Sumário: 1) O bem jurídico e a sociedade. 2) O bem jurídico e as limitações ao poder punitivo estatal. 3) O bem jurídico e a Teoria Geral do Crime. 4) O bem jurídico e a Constituição – Limites à Política Criminal. 5) Considerações finais. 6) Referências bibliográficas.
O presente estudo é a continuação de uma reflexão feita anteriormente sobre as “múltiplas funções do bem jurídico-penal”, mas que agora segue trabalhando com autorizada doutrina não só jurídico-penal, mas também criminológica, com especial destaque para o significativo questionamento apresentado pela criminologia interacionista que surge com o advento do labeling approach pelos idos de 1960.
Sempre é oportuno destacar que o conceito de bem jurídico é de suma importância a qualquer indagação jurídico-penal pois serve de substrato material e critério diretivo a todo processo de criminalização. A sua importância é tamanha que a precisa compreensão das características e peculiaridades de qualquer espécie de crime não pode prescindir de duas perguntas principais: Qual bem jurídico o legislador busca proteger? Quais as formas de lesão que o tipo penal procura evitar?
Atento a estas questões mister dedicar o presente estudo para buscar uma precisa definição de bem jurídico e o seu esquadrinhamento de suas múltiplas funções dentro da sistemática jurídico-penal, pois como bem assevera Maurach:
“El bien jurídico es el núcleo material de toda a norma de conducta y de todo tipo construido sobre ella. La interpretación de la ley penal – y com ella su conocimiento -, sin la directriz que le da la noción del bien jurídico, es simplesmente imposible.”[1]
1) O bem jurídico e a sociedade
Há muito se tem asseverado não existir sociedade sem o direito e o direito sem a sociedade – afirmação contida no brocardo latino “ubi societas, ibi ius” – uma vez que a sociedade não representa mera justaposição de indivíduos em determinadas coordenadas espaço-temporais, mas pressupõe a formação de um grupo de indivíduos convivendo e interagindo entre si pelas mais variadas formas de relações.
A formação do corpo social busca alcançar a coexistência harmônica de todos os seus integrantes, coexistência que só será conseguida por meio da coordenação e adaptação das atividades e interesses individuais entre si. Esta coordenação é obtida pelo ordenamento jurídico, pela ética e pela moral que são conjuntos de regras de conduta, mas ao contrário das normas éticas e morais, as normas jurídicas ocupam destacada posição haja vista serem inter-subjetivas e não terem sua atuação circunscrita ao âmbito intra-subjetivo, como ocorre com aquelas.
Responsável por traçar os limites das atividades de cada indivíduo, o ordenamento jurídico impõe e garante a observância de seus preceitos por meio de sanções cujos efeitos ultrapassam a esfera da consciência individual acentuando sua força coercitiva. Não é exagero concluir que o Direito cria e regula a própria sociedade, considerada como um todo, ou em suas partes ou elementos que a constituem – tanto pessoas físicas como pessoas jurídicas – sob o prisma jurídico. Assim, sob certo ponto de vista, o homem, como sujeito jurídico, também não deixa de ser uma criação do Direito, que ora lhe atribui faculdades, ora as reduz, ora delas o priva.
Sendo essa a causa do Direito pode se notar a existência de tantos ordenamentos quantas forem as formas de organização social, nada legitimando a afirmação de que o Estado é a sua única manifestação. Pode-se dizer que ele é a manifestação mais recente já que foi antecedido por outras formas de organização social como as famílias, as tribos e os clãs. A própria Igreja é considerada como organismo autônomo, com ordenamento jurídico próprio (jus canonicum) e é tratada como qualquer outro Estado nas suas relações internacionais.
As sociedades, companhias, sindicatos e corporações também se regem pelos seus próprios ordenamentos que estabelecem direitos e deveres para seus membros, e assumem, por esta razão, caráter eminentemente jurídico.
Impende gizar a natureza do Direito como produto criado pelos agrupamentos sociais de acordo com a intensidade e direção das necessidades e interesses prevalentes em certo contexto histórico, em repulsa as concepções ideológicas do Direito como algo natural e pré-existente a toda a sociedade, fruto de noções universalmente válidas.[2] Assim, desponta claro e evidente que não pode haver independência ou dissociação entre o estudo do Direito e o estudo do ambiente cultural em que ele se desenvolve.[3]
Desse modo, deve-se também frisar que todas as ciências sociais – a exemplo do Direito, da História e da Criminologia – são ideologicamente comprometidas, já que o homem é ao mesmo tempo sujeito cognoscível e objeto cognoscente. A pretensa “neutralidade científica” só é possível em ciências em que o objeto de estudo não é socialmente construído, ou seja, quando sua existência independe da ação humana, como ocorre com as ciências naturais.
