Resumo: É incontestável o papel importante desempenhando pela prova pericial dentro das lides ambientais. A perícia ambiental é elemento essencial de convicção do magistrado, não somente para se determinar a existência e a extensão do dano ambiental, mas também na fixação da indenização nas desapropriações ambientais. Entretanto, para que a prova pericial possa desempenhar essa sua função em sua plenitude, necessário se faz a discussão, à luz da doutrina e da jurisprudência, de alguns aspectos controversos relativos a sua aplicação.
Sumário: Introdução. 1. A prova pericial nas ações civis públicas ambientais: a inversão do ônus da prova. 1.1. As normas que regem a prova pericial na ação civil pública ambiental. 1.2. A aplicação do art. 6º, VIII, do CONDECON: a hipossuficiência do ministério público. 2. As ações de desapropriação ambiental: a prova pericial como elemento de convicção preponderante na fixação das indenizações. 2.1. A indústria da indenização nas desapropriações ambientais. 2.2. Das dificuldades enfrentadas pelos experts e algumas soluções.
Introdução
A Constituição Federal de 1988 elevou o direito a um meio ambiente equilibrado e a uma sadia qualidade de vida ao status de direito fundamental. Para proteger esse direito, nosso ordenamento jurídico pátrio adotou, em matéria ambiental, a responsabilidade civil objetiva, onde o explorador da atividade potencialmente poluidora responderá pelos danos causados independentemente de culpa. Dessa forma, o dano é, juntamente com o nexo causal, uma condição necessária à reparação. Imprescindível, então, a sua constatação e dimensionamento.
O dano ambiental, que consiste na lesão aos bens ambientais e ao equilíbrio ecológico, pela atividade direta ou indireta do homem, acarretando prejuízos para a coletividade, possui certas peculiaridades que o tornam de difícil constatação e avaliação. Uma atividade pode ser produzida hoje e os seus efeitos só aparecerão após vários anos ou gerações.
Além disso, devido à interdependência dos elementos ambientais, uma agressão a um bem ambiental determinado poderá gerar desdobramentos, atingindo diversos outros bens ambientais.
Percebemos, dessa forma, a dificuldade da prova do dano ambiental e da sua extensão, se mostrando insuficientes as informações e documentos. Questões referentes à contaminação do solo, níveis de poluição de ar e água, efeitos de produtos químicos sobre a saúde humana não podem ser decididas por meras impressões ou experiência pessoal. É completamente fora da realidade exigir que o Magistrado tenha domínio e conhecimentos técnicos sobre todas essas áreas.
A prova técnica torna-se, então, a grande estrela nas ações civis públicas ambientais. Ela será o meio de prova por excelência nessas ações e, na maioria das vezes, deverá ser realizada por vários especialistas de diversas áreas técnicas, dependendo do grau de complexidade do dano.
A perícia ambiental tem como objeto de estudo o meio ambiente, nos seus aspectos abióticos, bióticos e socioeconômicos, abrangendo a natureza e as atividades humanas[1].
Assim como todas as outras modalidades de prova pericial, a prova pericial ambiental será regida pelo Código de Processo Civil (art. 420 e ss.). O perito, como auxiliar da justiça, é pessoa de confiança do juiz. Ao magistrado é dada, então, a possibilidade de nomear um perito que montará a sua equipe de especialistas, ou, baseando-se no art. 431-B do CPC, nomear ele mesmo mais de um perito, de áreas de conhecimento diversas[2].
O importante, aqui, é que cada espécie de dano seja analisada pelo profissional adequado, tecnicamente habilitado, aproximando o máximo possível o laudo pericial da verdade dos fatos.
Essa atuação multidisciplinar e os métodos que deverão ser empregados, como utilização de laboratórios, equipamentos, testes, monitoramento, tornam a perícia ambiental altamente custosa, o que acaba gerando conflitos com relação a quem deve arcar com os custos da realização de tal prova e em qual momento do processo.
Além disso, a prova pericial se tornou extremamente importante nas lides relativas à desapropriação ambiental, pois será através dela que os valores da indenização serão fixados pelo magistrado. Ela irá dimensionar a área, descrever suas características e lhe atribuir um valor.
Assim como nas ações civis públicas ambientais, a prova pericial realizada nas ações de desapropriação ambiental tem sido objeto de grande polêmica.
