indébito, desde que já recuperado pelo contribuinte de direito junto ao Fisco. No entanto, note-se que o contribuinte de fato não poderá acionar diretamente o Estado, por não ter com este nenhuma relação jurídica. Em suma: o direito subjetivo à repetição do indébito pertence exclusivamente ao denominado contribuinte de direito. Porém, uma vez recuperado o indébito por este junto ao Fisco, pode o contribuinte de fato, com base em norma de direito privado, pleitear junto ao contribuinte tributário a restituição daqueles valores. A norma veiculada pelo art. 166 não pode ser aplicada de maneira isolada, há de ser confrontada com todas as regras do sistema, sobretudo com as veiculadas pelos arts. 165, 121 e 123, do CTN. Em nenhuma delas está consignado que o terceiro que arque com o encargo financeiro do tributo possa ser contribuinte. Portanto, só o contribuinte tributário tem direito à repetição do indébito. Ademais, restou consignado alhures que o fundamento último da norma que estabelece o direito à repetição do indébito está na própria Constituição, mormente no primado da estrita legalidade. Com efeito a norma veiculada pelo art. 166 choca-se com a própria Constituição Federal, colidindo frontalmente com o princípio da estrita legalidade, razão pela qual há de ser considerada como regra não recepcionada pela ordem tributária atual. E, mesmo perante a ordem jurídica anterior, era manifestamente incompatível frente ao Sistema Constitucional Tributário então vigente." (Marcelo Fortes de Cerqueira, in "Curso de Especialização em Direito Tributário – Estudos Analíticos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho", Coordenação de Eurico Marcos Diniz de Santi, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2007, págs. 390/393)
6. Deveras, o condicionamento do exercício do direito subjetivo do contribuinte que pagou tributo indevido (contribuinte de direito) à comprovação de que não procedera à repercussão econômica do tributo ou à apresentação de autorização do "contribuinte de fato" (pessoa que sofreu a incidência econômica do tributo), à luz do disposto no artigo 166, do CTN, não possui o condão de transformar sujeito alheio à relação jurídica tributária em parte legítima na ação de restituição de indébito.
7. À luz da própria interpretação histórica do artigo 166, do CTN, dessume-se que somente o contribuinte de direito tem legitimidade para integrar o pólo ativo da ação judicial que objetiva a restituição do "tributo indireto" indevidamente recolhido (Gilberto Ulhôa Canto, "Repetição de Indébito", in Caderno de Pesquisas Tributárias, n° 8, p. 2-5, São Paulo, Resenha Tributária, 1983; e Marcelo Fortes de Cerqueira, in "Curso de Especialização em Direito Tributário – Estudos Analíticos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho", Coordenação de Eurico Marcos Diniz de Santi, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2007, págs. 390/393).
8. É que, na hipótese em que a repercussão econômica decorre da natureza da exação, "o terceiro que suporta com o ônus econômico do tributo não participa da relação jurídica tributária, razão suficiente para que se verifique a impossibilidade desse terceiro vir a integrar a relação consubstanciada na prerrogativa da repetição do indébito, não tendo, portanto, legitimidade processual”(Paulo de Barros Carvalho, in "Direito Tributário – Linguagem e Método", 2ª ed., São Paulo, 2008, Ed. Noeses, pág. 583). (60 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp 903.394/AL, Relator: Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, Dje. 24.03.2010. Disponível em . Acesso em 26/11/2015. ) . (grifo nosso).
Assim, percebemos que o contribuinte de fato não possui legitimidade para pleitear repetição do indébito. Este é o posicionamento aplicado atualmente pelo Superior Tribunal de Justiça, como regra.
Em nosso estudo, encontramos apenas uma exceção, qual seja, a restituição do indébito na incidência de imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) em casos onde há concessão de serviço público, nas peculiares relações envolvendo o Estado-concedente, a concessionária e o consumidor.Nessa hipótese a egrégia corte atribui legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear restituição do indébito.
Esta exceção se configura como um gênero que, em nossa interpretação, pode desdobrar-se em situações peculiares. Em nossa pesquisa na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, encontramos duas situações de tributação indireta que admitem legitimidade ativa do contribuinte de fato para pleitear o indébito.
A primeira situação é o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) cobrado sobre a demanda contratada e não utilizada de energia elétrica (a exemplo do Recurso Especial 1299303, de Santa Catarina). A segunda situação é o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) cobrado sobre o serviço público de fornecimento de água (a exemplo do Recurso Especial 1349196, do Rio de Janeiro). Nessas situações, caracterizado o indébito, o contribuinte de fato possui legitimidade ativa para pleitear o ressarcimento.
Urge sempre ressaltarmos que o Recurso Especial 1299303 foi julgado em sede de recurso repetitivo, servindo de parâmetro para inúmeros casos semelhantes. Aliás, a restituição do indébito a contribuinte de fato em imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) nas cobranças indevidas de energia elétrica é a situação excepcional mais corriqueira, comumente julgada pelo Superior Tribunal de Justiça.
Apesar de termos encontrado apenas essas duas situações excepcionais em nossa pesquisa, em nossa modesta interpretação o Superior Tribunal de Justiça abre brecha para outros casos de concessão de serviço público onde o contribuinte de fato possui legitimidade ativa para pleitear restituição do indébito. Vejamos:
“(…) Diante do que dispõe a legislação que disciplina as concessões de serviço público e da peculiar relação envolvendo o Estado-concedente, a concessionária e o consumidor, esse último tem legitimidade para propor ação declaratória c/c repetição de indébitona qual se busca afastar, no tocante ao fornecimento de energiaelétrica, a incidência do ICMS sobre a demanda contratada e nãoutilizada” (Recurso Especial 1299303). (grifo nosso).
Percebemos também esta abertura no seguinte trecho da ementa do Recurso Especial 1349196:
“Tratando-se de serviço público prestado mediante concessão doPoder Público (Lei n. 8.987/95), decidiu a Primeira Seção que o usuário tem legitimidade para pleitear a repetição de indébito deICMS. Aplicação, por analogia, do entendimento sufragado no RESP 1.299.303/SC” (art. 543-C do CPC).
Importante salientarmos também outro importante julgado encontrado em nossa pesquisa no tocante às situações excepcionais, onde o consumidor final possui legitimidade ativa para pleitear restituição do indébito.Achamos interessante citar este julgado, de relatoria do Ministro Herman Benjamim, em razão de sua fundamentação ao justificar a legitimidade ativa do consumidor.
Pois bem. O Superior Tribunal de Justiça entende, pela leitura do artigo 166 do Código Tributário Nacional, não ser obrigatória a transferência do encargo financeiro do tributo. Porém, em determinadas situações envolvendo concessão de serviço público a transferência do supracitado encargo é obrigatória. Sendo a concessionária obrigada a repassar o encargo, não se aplica a regra do artigo 166. O fato de o repasse ser obrigatório atribui legitimidade ativa ao consumidor para ajuizar a ação de repetição de indébito. Nesse caso, o consumidor deixaria de ser contribuinte de fato, se tornando contribuinte de direito. Assim entendeu o Ministro Herman Benjamin, no Recurso Especial 1278688, do Rio Grande do Sul:
“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ENERGIA ELÉTRICA. DEMANDA CONTRATADA.LEGITIMIDADE ATIVA PROCESSUAL DO CONSUMIDOR. ICMS. INCIDÊNCIA APENAS SOBRE ENERGIA EFETIVAMENTE CONSUMIDA. (…)
4. Diferentemente das fábricas de bebidas (objeto do repetitivo), as concessionárias de energia elétrica são protegidas contra o ônus tributário por disposição de lei, que permite a revisão tarifária em caso de instituição ou aumento de imposto (exceto o incidente sobre a renda).
5. A lei federal impõe inquestionavelmente ao consumidor o ônus tributário, tornando-se nebulosa a aplicação da alcunha de "contribuinte de fato". Isso porque a assunção do ônus do imposto não se dá pelo simples repasse de custos, típico de qualquer relação empresarial, mas decorre de manifesta determinação legal. O consumidor é atado à exigência tributária por força de lei (art. 9º, § 3º, da Lei 8.987/1995).