Porém, sob o ponto de vista dogmático, ou em função exclusiva das normas jurídicas, pode se afirmar que só há o Direito que promana do Estado uma vez que este, nos tempos atuais, é o poder absoluto dotado de soberania – nos limites de seu território -, sendo por meio do Direito que ele se constitui e representa a sua eficiência e força. Mas a realidade mostra que o Estado convive com outros ordenamentos ainda que enfeixe em suas mãos o ordenamento jurídico.
Sobre o conjunto de relações sociais destinadas, em primeiro plano, à produção de condições materiais de existência do homem – variáveis em razão do contexto histórico em que se desenvolvem e influenciando fortemente este último – é criada a superestrutura jurídica, fruto da sedimentação e adensamento da ideologia dominante em uma sociedade estratificada de classes uma vez que a atividade humana não só é responsável pela produção social, mas também pela produção de ideias que desenvolvem e aperfeiçoam o modo de produção social.[4]
Buscando tornar possível a coexistência pacífica dos indivíduos em sociedade, o Estado irá defender e preservar os valores e interesses sociais especialmente relevantes segundo parâmetros escolhidos pelos interesses sociais hegemônicos, proteção que é efetivada por meio de todo um arsenal de normas jurídicas a serem executadas pelos órgãos oficiais. Todos os atos praticados pelo homem que contrariem as normas jurídicas serão denominados ilícitos jurídicos, são os atos que atacam ou colocam em perigo os interesses e valores protegidos pelo Direito.
O objeto da proteção jurídica, representado por um interesse ou valor importante para a sociedade ou para o indivíduo recebe a denominação de “bem jurídico”, elemento central para a própria conformação e caracterização do Direito.
Roxin – já nos primeiros parágrafos de sua obra – destaca a importância do conceito material de crime para a legitimação do poder punitivo estatal e para definição de todo o conteúdo da ação punível.[5]
Em sentido amplo, bem é tudo que possui utilidade e necessidade, enfim todas as coisas materiais ou imateriais que possuem valor e que em razão deste valor são procuradas, disputadas, defendidas e, por força do inevitável choque de preferências e interesses individuais, estão sujeitas a certas formas de ataque ou lesão das quais precisam ser defendidas.[6]
Todavia importa salientar que não são todos os valores e interesses sociais e individuais que são considerados bens jurídicos, mas apenas aqueles valores e interesses cuja “relevância social”[7] torne indispensável o seu reconhecimento e a sua proteção pelo Direito.
Desta forma o bem jurídico representa um interesse de vital apreciação comunitária ou individual que – por sua acentuada importância para a sociedade – recebe a tutela do ordenamento jurídico em razão das exigências da consciência geral ou das classes dominantes em determinado grupo social.[8]
Como se pronuncia a doutrina, entende-se por bem jurídico todo o estado social representativo de um valor ético-social especialmente significativo que o Direito busca proteger de lesões.[9]
Enquanto que coisa é o gênero que representa tudo que pode existir tanto no mundo exterior quanto no mundo interior do homem, o bem é a espécie, representando apenas as coisas que são ou podem ser objeto de um direito de modo que o ar atmosférico e as estrelas do céu não podem ser bens jurídicos enquanto que a honra, a vida e a propriedade podem. O termo “jurídico” surge a partir do momento que o bem não apenas é reconhecido mas também tutelado pelo Direito.
É oportuno esclarecer que os bens jurídicos podem representar valores sociais permanentes que perduram pelo tempo ou ainda valores de conteúdo variável em razão das mutáveis concepções de vida.[10] A esse propósito temos a liberdade e a honra, respectivamente.
Mas ainda que o ordenamento jurídico seja definido como o conjunto total de normas emanadas do Estado, ele irá se dividir em vários ramos de acordo com a natureza das relações sociais que serão tratadas e com o objeto de sua proteção e de estudo, não obstante estes ramos manterem relações de interdependência visando a formação harmônica, integrada e não contraditória, de todo o ordenamento jurídico.