1. A prova pericial nas ações civis públicas ambientais: inversão do ônus da prova
1.1 – As normas que regem a prova pericial nas ações civis públicas ambientais
Como dito anteriormente, a prova pericial ambiental, assim como todas as outras provas periciais, é regida pelo Código de Processo Civil. Nele encontra-se regra que determina que o pagamento dos honorários periciais cabe à parte que a requerer.
Por outro lado, as ações civis públicas ambientais são regidas pelas normas contidas na Lei n° 7.347/85. O art. 18 dessa Lei determina que não haverá adiantamento de honorários periciais nas ações civis públicas. Os honorários serão pagos no cumprimento da sentença, quer voluntariamente, logo após o trânsito em julgado, quer compulsoriamente, pela execução.
O objetivo dessa lei, ao determinar que o autor não deve adiantar as despesas, foi o melhor possível, porém, distante da realidade concreta. O legislador tentou solucionar questões orçamentárias dos órgãos públicos que não dispunham de verbas específicas para o pagamento de perícias. Entretanto, a perícia ambiental necessita de equipamentos, laboratórios, testes e outros elementos que são custosos. Sem falar no caráter multidisciplinar da perícia ambiental, que obriga o perito nomeado a formar uma equipe, que também deverá ser remunerada.
Dessa forma, essa disposição prevista na Lei n° 7347/85 é distante da realidade prática, pois não há qualquer possibilidade de que se obrigue um perito a trabalhar para só receber ao cabo do processo, e que, além disso, arque com todos esses gastos com seus próprios meios. Tal impasse acaba impedindo a tramitação da ação e o seu desfecho.
1.2 – A aplicação do art. 6º, VIII do CODECON: a hipossuficiência do Ministério Público
Essa questão se tornou tão dramática que o Ministério Público tem tentado transferir o ônus da remuneração do perito para o réu, pois seria perfeitamente cabível a aplicação do disposto no art. 6º, inciso VIII do CODECON.u, alegando a possibilidade de aplicaçcom seus prl, assim como todas as outras provas periciais,
Na fundamentação do pedido de inversão do ônus da prova nas ações civis públicas ambientais, o Ministério Público tem alegado que em sede de tais ações, aplica-se o disposto no inciso VIII, art. 6º do CODECON, por analogia, pois o direito aqui defendido é caracterizado como direito difuso. Por tal razão, o julgador deve deferir a inversão do ônus da prova, já que presentes estão a hipossuficiência, pois o Ministério Público não tem condições financeiras de arcar com as despesas processuais, e a verossimilhança das alegações.
Encontraremos na doutrina também aqueles que defendem tal posicionamento, como Marcelo Abelha: “no caso da ação de responsabilidade civil ambiental, o que se tem é a técnica da inversão do ônus da prova no processo civil por aplicação subsidiária do art. 6º, VIII, do CDC c/c o art. 117 do mesmo diploma”[3].
Não podemos negar que, dentre as ações que possibilitam a tutela ambiental, a ação civil pública é a principal, devido ao seu largo âmbito de atuação, e que ela é a ação por excelência para defender direitos difusos.
Entretanto, ao se analisar a fundamentação do Ministério Público para aplicação da inversão do ônus da prova em sede de tais ações, percebe-se um grande equívoco: inversão do ônus da prova e inversão do custo da prova não possuem o mesmo significado.
O Desembargador Wander Marotta[4], do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, reconhece a possibilidade da inversão do ônus da prova em sede de ação civil pública por dano ambiental, para assegurar a efetividade da proteção ao meio ambiente, mas ele esclarece que a inversão do ônus da prova não se opera para o fim pretendido pelo Ministério Público, e que a alegação de falta de recursos financeiros para custear a prova técnica requerida não é suficiente para o seu deferimento.
Ele explica que a inversão do ônus da prova não tem o condão de impor a obrigação de que a outra parte arque com as despesas da prova pericial requerida pelo autor, não podendo se confundir ônus da prova com ônus financeiro, além do que não houve derrogação do art. 19 do CPC pelo art. 6º, VIII, do CODECON.
A inversão do ônus da prova implica em transferir para a outra parte a obrigação de provar que os fatos alegados na inicial não são verdadeiros, nada tendo a ver com o custeio das despesas processuais.
Caberia, então, ao réu utilizar-se de todos os meios de prova admitidas em direito, inclusive prova documental e testemunhal, para provar a inveracidade das alegações. Ele seria obrigado a arcar com os custos da prova técnica apenas se fosse de sua vontade a sua realização. Dessa forma, ele sofreria as conseqüências advindas da sua não produção[5].