6. A rigor, a situação de consumidor aproxima-se muito, se é que não coincide, com a de substituído tributário. De fato, a concessionária, tendo reconhecido legalmente o direito de repassar o ônus de impostos ao consumidor em relação a produto essencial, e não sendo inibida por pressão concorrencial, age como substituto tributário, sem qualquer interesse em resistir à exigência ilegítima do Fisco.
7. Inadmitir a legitimidade ativa processual em favor do único interessado em impugnar a inválida cobrança de um tributo é o mesmo que denegar acesso ao Judiciário em face de violação ao direito.
8. No mérito, o acórdão recorrido harmoniza-se com o entendimento do STJ de que o ICMS deve incidir apenas sobre o valor da energia elétrica efetivamente consumida, ainda que seja pago preço por demanda superior.”
Diante de todo o exposto, percebemos que o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, como regra, é no sentido de não atribuir legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos. Tal legitimidade é atribuída apenas ao contribuinte de direito, desde que comprove não ter transferido a terceiro o encargo econômico-financeiro do tributo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a receber o ressarcimento.
Para tanto, a egrégia corte se baseia essencialmente no artigo 166 do Código Tributário Nacional e na súmula 546 do Supremo Tribunal Federal. Este posicionamento é a regra, que ocorre na esmagadora maioria dos casos. Porém, excepcionalmente, a referida corte atribui legitimidade ativa ao consumidor final para pleitear restituição do indébito em certos casos onde há concessão de serviço público, por haver repasse obrigatório do encargo financeiro do tributo, tal como ocorre na incidência de imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) sobre o serviço público de fornecimento de água tratada e de fornecimento de energia elétrica.
Por fim, devemos lembrar que quando há transferência do encargo econômico do tributo nos casos de retenção na fonte não se aplica o artigo 166 do Código Tributário Nacional, porque não se trata de pagamento de tributo devido em nome próprio transferindo o encargo, mas sim de pagamento de tributo devido por terceiro. Por isso o Superior Tribunal de Justiça entende que o artigo 166 do Código Tributário Nacional aplica-se apenas aos tributos sobre consumo[26].
3. PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR 167/2012
Atualmente (Jan./2017) tramita na Câmara o Projeto de Lei Complementar 167/2012, com o escopo de alterar o artigo 166 do Código Tributário Nacional para prever a propositura de ação regressiva por outrem que provar a assunção do encargo financeiro decorrente de obrigação tributária. O projeto de lei propõe que o artigo 166 do Código Tributário Nacional passe a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 166. É parte legítima para pleitear a repetição do indébito o sujeito passivo da obrigação tributária, ainda que o efetivo encargo financeiro tenha sido transferido a outrem.
Parágrafo único. Quem provar a assunção do encargo financeiro referida no caput disporá de ação regressiva contra o sujeito passivo da obrigação tributária para requerer que a restituição lhe seja feita.”
Neste sentido, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional concluiu que:
“[…] Sob o prisma da constitucionalidade/juridicidade material da proposta de projeto de lei complementar, temos, conforme acima explicado, que o PLC em comento tem o objetivo bem específico de conferir àquele que arcar com o encargo financeiro de um tributo, seu direito de regresso perante o contribuinte de direito, para requerer que a restituição lhe seja feita. […] a proposta não altera em nada a relação jurídica tributária entre o contribuinte de direito e o Fisco. Apenas resguarda o direito do contribuinte de fato perante o contribuinte de direito, quando este tiver reconhecido seu direito à restituição de indébito perante o Fisco nas relações tributárias que envolvam tributos indiretos”.[27]
O referido projeto de lei propõe que a legitimidade ativa do contribuinte de direito para pleitear restituição do indébito não mais seja condicionada à transmissão do encargo financeiro, o que inutilizaria a súmula 546 do Supremo. Propõe também, caso haja transmissão do encargo, a desnecessidade de autorização, de quem arcou com tal encargo, para que o contribuinte de direito requeira a restituição. Há ainda proposta de constar expressamente na lei a ação regressiva do contribuinte de fato contra o contribuinte de direito, para requerer a restituição.
Uma contundente crítica que o Projeto de Lei Complementar 167/2012 vem sofrendo é que sua redação facilitaria o enriquecimento ilícito do contribuinte de direito, pois este poderia se valer da repetição do indébito para receber o valor em dobro. O contribuinte de direito, que repassa o encargo financeiro do tributo ao contribuinte de fato, poderia ajuizar ação de repetição de indébito sem autorização deste, de modo a receber o valor em dobro (pois repassou o encargo e receberia a restituição), caso o contribuinte de fato não se valha da ação de regresso ou sequer venha a tomar conhecimento da existência do indébito.
Apesar do óbice para aprovação do referido projeto de lei, só o fato de ter havido a iniciativa de sua proposição já nos fornece indícios de que o artigo 166 do Código Tributário Nacional merece uma nova interpretação, ou até mesmo alteração, para promover a justa e correta aplicação do Direito. Isso demonstra que a repetição do indébito em tributos indiretos é um tema que carece de inovações legais e jurisprudenciais, pois está evidente que, na prática, a restituição de pagamentos indevidos em tributos indiretos é quase impraticável, em virtude das restrições estabelecidas pela interpretação jurisprudencial ao artigo 166 do Código Tributário Nacional. Esta infeliz circunstância vai de encontro a um dos principais objetivos do instituto da repetição do indébito, que é justamente evitar o enriquecimento ilícito do Estado.
4. FUNDAMENTOS PARA SUPERAÇÃO DO ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL (OVERRULING)
4.1 Contextualizando a polêmica situação da legitimidade ativa
Conduzimos nossa pesquisa até aqui de forma a definir conceitos fundamentais para uma boa compreensão do assunto objeto de nosso estudo. Não foi nosso objetivo analisar minuciosamente tais conceitos, mas sim dar o suporte necessário para elucidar o tema e nossas indagações. Também expomos situações exemplificando a polêmica e o porquê de nosso posicionamento. Aprofundaremos agora nos argumentos favoráveis à superação do atual entendimento jurisprudencial acerca do polêmico tema de nosso trabalho.
Conforme alhures dito, levando-se em consideração a legislação e a jurisprudência, como regra, apenas o contribuinte de direito pode pleitear a restituição do tributo pago indevidamente, desde que comprove não ter repassado o ônus financeiro do tributo a terceiro, ou no caso de tê-lo repassado, estar pelo terceiro expressamente autorizado a receber tal restituição.
Importante frisar mais uma vez que a única ressalva a isto é o caso de concessão de serviço público que apresenta obrigatoriedade de repasse do encargo financeiro do tributo, no caso do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) incidente sobre o fornecimento de energia elétrica e sobre o fornecimento de água tratada. Apenas nessas situações o consumidor final consegue pleitear a restituição do indébito.
A legitimidade ativa para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos, da forma que é tratada atualmente pelo ordenamento jurídico e pelos tribunais superiores, praticamente impossibilita a restituição do indébito a quem realmente é merecedor, ou seja, o contribuinte de fato, uma vez que é este quem na realidade arca com o encargo financeiro dos tributos indiretos.
É fato notório que, na prática, como regra, o contribuinte de direito acaba por embutir no valor final de seu produto o valor pago pelos tributos incidentes, de forma que o contribuinte de fato é quem assume tal encargo financeiro.
Para ilustrar esta situação, tomemos um exemplo singelo, mas que nos ajuda a compreender a questão em tela. Um lojista paga ao Fisco mil reais a título de imposto sobre circulação de mercadorias e serviços(ICMS), em razão de um produto adquirido por sua loja. Consequentemente, o lojista (contribuinte de direito) embute esses mil reais no preço final de venda do referido produto. Assim, quem arca com o encargo financeiro do tributo acaba sendo o consumidor final (contribuinte de fato). Imaginemos que, posteriormente, descobre-se que o Fisco daquele estado estava cobrando alíquota do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) acima do percentual permitido por lei, de forma que o valor correto do tributo deveria ser quinhentos reais. Desta forma, houve um indébito tributário, que deverá ser restituído. O lojista (contribuinte de direito) não teve prejuízo, uma vez que repassou o encargo financeiro do tributo ao consumidor final (contribuinte de fato). Quem ficou no prejuízo foi o contribuinte de fato, que pagou mais do que deveria e não pode pleitear a restituição, em razão de nossa legislação e jurisprudência, conforme vimos. Desta feita, o Estado se enriquece ilicitamente ao mesmo tempo em que o consumidor final, de mãos atadas, vê o princípio constitucional da inafastabilidade da apreciação jurisdicional, que também é direito fundamental, ser estraçalhado.