2) O bem jurídico e as limitações ao poder punitivo estatal
Dentre os vários ramos do Direito – cuja separação atende principalmente a fins didáticos – temos o Direito Penal que é responsável por defender os valores mais caros e essenciais para o corpo social ao regular a atuação estatal no combate do ilícito penal que representa a forma mais grave de ilícito jurídico.[11]
Assevera-se que o Direito Penal é o conjunto de regras jurídicas (jus poenali) que disciplinam o poder punitivo do Estado (jus puniendi), em razão dos fatos possuidores de natureza criminal e, consequentemente, as medidas que são aplicáveis a quem os pratica[12]. Outros, afirmam que o Direito Penal é compreendido pelo conjunto de normas e disposições jurídicas reguladoras do exercício do poder estatal sancionador e preventivo, estabelecendo o conceito de crime como pressuposto da ação estatal, assim como da responsabilidade do sujeito ativo e, associando com a infração da norma uma pena finalista ou uma medida asseguradora[13].
As definições do que seja o Direito Penal – segundo a dogmática jurídico-penal – são várias apesar de manter a mesma essência, valendo destacar que ele pode ser observado através de três prismas diferentes, mas relacionados entre si.[14]
Sob o prisma objetivo, o Direito Penal seria definido como o conjunto das normas jurídicas pelas quais o Estado exerce a sua função de prevenir e reprimir a prática de fatos puníveis por meio da imposição de sanções aos seus autores[15] (Direito Penal Positivo ou também Direito Penal Objetivo).
Sob o prisma subjetivo o Direito Penal pode ser entendido como a faculdade que possui o Estado de considerar certas condutas como criminosas – mediante prévia tipificação legal – e de determinar, aplicar e executar as consequências jurídicas correspondentes (Direito Penal Subjetivo)[16].
Já sob o prisma científico, o Direito Penal pode ser definido como o conjunto de conhecimentos que orbitam em torno do Direito Penal – objetivo e subjetivo – com vistas a possibilitar sua melhor compreensão e aplicação (Direito Penal Ciência, Ciência do Direito Penal ou Dogmática Jurídico-Penal).
Estão intimamente entrelaçados os conceitos de Direito Penal como ciência fundante e determinadora do exercício do poder punitivo do Estado e a definição do Direito Penal como conjunto de normas que regulam o poder punitivo, e ainda, de Direito Penal como faculdade exclusiva do Estado de exercer o poder punitivo em nome da sociedade.
O Direito Penal possui fundamental importância, uma vez que é responsável pela proteção dos interesses e valores mais importantes e essenciais para a sociedade. Esta proteção será realizada por meio da proibição de condutas humanas lesivas (real ou potencialmente) aos deveres ético-sociais elementares consubstanciados na figura dos bens jurídico-penais.
Referida proibição possuirá atrelada ao seu descumprimento reprovável a imposição de consequências jurídico-penais específicas que se consubstanciam na aplicação de penas e medidas de segurança, conforme sistemática adotada pela maioria dos códigos[17]. Neste sentido o conceito de bem jurídico representa um dos principais elementos que constituem o arsenal teórico da dogmática jurídico-penal, desempenhando importantes funções (re)veladas no discurso oficial.
Pois bem, uma destas funções, por si só suficientes para marcar o papel de relevância do bem jurídico dentro do Direito Penal, diz respeito ao próprio fim perseguido pelo Direito Penal.
Não obstante o Direito Penal – na visão da doutrina crítica – representar o mais rigoroso sistema de controle e dominação social cuja criação está vinculada a certas finalidades funcionais de manutenção/reprodução de um sistema social global em cumprimento de uma nítida missão política (ou como querem alguns maniqueístas simplesmente dizer “para combater o crime”), em razão de um dos princípios basilares do Direito Penal – o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos – este ramo do Direito nasce voltado para a promoção da defesa da sociedade (ou pelo menos parte dela[18]) pela proteção dos bens jurídicos que lhe são mais essenciais como a vida humana, a integridade corporal, a honra, a saúde pública, o patrimônio, etc.[19]
Vale ressaltar que a coordenação dos comportamentos humanos – muitas vezes antagônicos e colidentes – requer a utilização de critérios de decisão uma vez que a resolução de conflitos supõe a eleição de interesses predominantes ou a conciliação de interesses avaliados pela sua relacionação com os interesses superiores[20], neste ponto avulta a importância dos bens jurídicos, interesses e valores sociais importantes modernamente erigidos a esta categoria (bem jurídico) em consonância com os Direitos Humanos ou Direitos Fundamentais, pelo menos em tese.