Além disso, a hipossuficiência a que faz alusão o inciso VII, do art. 6º do CODECON, segundo Luiz Antônio Rizzato Nunes[6], seria técnica e de informação, e não econômica, como pretende o Ministério Público:
“…hipossuficiência, para fins da possibilidade de inversão do ônus da prova, tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício etc.
Por isso, o reconhecimento da hipossuficiência do consumidor para fins de inversão do ônus da prova não pode ser visto como forma de proteção ao mais ‘pobre’. Ou, em outras palavras, não é por ser ‘pobre’ que deve ser beneficiado com a inversão do ônus da prova, até porque a questão da produção da prova é processual, e a condição econômica do consumidor diz respeito ao direito material.”
Para Paulo de Bessa Antunes[7], a inversão do ônus da prova, que tem apenas como objetivo a transferência para o réu do encargo financeiro da prova pericial requerida pelo Ministério Público, representaria uma carga demasiadamente pesada para aquele:
“Se por um lado as vítimas devem ser atendidas, por outro, não se pode esquecer que as atividades desenvolvidas têm uma finalidade social relevante que é exercida em benefício do proprietário do empreendimento e da própria sociedade, bem como de terceiros que, direta ou indiretamente, com ela se relacionem. A imposição do sacrifício, em casos nos quais não se possa provar a relação de causa e efeito entre o dano de uma determinada atividade, por mera presunção ao empreendedor é uma medida objetivamente injusta, pois acarreta a imposição de gravame sobre apenas um dos beneficiados da cadeia produtiva, remanescendo os demais sem qualquer ônus. A solução justa, parece-me a divisão da carga com o estado que, no caso, representa os interesses de todos os demais beneficiários da cadeia produtiva. Assim, não se estabeleceria uma violência processual e, muito menos, não se colocaria nas costas de uma parte a carga de um benefício que é coletivo”.
Essa tem sido a solução adotada por alguns magistrados[8], na tentativa de se restabelecer a operosidade do sistema processual, e de dar efetividade à tutela do bem ambiental. Tem entendido os doutos magistrados que, se os réus dispõem-se a arcar com a metade do adiantamento das despesas periciais, nada mais razoável do que se exigir que o Ministério Público adote a mesma postura, viabilizando, dessa forma, o prosseguimento da ação[9].
2. As ações de desapropriação ambiental: a prova pericial como elemento de convicção preponderante na fixação das indenizações
2.1 – A indústria da indenização nas desapropriações ambientais
Nas ações de desapropriação ambiental, a perícia também vai desempenhar um papel importante, pois ela irá auxiliar o magistrado na fixação dos valores da indenização devida pelo Estado aos particulares.
Apresenta-se, então, de suma importância a utilização pelos experts de critérios e procedimentos, para que haja uma correta fixação de tais valores, de forma que se aproxime o máximo possível da realidade.
Entretanto, nota-se que uma grande polêmica tem envolvido justamente a escolha de tais critérios e procedimentos adotados pelos experts, pois os valores sugeridos para indenização têm sido extremamente elevados, levando a uma oneração excessiva do Estado.
As ações de indenização por desapropriações na Serra do Mar, no estado de São Paulo, envolvendo imóveis localizados em unidades de conservação, envolveram valores extremamente elevados, totalmente desvinculados da realidade do mercado.
A situação chegou a ser tão crítica que, em outubro de 1999, a Assembléia Legislativa de São Paulo instalou uma CPI para investigar a existência de uma indústria de indenização ambiental, pois, se houvesse condenação do Estado em todas as ações dessa natureza propostas, os gastos seriam em torno de R$ 50 bilhões.
Essa CPI, que foi concluída em maio de 2000, chegou à conclusão que, em alguns casos, havia falta de comprovação adequada dos títulos de propriedade, ou existência de mais de uma ação indenizatória de uma mesma área, ou ainda, processos que pediam indenização sobre terras devolutas ou de propriedade do Estado. A CPI também concluiu que, as avaliações teriam sido baseadas em valores muito superiores aos de mercado, contribuindo para a elevação do valor da indenização.
O maior valor estipulado para uma indenização por desapropriação ambiental foi o relativo a uma área de 13,3 mil hectares de uma floresta na região montanhosa de Ubatuba, litoral norte de São Paulo. O valor do precatório era de R$ 1 bilhão de Reais, sendo que o governo do Estado já havia pago a quantia de R$ 38,6 milhões pela desapropriação indireta. A Procuradoria do Estado recorreu, então, ao STJ, para suspender o pagamento do precatório, pois existia uma declaração do perito que atuou no processo de que houve uma sobreposição de uma área de 2,5 mil hectares no cálculo da área a ser indenizada.