Ora, que justiça é essa onde quem arca indevidamente com um encargo não pode pleitear sua restituição? Em razão do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, o contribuinte que verdadeiramente arca com o encargo financeiro do tributo indireto fica impedido de provocar a tutela jurisdicional para afastar lesão que sofreu.
O artigo 166 do Código Tributário Nacional e sua interpretação feita pelo Superior Tribunal de Justiça criam uma “inconstitucionalidade eficaz”, termo designado por Ricardo Alexandre.
Imaginemos que determinado tributo foi cobrado com base em lei declarada inconstitucional. O contribuinte de direito não pede restituição do indébito, pois como já havia repassado o encargo financeiro do tributo não fica no prejuízo e não vê necessidade em pleitear tal ressarcimento. Ocorre que o contribuinte de fato, que realmente arcou com o encargo, fica impossibilitado de pleitear ressarcimento. Assim, os efeitos jurídicos de uma lei declarada inconstitucional acabam, na prática, sendo validados.
Indignado com a situação, Ricardo Alexandre[28] escreve:
“Assim, o consumidor ilegitimamente atingido por uma errônea cobrança do ICMS, munido de documento em que comprove ter suportado o ônus do tributo, fica absurdamente impossibilitado de obter diretamente a repetição do indébito tributário, passando a depender de uma iniciativa do comerciante (contribuinte de direito), que pode não demonstrar interesse em litigar em busca de um valor para ser repassado a terceiro.”
Em nosso sentir, o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca do artigo 166 do Código Tributário Nacional fere princípios como a moralidade administrativa, economia processual, acesso à justiça, isonomia e vedação ao enriquecimento indevido.
Contextualizada a polêmica acerca da legitimidade ativa para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos, passaremos agora à análise de argumentos favoráveis a uma possível superação de entendimento jurisprudencial sobre o tema, de modo a garantir a referida legitimidade também ao contribuinte de fato.
4.2 A correta interpretação do artigo 166 do Código Tributário Nacional à luz da Constituição Federal
Ao mesmo tempo em que o dispositivo em estudo estabelece o direito à restituição do indébito, sua interpretação feita pelos tribunais impõe enormes dificuldades à efetivação desse direito ao contribuinte de direito, além de impossibilitar sua efetivação ao contribuinte de fato. Tal interpretação viola inúmeros princípios constitucionais, como por exemplo, aqueles que preceituam a inafastabilidade da apreciação jurisdicional, a isonomia e a vedação ao enriquecimento ilícito, além da razoabilidade.
Em uma visão jurídica contemporânea e pós-positivista, à qual nos enquadramos, entendemos que os princípios devem prevalecer sobre as normas, pois condensam valores, dão unidade e harmonia ao sistema, atenuando tensões normativas. Assim, as normas devem trazer os valores dos princípios, e com as interpretações não é diferente.
A própria constituição federal, em seu artigo 226, §3º, reconhece a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, porém, à luz de princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e a isonomia, interpreta-se tal dispositivo admitindo-se não só a união estável, mas também o casamento entre pessoas do mesmo sexo. É fato notório que este é o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal, feito a partir de uma interpretação conforme a Constituição, levando em conta os princípios constitucionais.
No caso do artigo 166 do Código Tributário Nacional não deve ser diferente. Sua interpretação também deve ser feita à luz dos princípios constitucionais. Em nosso sentir, a interpretação que melhor atenderia aos supracitados princípios constitucionais seria aquela no sentido de atribuir legitimidade ativa ao contribuinte de fato, de modo a proteger a inafastabilidade da apreciação jurisdicional, a legalidade tributária, a moralidade administrativa, entre outros princípios. Desta forma, o que pretendemos não é propor a inconstitucionalidade do dispositivo, mas sim sua releitura, fazendo uma interpretação conforme a constituição.
Conforme explicitamos no item 2.2 de nosso estudo, entendemos que o artigo 166 do Código Tributário Nacional é ambíguo, de modo a comportar a interpretação que o contribuinte de fato possua legitimidade para pleitear restituição do indébito. O enunciado normativo estabelece que a restituição dos tributos indiretos somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo. Em nosso entendimento, a correta interpretação do termo transcrito se dá no sentido de permitir a abrangência do contribuinte de fato como quem prove haver assumido referido encargo.
Dessa forma, quem realmente arcou com o encargo financeiro do tributo seria legitimado a pleitear restituição do indébito, havendo maior integração com o ideal de justiça. Assim também pensam autores como Ricardo Alexandre e Alfredo Becker, conforme já transcrevemos trechos de suas obras no item 2.2 de nossa pesquisa.
Há autores que, além de entender pela legitimidade ativa do contribuinte de fato para pleitear a repetição do indébito, também entendem não ser ônus do contribuinte (tanto de fato quanto de direito) comprovar haver assumido o encargo financeiro do tributo, sendo esse ônus da Fazenda Pública, em razão do artigo 373, II, do Código de Processo Civil (dispositivo correspondente ao artigo 333, II, do Código de 1973, que vigeu até o ano de 2015). Tal artigo preconiza que o ônus da prova incumbe “ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”. Hugo de Brito Machado Segundo[29], fazendo referência ao Código de Processo Civil de 1973, ainda em vigência à época que escreveu sobre o tema, aduz que:
“Por outro lado, é inegável que a repercussão do ônus consiste em fato extintivo ou impeditivo do direito do autor de uma ação de restituição do indébito, sendo usualmente arguida pela Fazenda, na condição de ré. Assim, em princípio, o ônus de provar a ocorrência da repercussão, se pertinente a sua invocação, seria da Fazenda, e não do autor da ação, a teor do que didaticamente dispõe o art. 333, II, do CPC”.
Em sentido díspar de nosso pensamento, doutrina majoritária e jurisprudência interpretam o artigo 166 no sentido de vedar a legitimidade do contribuinte de fato para pedir restituição do indébito, sob o principal argumento que este (contribuinte de fato) não integra a relação jurídico-tributária.
Ora, é óbvio que o contribuinte de fato não paga tributo. Entretanto, em nossa singela opinião, essa circunstância não é suficiente para negar legitimidade ativa ao referido contribuinte para pleitear diretamente junto ao Fisco a restituição do indébito em tributos indiretos, uma vez que é o contribuinte de fato quem arca com o encargo financeiro nesses tributos. A transferência de tal encargo ocorre, muitas vezes, em razão da própria legislação tributária. Em nosso sentir, a existência dessa regra de transferência é um argumento que afasta a interpretação do Superior Tribunal de Justiça em atribuir a referida legitimidade apenas ao contribuinte de direito. Logo, não seria razoável retirar do contribuinte de fato a supracitada legitimidade ativa.
Nos casos em que a transferência do encargo ocorre em razão da própria legislação tributária, configura-se verdadeira relação jurídica, diferente da relação tributária, que em nosso sentir geraria legitimidade ao contribuinte de fato. Interpretar o artigo 166 contrariamente a isso significa praticamente impossibilitar a restituição do indébito em tributos indiretos, dando passe livre ao Estado para estabelecer tributação indevida nos tributos indiretos.
Para interpretarmos corretamente o artigo 166 do Código Tributário Nacional, à luz da constituição federal, devemos levar em conta também a moral e o institucionalismo, a fim de aplicarmos o direito de maneira justa. Para compreendermos isto, utilizaremos a metáfora do caixa eletrônico, criada por Zenon Bankowski.
Em síntese, Bankowski diz que qualquer sujeito que possua cartão e conta corrente em um banco é apto a realizar um saque, desde que este esteja dentro do limite do valor que o referido sujeito possua em sua conta. Porém, se esse sujeito estiver em situação de extrema urgência médica, necessitando realizar um saque em valor acima do que ele possui em conta, o caixa eletrônico irá negar o saque. Não importa quantas vezes esse sujeito tente realizar o saque ou suplique por compaixão, a resposta do caixa eletrônico será sempre a mesma, qual seja, negar o saque.