Contudo, a legitimação da intervenção penal no processo de disciplinamento dos comportamentos humanos em determinado contexto social depende da danosidade real ou potencial destas condutas. Isto ocorre por força do princípio da lesividade que impede a criminalização de condutas puramente internas que sejam apenas imorais ou diferentes, daí surgindo os crimes de dano e crime de perigo (concreto e abstrato).
As consequências da adoção deste princípio pelo Direito Penal estão representadas na proibição da incriminação de atitudes, idéias, sentimentos internos que não se manifestem em uma conduta externa, ainda que, em última análise se identifique com um comportamento omissivo, ou até simples “imoralidades” como quer Roxin. Vale observar que o próprio tipo objetivo dos crimes dolosos necessita de um verbo a representar uma ação humana (matar, ocultar, induzir, etc.) como núcleo material, caso contrário, estaria criminalizando um estado de pensamento, uma atitude interna que, isoladamente, não representaria lesão à bem jurídico algum.[21]
Também são proibidas as incriminações de condutas que se restringem ao âmbito do autor como os atos preparatórios previstos no art. 14, inc. II, do Código Penal Brasileiro e, também, a situação do crime impossível ou tentativa inidônea, descrita no art. 17 do mesmo codex, porque estão enquadradas no rol das condutas que não representam lesão ou perigo de lesão de bem jurídico, ou ainda, em havendo a lesão de bem jurídico, que esta não ultrapasse a esfera do autor, como ocorre com o suicídio[22].
Na mesma linha de raciocínio são proibidas pelo princípio da lesividade as incriminações de simples estados pessoais ou condições existenciais, como desejam os sectários do Direito Penal do Autor que toma como base qualidades pessoais do agente para a imposição de pena[23]. Hodiernamente, com o advento do Estado de Direito e em nome da certeza e da segurança jurídicas, nas legislações penais prepondera o Direito Penal do Ato como norte diretivo, utilizando a intensidade e a direção das ações humanas – efetivamente praticadas, não apenas idealizadas – para fins de imposição de penas.
Por fim são proibidas as incriminações de condutas desviantes que não danifiquem qualquer bem jurídico, o que abre espaço para o direito à diferença. Desta forma, certos comportamentos, ainda que estejam fora dos padrões escolhidos pela sociedade e recebam reprovação intensiva, não poderão ser criminalizados se não representarem lesão ou perigo de lesão a qualquer bem jurídico alheio, o que destaca ainda mais a importância do conceito de bem jurídico.
Assim, o bem jurídico exerce a sua função de impedir que o legislador tipifique como crimes comportamentos humanos que não representem lesão ou perigo de lesão, constituindo verdadeiro limite material ao direito estatal de punir.[24] Em se tratando do bem jurídico como critério legitimador e limitador da intervenção penal, precisas são as palavras de Nilo Batista ao observar que: “O bem jurídico põe-se como sinal da lesividade (exterioridade e alteridade) do crime que o nega, ‘revelando’ e demarcando a ofensa.”[25]
Mas para nortear a criação e aplicação das normas jurídico-penais não basta apenas o escopo de proteger determinados interesses ou valores socialmente relevantes.
Segundo o princípio da subsidiariedade ou intervenção mínima, o Direito Penal só atua na proteção dos bens jurídicos considerados mais importantes e essenciais à sociedade[26], e ainda, apenas quando se verificarem contra estes a ocorrência – ou perigo de ocorrência – das formas mais graves de lesão e não contra todas as formas de agressão possíveis, conforme estabelece outro princípio de grande importância para o Direito Penal – o princípio da fragmentariedade – de modo que nem todos os bens jurídicos são protegidos pelo Direito Penal e nem todas as ações lesivas são por ele envolvidas.[27]
O caráter fragmentário do Direito Penal opõe-se a visão da “onipresença e onipotência da tutela penal”, tão bem: a) aceita pelas legislações medievais; b) aplicada com vigor no sistema penal do absolutismo; c) defendida por certos movimentos da política criminal contemporânea (“lei e ordem”).