Essas situações não se concentram apenas no estado de São Paulo, difundindo-se por todo o País. O pagamento de vários outros precatórios também foram suspensos em estados como Santa Catarina e Paraná, dentre outros, devido aos valores exorbitantes que foram fixados.
Dessa forma, o STJ já se posicionou a respeito de alguns critérios utilizados pelos peritos no cálculo da indenização, de forma a delinear contornos mais adequados. Pode-se citar como exemplo, a não indenização de cobertura florestal em área de preservação permanente, pois ela é insuscetível de exploração econômica.
2.2 – Das dificuldades enfrentadas pelos experts e algumas soluções
Na avaliação do imóvel, seria interessante que os peritos utilizassem alguns parâmetros para se determinar o valor real de mercado do mesmo. Tratando-se de imóvel rural, o parâmetro utilizado poderia ser o valor atribuído para efeitos de ITR. Nos casos de imóvel urbano, o valor venal atribuído pelo Município, como utilizado para cálculo do IPTU. É verdade que muitas vezes esses valores não representam a realidade do mercado, e são considerados muito baixos. Mas o interesse da aplicação desses parâmetros é simplesmente dar ao perito uma noção de valores.
Ele também poderia adotar o valor declarado pelo proprietário na sua declaração de imposto de renda, valor esse que também apresenta o mesmo problema dos anteriores: é um valor defasado.
Com certeza, a melhor opção seria que o perito realizasse uma pesquisa, fazendo o levantamento do valor de mercado de áreas análogas situadas na região, atestado por corretores de imóveis ou outros meios confiáveis[10].
Outra dificuldade enfrentada pelos experts diz respeito à comprovação da regularidade dominial. Muitos pedidos de indenização têm sido formulados sobre terras devolutas ou de propriedade do Estado, além da sobreposição de áreas. Os trabalhos periciais acabam não dando a devida atenção a essas questões, dando-se ênfase apenas à avaliação. Ocorre, então, uma multiplicação de ações e procedimentos intentados pelo Estado com o intuito de se desconstituir as decisões indenizatórias. Além disso, títulos de registro imobiliário podem conter falhas e vícios.
Esse trabalho de verificação não incumbe ao perito. Caberia, então, ao juízo, proceder à verificação da regularidade dominial para somente depois passar à avaliação da propriedade, como simples medida de economia processual.
De acordo com Jacques Lamac[11], Procurador do Estado de São Paulo, o art. 12 da Lei nº 8.629/93 e seu § 2º, trouxe regramentos importantes para escorar a luta contra a supervalorização das indenizações:
“Art. 12 Considera-se justa a indenização que reflita o preço atual de mercado do imóvel em sua totalidade, aí incluídas as terras e acessões naturais, matas e florestas e as benfeitorias indenizáveis, observados os seguintes aspectos:
(…)
§ 2º Integram o preço da terra as florestas naturais, matas nativas, e qualquer outro tipo de vegetação natural, não podendo o preço apurado superar, em qualquer hipótese, o preço de mercado do imóvel.”
Aplicando-se tal dispositivo chegaríamos ao fim da avaliação em separado da terra nua e da cobertura vegetal, critério que também acabou ensejando a exponencial valorização das áreas. Fica claro, de acordo com o referido § 2º, que o real e efetivo preço de mercado não poderá ser ultrapassado[12].
Além disso, o entendimento adotado pelo STJ é de que para que haja indenização da cobertura vegetal em separado, faz-se necessária a comprovação da exploração econômica da área[13].
Esse dispositivo vêm corroborar o que foi dito anteriormente, pondo fim à utilização do método de avaliação indireto, determinando que, somente a comparação com imóveis análogos, situados na mesma região, é que propiciará a fixação do valor real da área.
Com base nesse diploma legal em vigor, com certeza o valor das indenizações seria mais próximo da realidade, acabando com a oneração excessiva do Estado, fazendo com que a prova pericial volte a desempenhar o seu papel essencial na fixação das indenizações e que o conceito de justa indenização presente na Constituição Federal seja aplicado.
Mestre em Direito Ambiental pela Université Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. Gerente da Área Ambiental do escritório Décio Freire & Associados. Professora de Direito Ambiental Empresarial, Auditoria e Perícia Ambiental, e Direito Ambiental
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