Nesse contexto, Bankowski[30] explica: “Começo a argumentar com a máquina, tendo em vista que minha necessidade é urgente. Imploro para a máquina me dar, por compaixão, o dinheiro necessário para minha necessidade, mas não tenho sucesso”.
Essa metáfora exemplifica as conseqüências de uma interpretação excessivamente legalista. O direito e seus intérpretes não podem ter o mesmo comportamento do caixa eletrônico, no sentido de afirmar a existência de apenas uma interpretação possível a determinado enunciado normativo, fechando os olhos para outras possíveis interpretações, ignorando por completo as idiossincrasias de determinadas situações. Conforme exposto em nosso estudo, há situações onde a restituição do indébito em tributos indiretos torna-se impossível em razão da equivocada interpretação, excessivamente legalista, dada ao artigo 166 do Código Tributário Nacional. Em nosso entendimento, tal interpretação deve ser corrigida, por todo o exposto em nossa pesquisa.
Essa correção é justificada, dentre outros fatores já expostos, também pelo institucionalismo, pensamento explicado por Marcelo de Castro Cunha Filho e Marcos Vinício Chein Feres[31]:
“A insurgência de uma nova corrente de pensamento, denominada institucionalismo, defendia e ainda hoje defende, em contraposição aos moldes positivistas da ciência, um estudo teórico do direito, levando-se em consideração mais que uma mera abordagem sistemática do ordenamento. Ela propõe, além disso, uma análise dos aspectos sociais e políticos que, decisivamente, influem na compreensão das normas e de todo o fenômeno jurídico”.
Assim, o institucionalismo propõe uma reconstrução normativa através de valores socialmente legitimados. A justiça, bem como a moral, são valores (socialmente legitimados) essenciais ao Estado Democrático e à correta aplicação do direito. Tais valores são deixados de lado na atual interpretação do Superior Tribunal de Justiça acerca do artigo 166 do Código Tributário Nacional, ao vedar a legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos.
Nesse contexto, vale lembrarmo-nos das lições de Robert Alexy[32] sobre correção moral e a dupla natureza do direito: “Ele inclui necessariamente tanto uma dimensão real ou fática, quanto uma ideal ou crítica. O lado fático se reflete nos elementos definitórios da produção formalmente adequada e da eficácia social; o ideal, no da correção moral”.
Dessa forma, concluímos que o direito possui duas dimensões. A dimensão real (também chamada de dimensão fática) consiste na produção formalmente adequada de normas socialmente eficazes. Já a dimensão ideal (também chamada de dimensão crítica) nos traz a necessidade da correção moral dessas normas e das decisões judiciais, consubstanciando a pretensão de correção do direito.
Aliás, é essa pretensão de correção do direito que tentamos consolidar em nosso estudo, demonstrando a dimensão ideal do direito, segundo Robert Alexy. Sob nosso olhar, nítida é a necessidade de correção da interpretação feita pelos tribunais acerca do artigo 166 do Código Tributário Nacional, uma vez que a atual interpretação do Superior Tribunal de Justiça, conforme demonstramos ao longo de nosso trabalho, além de ofender a justiça e a moral, fere diversos princípios constitucionais.
4.3 Divergência sobre o tema dentro do próprio Superior Tribunal de Justiça
Conforme vimos no item 2.4 de nosso estudo, no início dos anos 2000, o Superior Tribunal de Justiça convivia com dois entendimentos, no sentido de conferir legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear repetição do indébito em tributos indiretos e no sentido de conferir legitimidade ativa também ao contribuinte de direito, desde que comprovado o não repasse do encargo financeiro do tributo ao contribuinte de fato, ou estar por este autorizado a receber a restituição.
Assim, o Superior Tribunal de Justiça conferia legitimidade tanto ao contribuinte de direito quanto ao contribuinte de fato para pleitear a repetição do indébito em tributos indiretos.
Em razão da multiplicidade de recursos sobre o tema, a matéria foi submetida ao procedimento do artigo 543-C, do Código de Processo Civil de 1973, à época vigente. Assim, o Recurso Especial 903394, de Alagoas, julgado no ano de 2010, fora julgado em sede de recurso repetitivo, servindo como parâmetro para outras lides.
Apesar da posição consubstanciada no referido julgado em sede de recurso repetitivo, foram proferidas decisões em sentido contrário, conforme vimos no item 2.4, atribuindo legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear repetição do indébito em tributos ou incidências indiretas. Essas decisões que contrariam o recurso paradigma acerca do tema foram poucas, mas demonstram a falta de uniformidade nas decisões do Superior Tribunal de Justiça e evidenciam o quanto a questão é polêmica.
Ora, como pode a egrégia corte consolidar um entendimento em sede de recurso repetitivo, e posteriormente emanar decisões contrárias a este entendimento? Tais acontecimentos corroboram a ideia que o entendimento sobre o tema deve ser revisto, e os atuais precedentes superados, pois a matéria não está sendo interpretada da melhor maneira pelo Superior Tribunal de Justiça.
Para tanto, em nosso estudo, após árduas pesquisas e desenvolvimento de raciocínio sobre o assunto, entendemos ser o melhor caminho atribuir legitimidade ativa também ao contribuinte de fato para pleitear repetição do indébito em tributos indiretos. Aliás, conforme já demonstramos, este entendimento já foi adotado, há pouco tempo, pelo próprio Superior Tribunal de Justiça.
4.4 Ineficiência da tutela jurisdicional, afronta à economia processual e à isonomia
O ordenamento e a jurisprudência a respeito do tema de nossa pesquisa contribuem para que o Judiciário fique cada vez mais abarrotado e a morosidade dos processos aumente substancialmente, fazendo com que o Estado preste com cada vez menos eficiência a tutela jurisdicional, prejudicando a coletividade. Assim, não se trata apenas de um problema individual, mas de um problema social, que afeta a todos. Tanto o Estado quanto a sociedade ficam prejudicados.
Isto porque, havendo o repasse do encargo financeiro do tributo, o contribuinte de direito precisa primeiro ajuizar a ação de restituição contra o Estado,desde que haja autorização expressa do contribuinte de fato, para posteriormente este se valer de normas do direito privado para ajuizar ação de regresso contra o contribuinte de direito. O que poderia ser resolvido com uma só demanda é resolvido com duas demandas. O próprio Superior Tribunal de Justiça aduz que:
“Por sua própria conta, poderá o contribuinte de fato postular o indébito, desde que já recuperado pelo contribuinte de direito junto ao Fisco. No entanto, note-se que o contribuinte de fato não poderá acionar diretamente o Estado, por não ter com este nenhuma relação jurídica. Em suma: o direito subjetivo à repetição do indébito pertence exclusivamente ao denominado contribuinte de direito. Porém, uma vez recuperado o indébito por este junto ao Fisco, pode o contribuinte de fato, com base em norma de direito privado, pleitear junto ao contribuinte tributário a restituição daqueles valores (Recurso Especial 903394/AL – analisado em sede de recurso repetitivo).”
Portanto, quando o contribuinte de direito repassa o encargo econômico do tributo indireto ao contribuinte de fato, este deve autorizar expressamente aquele a receber a restituição em ação de indébito. Desta forma, primeiro há a ação de indébito ajuizada pelo contribuinte de direito, para só então haver a ação regressiva do contribuinte de fato contra o contribuinte de direito. Frise-se que o contribuinte de fato só poderá se valer de seu direito de regresso depois que o contribuinte de direito já houver recuperado o indébito junto ao Fisco, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça acima transcrito.
Entender que o contribuinte de fato só pode receber o que pagou indevidamente depois de autorizar o contribuinte de direito a ajuizar a ação de restituição de indébito para posteriormente o Fisco realizar a restituição é extremamente inviável, desnecessário e excessivamente burocrático.
Percebemos que são necessárias duas demandas para que o contribuinte de fato faça valer seu direito de ser reparado da lesão que o Estado lhe causou. Como já vimos, há situações onde o contribuinte de fato, injustamente, não consegue ser ressarcido do indébito. Na prática, são restritas as situações nas quais o contribuinte de fato consegue ser restituído e, mesmo nessas poucas situações, o referido contribuinte ainda deve enfrentar um terrível stress, gerado por toda a excessiva demora e pela desnecessária burocracia implantada pelo posicionamento do Superior Tribunal de Justiça.
O que seria possível solucionar (a restituição do indébito) com apenas uma demanda, se o contribuinte de fato tivesse legitimidade ativa, é solucionado com duas demandas e num prazo muito maior, ferindo os princípios da economia processual, da eficiência e da duração razoável do processo.
É bem verdade que são poucas as situações em que o contribuinte consegue na prática ser ressarcido, em razão dos já citados empecilhos impostos pela legislação e jurisprudência. Porém, imaginemos tais situações em grande escala Brasil afora. Certamente toma grandes proporções. Isso deixa de ser problema apenas do contribuinte de fato e se torna um problema social, uma vez que o Judiciário, que já é lento, fica cada vez mais abarrotado, aumentando ainda mais a morosidade dos processos, que já é enorme, ferindo, conforme dito, os princípios constitucionais da celeridade processual, da eficiência e da razoável duração do processo.
A situação exposta também nos permite identificar afronta ao princípio constitucional da isonomia. A posição do Superior Tribunal de Justiça fornece proteção indubitavelmente mais ampliada ao contribuinte de direito que ao contribuinte de fato. Se o contribuinte de direito assume o encargo econômico do tributo, pode pleitear eventual indébito diretamente contra o Fisco. Já o contribuinte de fato, quando lhe é repassado o encargo financeiro do tributo indireto, só pode pleitear restituição de eventual indébito através de ação regressiva contra o contribuinte de direito depois que este, após receber autorização expressa do contribuinte de fato para receber o indébito, já tiver recuperado do Fisco o valor do ressarcimento. Percebemos ainda que o contribuinte de fato fica refém do contribuinte de direito, pois aquele somente obterá sua restituição se este ajuizar a ação de indébito contra o Fisco.
Por todo o exposto, percebemos nítida afronta ao princípio constitucional da isonomia. O atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema não proporciona sequer a igualdade formal, tampouco igualdade material.
4.5 Afronta ao direito fundamental da inafastabilidade da apreciação jurisdicional e enriquecimento ilícito do Estado
O posicionamento jurisprudencial acerca da legitimidade ativa para restituição do indébito em tributos indiretos fere frontalmente o princípio constitucional da inafastabilidade da apreciação jurisdicional. O artigo 5º, XXXV, de nossa magna carta, preconiza que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Urge asseverar que tal dispositivo é um direito fundamental, e como tal não poderia, em hipótese alguma, ser cerceado. Tal direito é afastado tanto do contribuinte de direito quanto do contribuinte de fato.
Conforme já analisamos, de acordo com a jurisprudência, interpretando o artigo 166 do Código Tributário Nacional e a súmula 546 do Supremo Tribunal Federal, cabe ao contribuinte de direito pleitear a restituição do indébito tributário, desde que o referido contribuinte comprove não ter repassado o ônus financeiro do tributo, ou esteja ele autorizado pelo terceiro que arcou com o ônus a receber a restituição.
Ocorre que, na prática, a tarefa de identificar e localizar o contribuinte de fato é extremamente dificultosa, e nem sempre se concretiza. Ainda, a principal prova de não ter havido repasse do ônus financeiro se faz através de perícia contábil, quando o contribuinte de direito demonstra que “não houve alteração dos preços no caso de criação ou aumento de tributo, tendo-se operado a absorção do citado aumento pela própria margem de lucro do produto ou do serviço”.[33]
Porém, tal método de prova não é capaz de retratar a realidade de maneira absoluta em todas as situações. Nesse sentido, Hugo de Brito Machado Segundo[34] aduz que:
“Há casos em que o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) e o imposto sobre serviços (ISS) podem não ser considerados tributos indiretos, o que ocorre, por exemplo, quando seu preço não se relaciona diretamente com o preço da mercadoria ou do serviço disponibilizado ao consumidor final. É o que ocorre, v.g., com o imposto sobre serviços (ISS) cobrado em quota fixa das sociedades de profissionais e com o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) cobrado, também em valor fixo, de estabelecimentos submetidos a regime especial (…) Ainda nos casos em que o tributo é calculado tendo por base o valor da operação tributada, não se mostra seguro aferir a repercussão do ônus financeiro através de simples perícia contábil. É que os preços de mercado sofrem oscilações oriundas de vários fatores, de modo que pode perfeitamente haver uma situação na qual o preço da mercadoria sofra um aumento, mantendo-se estável a carga tributária, e vice-versa.”
Também criticando a eficiência da perícia contábil, Andréa Medrado Darzé[35] ressalta que:
“A despeito de reconhecermos que a presente prova é indiciária da ausência de repercussão econômica, não concordamos que se trate de prova concludente. Isso porque o preço das mercadorias ou serviços pode variar por inúmeros fatores, não se podendo afirmar, com segurança, que nesses casos houve efetiva assunção do ônus pelo contribuinte de direito”.
Isso posto, concluímos que em inúmeras situações a perícia contábil ou quaisquer outros meios, tais como tabelamento de preço, manutenção de bens em estoque, entre outros, utilizados para analisar se houve a transferência do encargo financeiro do tributo podem chegar à conclusão que o contribuinte de direito repassou o encargo ao consumidor final (contribuinte de fato), quando na verdade tal transferência não ocorreu. Nessas situações o contribuinte não consegue pleitear a restituição do indébito, é lesado e o Estado acaba se enriquecendo ilicitamente, pois não devolve o indébito.
O artigo 165 do Código Tributário Nacional (preconiza o direito de restituição do indébito) e o direito fundamental de inafastabilidade da apreciação jurisdicional acabam sendo violados. Tomemos consciência do enorme absurdo presente nessas situações. O Estado se enriquece ilicitamente lesando o contribuinte. Este não consegue ter seu direito lesado apreciado pelo Judiciário, uma vez que a legislação veda sua legitimidade ativa em razão da não comprovação da ausência de repasse do ônus financeiro do tributo.
Ora, como os meios de prova não fornecem certeza nos resultados e há excessiva dificuldade em se comprovar que o contribuinte não fez o repasse do ônus financeiro do tributo a terceiro, como pode o Estado exigir que o contribuinte faça essa comprovação? Há situações mais complexas, onde a comprovação de não repasse do valor do tributo ao consumidor final é impossível ser feita com exatidão. Logo, não é razoável que se retire do contribuinte (tanto de direito quanto de fato) a legitimidade para pleitear a restituição do indébito.
Nesse sentido, Hugo de Brito Machado Segundo[36] afirma que:
“A principal consequência na visão hoje dominante na jurisprudência, éexigir-se do contribuinte, dito contribuinte de direito, a prova de que não repassou o valor do tributo ao consumidor final, contribuinte “de fato”. Não efetuada a prova, considera-se que o contribuinte não tem legitimidade para pleitear a restituição, ainda que tenha sido efetivamente indevido o pagamento. Opera-se o locupletamento sem causa do Estado, sob a já apontada justificativa de que ele seria preferível ao locupletamento sem causa do particular, o contribuinte de direito”.
Diante dessas situações, podemos pensar: se for dada legitimidade ativa ao contribuinte de direito independente de este conseguir provar que não realizou a transferência do encargo financeiro do tributo a terceiro, pode ser que o contribuinte de direito se locuplete indevidamente, pois se agir de má-fé pleiteando tal ressarcimento e já houver repassado o encargo a terceiro, ocorrerá o enriquecimento ilícito.
Dessa forma, o contribuinte de direito, estando de má-fé, repassaria o encargo a terceiro e ainda seria ressarcido pelo Estado, “lucrando” indevidamente duas vezes. Inclusive, esse raciocínio foi um dos argumentos para edição da súmula 71 do Supremo, já superada, que vedava restituição de tributos indiretos, embora pagos indevidamente. O Supremo justificava tal súmula alegando ser preferível o locupletamento sem causa do Estado do que o locupletamento indevido do particular, vez que ao menos o enriquecimento indevido do Estado se reverte em favor da sociedade.
Em nosso sentir, o posicionamento mais ponderado e razoável seria um meio termo entre os extremos. Não gerar enriquecimento indevido do Estado nem do particular. Em nosso modesto entendimento, a solução mais razoável seria atribuir legitimidade ativa também ao contribuinte de fato para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos, vez que é este quem arca com o encargo financeiro do tributo indireto.
Pois bem. Apenas o contribuinte de direito possui legitimidade ativa para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos, desde que comprove não ter transferido o encargo financeiro a terceiro, ou, tendo transferido, que possua sua autorização para receber o ressarcimento. Do modo que a situação é tratada hoje pela jurisprudência, percebemos que havendo indébito em tributos indiretos, as chances de, na prática, haver restituição, são mínimas.
Quando o contribuinte de direito não repassa o ônus financeiro a terceiro, as chances de haver repetição do indébito são mínimas, em virtude da extrema dificuldade que, conforme vimos no decorrer de nossa pesquisa, o contribuinte de direito encontra em provar que não realizou a transferência do ônus financeiro do tributo. Não realizada tal comprovação, não há legitimados para pleitear o ressarcimento, e o Estado se enriquece indevidamente.
Quando o contribuinte de direito repassa o ônus financeiro a terceiro, as chances de haver repetição do indébito também são mínimas, em virtude da falta de legitimidade ativa do contribuinte de fato, que fica refém da boa vontade do contribuinte de direito, uma vez que somente este, com autorização daquele, pode pleitear a repetição do indébito, para só então o contribuinte de direito repassar (se é que realmente repassará) esse valor ao contribuinte de fato. Nem sempre o contribuinte de direito demonstra essa boa vontade, pois não teria nada a ganhar, sob o aspecto financeiro, com a iniciativa de ajuizar ação de repetição de indébito. Pelo contrário, teria despesas com advogado e custas processuais. Logo, nessas situações, também o Estado acaba se enriquecendo indevidamente às custas do particular.
Percebemos que o atual posicionamento jurisprudencial abre enormes brechas para o enriquecimento indevido do Estado. Pelo exposto, o posicionamento mais sensato, em nosso sentir, seria atribuir legitimidade ativa também ao contribuinte de fato. Dessa forma, não haveria enriquecimento indevido do Estado em face do particular, o que consubstancia mais um argumento a favor da atribuição da legitimidade ativa ao contribuinte de fato.
Atribuindo legitimidade ativa ao contribuinte de fato, a única injustiça que poderia ocorrer seria o contribuinte de fato, de má-fe, pleitear restituição do indébito de tributo que não lhe tenha sido transferido o encargo financeiro. Nesse caso, a restituição deveria ser feita ao contribuinte de direito. Assim, este deveria se valer de direito de regresso contra o contribuinte de fato, resolvendo-se a questão a partir de normas do direito privado. Porém, entendemos que tal hipótese dificilmente aconteceria na prática, pois o contribuinte de direito quase sempre repassa o encargo, e mesmo que acontecesse, dos males o menor: antes abrir brecha para a remota hipótese de enriquecimento indevido de um particular sobre outro particular, sendo combatida através do direito de regresso, do que permitir o enriquecimento indevido do Estado sobre o particular em corriqueiras situações, sem a possibilidade de direito de regresso.
Analisamos até aqui a violação ao direito de inafastabilidade da apreciação jurisdicional dando maior ênfase ao contribuinte de direito. Ademais, devemos relembrar que o contribuinte de fato também tem este direito fundamental violado. Uma vez que não é atribuída legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear restituição do que ele pagou indevidamente, este fica de mãos atadas, encurralado, pois não lhe é atribuído direito de ação contra o Estado por lesão a direito, qual seja, a repetição do indébito. Assim, nosso ordenamento, bem como a jurisprudência, acabam por excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão a um direito, indo de encontro ao que preceitua a constituição federal.
É inadmissível que o princípio da inafastabilidade da apreciação jurisdicional seja visto como um direito meramente formal. É preciso que legislação e jurisprudência zelem pela efetivação desse princípio, que não deve ser violado. Assim também pensa Marcelo Novelino[37]:
“A lei maior consagrou expressamente este princípio ao estabelecer que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º, XXXV). Por sua imprescindibilidade para a efetiva participação do cidadão na vida social, o direito de acesso à jurisdição não pode ser visto como um direito meramente formal. Conforme observa Luiz Guilherme Marinoni (2006), “obstáculos econômicos e sociais não podem impedir o acesso à jurisdição, já que isso negaria o direito de usufruir de uma prestação social indispensável para o cidadão viver harmonicamente na sociedade”.
A interpretação do Superior Tribunal de Justiça dada ao nosso ordenamento jurídico não atribui legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos. Lembremos ainda que, conforme alhures dito, há situações onde nem o contribuinte de direito nem o contribuinte de fato possuem legitimidade ativa para pleitear tal ressarcimento, caracterizando cristalina violação ao direito fundamental de acesso à justiça.
Tal interpretação impossibilita os contribuintes de exercerem seus direitos. Como se não bastasse, a Fazenda ainda lucra indevidamente em razão disso. Nesse sentido, vale a pena citarmos o voto de Aliomar Baleeiro, ao julgar o Recurso Especial 45977, do Espírito Santo. Naquela época, mesmo sob a égide da súmula 71 do Supremo Tribunal Federal, Aliomar Baleeiro já criticava restrições excessivas ao direito de repetição do indébito tributário:
“(…) não se pode negar a nocividade, do ponto de vista ético e pragmático, duma interpretação que encoraja o Estado mantenedor do direito a praticar, sistematicamente, inconstitucionalidades e ilegalidades na certeza de que não será obrigado a restituir o proveito da turpitude de seus agentes e órgãos. Nada pode haver de mais contrário ao progresso do direito e a realização da ideia força de justiça.”
Como já vimos, os meios para verificar se houve transferência do encargo financeiro do tributo não são completamente confiáveis. Assim, pode ser que o contribuinte de direito não consiga comprovar que não transferiu tal ônus ao contribuinte de fato, ficando impossibilitado de pleitear a repetição do indébito. Nessas situações o Fisco cobra indevidamente determinada quantia e não há legitimados para pleitear o ressarcimento, o que caracteriza verdadeiras aberrações jurídicas, onde Estado se enriquece ilicitamente às custas do contribuinte ao mesmo tempo em que afronta a inafastabilidade da apreciação jurisdicional.
O discurso de que o “é preferível o Estado se locupletar indevidamentedo que o particular”, que fundamentava a súmula 71 do Supremo Tribunal Federal, não prospera mais. A supremacia existente é do interesse público, e não do interesse do Estado. Certamente não é de interesse público que particulares sejam lesados em prol do enriquecimento indevido do Estado.
Diante de todo o exposto, percebemos que não atribuir legitimidade ativa ao contribuinte de fato para buscar ressarcimento do indébito nos tributos indiretos é injusto tanto sob um viés social, vez que gera injustiças e pode prejudicar até mesmo a própria Fazenda Pública, quanto jurídico, pois pode gerar enriquecimento indevido do Estado e viola o direito fundamental de acesso à justiça.
Se fosse atribuída legitimidade ativa tanto ao contribuinte de fato quanto ao contribuinte de direito, não haveria essa lamentável situação na qual o Estado se enriquece indevidamente por não haver legitimados, uma vez que, como vimos, há casos em que o contribuinte de direito não consegue comprovar não ter feito a transferência do encargo financeiro a terceiro.
4.6 O Estado sendo prejudicado
Conforme já expomos, o fato de o Superior Tribunal de Justiça conferir legitimidade para pleitear repetição do indébito tributário em tributos indiretos apenas ao contribuinte de direito também traz prejuízos ao Estado. Elucidaremos agora tais possibilidades.
Atualmente, a legitimidade do contribuinte de direito para pleitear o indébito em tributos indiretos é condicionada à comprovação de não ter repassado o encargo financeiro a terceiro, ou, caso tenha repassado, à expressa autorização deste para receber o indébito.
Ocorre que demonstramos em nosso estudo a falta de confiabilidade nos meios de comprovação para verificação se realmente houve ou não a transferência do encargo. Assim, pode ser que na perícia contábil, ou em qualquer outro meio de prova utilizado para verificação da transferência, conste que houve repasse do encargo, quando na realidade não ocorreu este repasse. Nesse caso, o contribuinte fica prejudicado por não ser possível pleitear o indébito, que de fato ocorreu.
Porém, é possível haver erros para os dois lados, tanto do contribuinte quanto do Estado. Existe também a possibilidade de a perícia, ou qualquer outro meio de prova utilizado, chegar à equivocada conclusão que o contribuinte de direito não realizou a transferência do encargo financeiro, quando na verdade tal transferência ocorreu. Assim, o contribuinte de má-fé consegue pleitear a restituição do indébito, e o Estado acaba realizando uma restituição indevida. Nesse caso, o Estado sai prejudicado por restituir ao contribuinte um valor indevido.
Já vimos também, no item 4.4 de nosso estudo, que o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca da legitimidade para pleitear repetição do indébito em tributos indiretos contribui para que o Judiciário fique cada vez mais abarrotado. Isto aumenta ainda mais a morosidade no julgamento dos processos. Partindo do pressuposto que é dever e interesse do Estado prestar seus serviços com eficiência à sociedade, ao haver aumento da morosidade dos processos em consequência do abarrotamento do judiciário, o Estado também sai prejudicado nesse sentido, com a interpretação do egrégio tribunal acerca da supracitada legitimidade.
4.7 Afronta ao postulado da proporcionalidade/razoabilidade
A rigor, a proporcionalidade não é um princípio, mas sim um postulado normativo. Postulados são delimitados por metanormas, que caracterizam-se por serem normas que tratam de aplicações de outras normas, de modo a estabelecer formas de raciocínio e de argumentação entre elas, desenvolvendo o raciocínio dos princípios e regras.
Nessa toada, Marcelo Novelino[38]nos ensina que o postulado opera “como uma estrutura complexa de raciocínio jurídico, cujo sentido é delimitado por metanormas (normas que tratam da aplicação de outras normas) mais concretas e específicas”.
Importante salientarmos que doutrina e jurisprudência majoritárias coadunam no sentido de entenderem por sinônimos os termos “proporcionalidade” e “razoabilidade”. Este também é nosso entendimento. Assim, sempre que nos referirmos à proporcionalidade estaremos nos referindo também à razoabilidade, e vice-versa.
A proporcionalidade não deve ser ponderada em face a outros princípios, pois deve ser utilizada quando há um ato estatal, como por exemplo uma lei ou uma interpretação do Judiciário em determinado caso concreto. Esse ato será proporcional se passar pelo crivo das três metanormas delimitadoras da proporcionalidade. Afinal, conforme aduz Marcelo Novelino[39] “o postulado da proporcionalidade tem o seu conteúdo delimitado por três metanormas (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) que possuem a estrutura de regra”. Destarte, faz-se necessário analisarmos as três metanormas delimitadoras da proporcionalidade/razoabilidade.
A primeira metanorma delimitadora da proporcionalidade/razoabilidade é a adequação, que envolve uma relação entre meio e fim. Nela, o meio utilizado deve ser apto a fomentar os objetivos almejados. Não se exige que o meio efetivamente alcance o objetivo visado. O que se exige é que o meio seja ao menos apto para fomentar os objetivos almejados. Nesse sentido, Marcelo Novelino[40] aponta que:
“A adequação entre meios e fins impõe que as medidas adotadas, para serem consideradas proporcionais, sejam aptas a fomentar os objetivos almejados. Esses objetivos podem ser de natureza constitucional ou legal, conforme o direito fundamental restringido possua uma cláusula de reserva legal expressa ou implícita. Quando direito fundamental possui cláusula de reserva legal expressa (simples ou qualificada), para que a medida restritiva seja considerada adequada, basta que não afronte a Constituição”.
A partir da conceituação da metanorma da adequação, constatamos que a súmula 546 do Supremo Tribunal Federal, bem como a interpretação feita pelo Superior Tribunal de Justiça acerca do artigo 166 do Código Tributário Nacional não passam pelo crivo da adequação. Isto porque, conforme já analisamos intensamente em nosso estudo, além de o contribuinte de fato não possuir legitimidade ativa para pleitear repetição do indébito em tributos indiretos, ao contribuinte de direito são impostos requisitos excessivamente onerosos, por vezes até impossíveis de serem atendidos, para obter a referida legitimidade para pleitear o ressarcimento.
Tudo isto caracteriza nítida afronta à Constituição, pois viola, entre outros, o direito fundamental de inafastabilidade da apreciação jurisdicional, expresso no artigo 5º, XXXV, da Constituição.
Além disso, o meio utilizado (interpretação do artigo 166 do Código Tributário Nacional feita pelo Superior Tribunal de Justiça) não é apto a fomentar os objetivos almejados, tanto pelo artigo 166 do Código Tributário Nacional (almeja a repetição do indébito em tributos indiretos) quanto pelo artigo 5º, XXXV, da Constituição (almeja garantir o direito fundamental de acesso à justiça).
Assim, percebemos que a interpretação da egrégia corte em torno do artigo 166 do Código Tributário Nacional não atende à adequação. Este motivo, por si só, já seria suficiente para a referida interpretação não passar pelo crivo da proporcionalidade/razoabilidade, pois para atendê-lo é necessário cumprir cumulativamente as três metanormas que compõe o postulado da proporcionalidade/razoabilidade.
A segunda metanorma delimitadora da proporcionalidade/razoabilidade é a necessidade (também chamada de exigibilidade ou menor ingerência possível ou proibição de retrocesso). A medida, além de adequada, deve ser necessária. A ideia de necessidade apregoa que havendo dois ou mais meios similarmente eficazes deve-se optar pelo menos oneroso possível. Nesse sentido, Marcelo Novelino[41]aduz que:
“A necessidade (ou exigibilidade) impõe que, dentre os meios aproximadamente adequados para fomentar determinado fim constitucional, seja escolhido o menos invasivo possível. Uma medida deve ser considerada desproporcional quando for constatada, de forma inequívoca, a existência de outra similarmente eficaz e menos onerosa ou lesiva”.
Isso posto, percebemos que a interpretação da egrégia corte também não atende à metanorma da necessidade, pois, conforme tentamos demonstrar durante nosso estudo, há um meio menos oneroso e similarmente eficaz para garantir a repetição do indébito em tributos indiretos, qual seja, interpretar o artigo 166 do Código Tributário Nacional de modo a atribuir legitimidade ativa também ao contribuinte de fato.
Por fim, a terceira metanorma delimitadora do postulado da proporcionalidade/razoabilidade é a proporcionalidade em sentido estrito, que corresponde à ponderação. O grau de satisfação do princípio constitucional fomentado deve ser suficientemente alto para justificar a restrição do princípio constitucional atingido. Ao chegar nesta última etapa, após constatar a adequação e necessidade, é feita a ponderação dos princípios envolvidos. Nesse sentido, Marcelo Novelino[42] afirma:
“Quando se torna necessário analisar o grau de intensidade da intervenção em um direito fundamental e o de realização de outro fim, abandona-se o âmbito da otimização em relação às possibilidades fáticas e se penetra no âmbito da realização mais amplapossível em relação às possibilidades jurídicas. A proporcionalidade em sentido estrito corresponde à “lei material do sopesamento”, segundo a qual “quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro”(ALEXY, 2008b)”.
Conforme vimos, como regra geral a egrégia corte não atribui legitimidade ativa ao contribuinte de fato para pleitear repetição do indébito em tributos indiretos, argumentando que o contribuinte de fato não integra a relação jurídica tributária, pois a lei não o caracteriza como sujeito passivo da obrigação tributária.
Ao fazer isso, há fomentação do princípio da legalidade, porém, em razão dos argumentos que já expomos, restringe-se princípios como a moralidade administrativa, a inafastabilidade da apreciação jurisdicional, a economia processual, a isonomia, a vedação ao enriquecimento indevido, e, em última análise, até mesmo a dignidade da pessoa humana. Em nosso sentir, o princípio da legalidade é menos forte que os princípios restringidos. Logo, promove-se um princípio de graumais fraco para restringir princípios de grau mais forte.
Assim, em nosso entendimento, a interpretação feita pelo Superior Tribunal de Justiça, do artigo 166 do Código Tributário Nacional,não atende a nenhuma metanorma aqui citada, tampouco ao postulado da proporcionalidade/razoabilidade. Não é razoável que se interprete o referido enunciado normativo de modo a atribuir apenas ao contribuinte de direito legitimidade ativa para pleitear repetição do indébito em tributos indiretos, violando, entre outros, o princípio de inafastabilidade da tutela jurisdicional e a vedação ao enriquecimento indevido. Para aumentar ainda mais a injustiça, conforme vimos, é imposto ao contribuinte de fato excessiva onerosidade para comprovar não ter realizado a transferência do encargo financeiro.
Em nosso modesto entendimento, em razão de todo o exposto em nossa pesquisa, a medida mais razoável e em consonância com a Constituição Federal seria interpretar o artigo 166 do Código Tributário Nacional de modo a atribuir legitimidade ativa também ao contribuinte de fato, sem impor excessiva onerosidade em se provar a transferência do encargo financeiro do tributo indireto.
Tal medida atenderia à metanorma da adequação, uma vez que seria apta a fomentar o objetivo almejado pelo artigo 166, qual seja, a repetição do indébito em tributos indiretos. Atenderia também à metanorma da necessidade, pois seria um meio menos oneroso e mais eficaz à concretização da repetição do indébito. Por fim, atenderia também à metanorma da proporcionalidade em sentido estrito, porque restringiria o princípio da estrita legalidade tributária para fomentar princípios constitucionais mais fortes, como a inafastabilidade da tutela jurisdicional, a vedação ao enriquecimento ilícito, a eficiência, a isonomia, a economia processual e a moralidade administrativa. Assim, resta evidente, em nosso sentir, que seria muito mais razoável atribuir legitimidade ativa também ao contribuinte de fato, atendendo de forma mais satisfatória ao que preconiza o postulado da proporcionalidade/razoabilidade e ao que preconiza a Constituição Federal.
CONCLUSÃO
Prevalece na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça o lamentável entendimento que apenas o contribuinte de direito possui legitimidade ativa para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos, desde que comprove não ter repassado o encargo financeiro do tributo, ou, no caso de tê-lo repassado a terceiro, estar por este expressamente autorizado a receber o ressarcimento. Esta é a interpretação do artigo 166 do Código Tributário Nacional feita pela egrégia corte.
Única exceção a esta regra é o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) cobrado na prestação de serviços públicos, por concessionárias, no fornecimento de energia elétrica e de água tratada..
Conforme demonstramos, a interpretação do Superior Tribunal de Justiça acerca do artigo 166 do Código Tributário Nacional viola inúmeros princípios constitucionais, além de consolidar, na prática, a quase impossibilidade de repetição do indébito em tributos indiretos, uma vez que cria um sujeito passivo “castrado”.
Tal interpretação feita pelos ministros viola a constituição, gera prejuízos ao contribuinte e, por vezes, até ao próprio Estado, indo de encontro ao que preceitua o Estado Democrático de Direito.
O presente estudo teve por escopo contribuir para o âmbito acadêmico a respeito da problemática envolvendo a restituição do indébito em tributos indiretos, demonstrando nosso entendimento e expondo argumentos favoráveis e contrários à nossa visão, em meio à doutrina e jurisprudência. Demonstramos que o assunto é acentuadamente polêmico, revelando os posicionamentos doutrinários a favor e contra a jurisprudência.
Pesquisamos a história do tema nos tribunais superiores, e constatamos que houve oscilação nos julgados. Num primeiro momento, com a súmula 71, o Superior Tribunal Federal vedava por completo a restituição do indébito em tributos indiretos, sob a égide de ser preferível o locupletamento indevido do Estado que do particular.
Em 1969, com a súmula 546, o Supremo condicionou a restituição do indébito em tributos indiretos à comprovação de o contribuinte de direito não ter repassado ao contribuinte de fato o encargo econômico do tributo.
Até o ano de 2010, a jurisprudência sobre o tema oscilou bastante, de modo a admitir tanto a legitimidade do contribuinte de direito quanto do contribuinte de fato. Porém, o Recurso Especial 903394, de Alagoas, julgado em sede de recurso repetitivo, deu novos rumos à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, de modo a vedar legitimidade ativa ao contribuinte de fato. Contudo, mesmo após este julgado, encontramos decisões isoladas da egrégia corte atribuindo legitimidade ativa ao contribuinte de fato, o que corrobora a imensa polêmica que cerca o tema.
Para chegarmos a um posicionamento acerca da necessidade de superação do atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, analisamos os principais institutos correlatos e demonstramos que o entendimento da egrégia corte fere inúmeros princípios constitucionais, como a inafastabilidade da apreciação jurisdicional, vedação do enriquecimento indevido, moralidade administrativa, eficiência, duração razoável do processo e a isonomia, cometendo enormes injustiças.
Entendemos que a justiça é um valor essencial ao Direito, e, sem este valor, o Direito perde seu sentido. O Direito injusto não deve ser considerado um Direito válido. Assim, se a norma não estiver de acordo com a justiça, devemos mudar sua interpretação, ou até mesmo o próprio enunciado normativo.
Não existe fundamentação que justifique a sobreposição dos interesses do Estado aos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Nem mesmo o princípio da supremacia do interesse público justifica tal sobreposição. Lembremos que, como o próprio princípio nos diz, a supremacia é do interesse público, e não do interesse do Estado.
Analisamos o artigo 166 do Código Tributário Nacional e entendemos que sua redação é ambígua, comportando a interpretação no sentido de atribuir legitimidade ativa também ao contribuinte de fato. Aliás, concluímos que esta interpretação é a que mais se adequa ao postulado da proporcionalidade/razoabilidade, bem como à Constituição Federal.
Expomos a necessidade de uma ótica pós-positivista para interpretar o referido dispositivo, demonstrando a importância dos princípios, que devem prevalecer sobre as regras em caso de conflito.
Diante do entendimento exageradamente positivista do Superior Tribunal de Justiça, percebemos que em determinadas situações acaba por não haver a restituição do indébito em tributos indiretos.
Para criticar esta interpretação excessivamente legalista, utilizamos a metáfora do caixa eletrônico criada por Zenon Bankowski, retratando a necessidade de flexibilização do direito mediante determinados enunciados normativos para haver justiça. Essa metáfora exemplifica as conseqüências de comportamentos excessivamente legalistas, que trazem reflexos negativos à sociedade.
Nesse contexto, trouxemos à tona os conceitos de institucionalismo e de correção moral, segundo a teoria da dupla natureza do direito, de Robert Alexy. Tais conceitos ajudam a evidenciar a necessidade de reconstruções normativas, em especial no tocante à (re)interpretação do artigo 166 do Código Tributário Nacional, consubstanciando valores socialmente legitimados e promovendo justiça na aplicação do Direito.
Constatamos também a possibilidade de, mediante os excessivos empecilhos impostos, não haver legitimados para pleitear o indébito, culminando no enriquecimento indevido do Estado e oneração excessiva ao contribuinte, bem como violação ao direito fundamental de inafastabilidade da tutela jurisdicional, configurando também verdadeira afronta a preceitos constitucionais, conforme expomos reiteradamente.
Constatamos que se fosse atribuída legitimidade ativa também ao contribuinte de fato, não haveria a lamentável possibilidade de, em determinadas situações, não haver legitimados para pleitear a repetição do indébito, gerando enriquecimento indevido do Estado. Percebemos ainda que, em determinadas situações, até mesmo a Fazenda Pública, em última análise, pode ser prejudicada.
Assim, concluímos que o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema objeto de nossa pesquisa não promove justiça, não atende ao postulado da proporcionalidade/razoabilidade e fere diversos princípios constitucionais, tais como a inafastabilidade da apreciação jurisdicional, vedação ao enriquecimento ilícito, isonomia, economia processual, eficiência e moralidade administrativa.
Nosso estudo conclui que, em consonância com a razoabilidade, com a Constituição Federal, com o institucionalismo e com o senso de justiça, o ideal seria haver uma superação de precedente, pois a melhor interpretação ao artigo 166 do Código Tributário Nacional seria aquela no sentido de atribuir legitimidade ativa também ao contribuinte de fato para pleitear restituição do indébito em tributos indiretos. Em nosso sentir, esta seria uma interpretação conforme a Constituição, promovendo os ideais de justiça e moral, além de consolidar os valores que deve possuir um Estado Democrático de Direito.
Pós graduado em Direito Público pela Faculdade Damásio conclusão prevista para junho de 2017. Graduado em Direito pelo Instituto Vianna Junior 2014
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