Definitivamente, o Direito Penal não é o detentor do monopólio no tratamento de todos os ilícitos existentes e não deve tratar dos mesmos de maneira minuciosa. É necessário que o Direito Penal deixe espaço para os instrumentos jurídicos não-penais agirem quando estes forem por si só suficientes, caso contrário a atuação excessiva do Direito Penal retirar-lhe-á a legitimação da necessidade social.[28]
Em razão do Direito Penal ser responsável pela aplicação das formas mais severas de sanção existentes dentro de todo o ordenamento jurídico ele exige que sua estrutura seja rigorosamente delimitada e definida, e ainda, que sua aplicação seja realizada apenas nas hipóteses em que outras formas de proteção de determinado bem jurídico, verbi gratia, os outros ramos do direito, tiverem falhado em sua função protetiva.
Vale reforçar que em razão do Direito Penal representar desde os primórdios da civilização a forma mais radical e contundente de intervenção na esfera individual, ele deve ser utilizado somente em razão última – ultima ratio – evitando a inflação penal para que o sistema penal não tenha apenas uma atuação simbólica, como estipula o princípio da intervenção mínima ou subsidiariedade que, aliás, como visto, se relaciona intimamente com o princípio da fragmentariedade.
A utilização dos instrumentos do Direito Penal onde se mostra suficiente outra forma de atuação jurídica de natureza mais branda e amena é insensata e contraproducente porque se opõe aos fins do direito.[29] A necessidade de defesa em relação a ofensa precisa estar dotada de racionabilidade e para tanto não basta que a defesa seja capaz de prevenir ou fazer cessar a ação agressiva, mas é imperioso que a forma de defesa possa ser considerada racionalmente necessária para atingir tal desiderato.
Dessume-se, portanto, que o Direito Penal não é um exaustivo sistema de proteção dos bens jurídicos uma vez que não abarcará todos eles e muito menos alcançará todas as formas possíveis de ações que representem uma lesão ou perigo de lesão aos bens jurídicos defendidos. A função maior de proteção dos bens jurídicos, atribuída à lei penal, não é absoluta.
Observadas e atendidas as ressalvas impostas pelos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade, impende esclarecer que o bem jurídico desempenha outro papel de grande relevo dentro do Direito Penal que é o de figurar como delimitador do conteúdo material do injusto penal.
Mas nem sempre este foi o entendimento adotado pela dogmática jurídico-penal vez que inicialmente o crime era concebido como um pecado, uma afronta aos poderes divinos, uma desobediência que era punida com a expulsão do infrator como sacrifício para salvaguardar a coletividade e satisfazer aos deuses. Posteriormente o Iluminismo – com sua busca pela razão – formula uma noção de crime desvinculada dos preceitos religiosos/míticos, entendendo-o como lesão ou perigo de lesão aos direitos subjetivos. Ressalte-se que esta concepção é fruto da aplicação da teoria contratualista no direito penal em decorrência da ideologia liberal-individualista.[30] Em seguida é desenvolvido o conceito de crime como lesão ou perigo de lesão de interesses vitais[31], terminando por desenvolver a concepção material de crime como injustificada lesão ou perigo de lesão de um bem jurídico que atualmente é um verdadeiro axioma.[32]
Deste modo, evidencia-se com translúcida clareza que o modo pelo qual o Direito Penal irá atuar está intimamente relacionado com o bem jurídico já que dependerá – de maneira incontornável – da seleção de quais interesses e valores serão objetos de proteção, e ainda, estará inequivocamente limitado pela escolha de quais formas de agressão que – mediante prévio e taxativo processo de tipificação legal – serão envolvidas pelo Direito Penal.
A propósito, urge explicitar que a parte especial dos Códigos Penais contemporâneos – em que, via de regra, estão elencadas as condutas consideradas criminosas – trata dos crimes em espécie de acordo com certa classificação escolhida pelo legislador quando utiliza o bem jurídico como critério de seleção, disposição e agrupamento de crimes.
Observando a parte especial do Código Penal Brasileiro atualmente em vigor (Decreto-lei n.º 2.848, de 07 de dezembro de 1940) que se inicia no art. 121 e finda no art. 359-h, pode-se visualizar a previsão de 11 (onze) títulos em que estão agregadas e divididas as figuras delitivas de acordo com o bem jurídico protegido, exempli gratia, “dos crimes contra a pessoa”, “dos crimes contra a família”, “dos crimes contra o patrimônio”, “dos crimes contra a paz pública”, “dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos”, “dos crimes contra a administração pública”, etc.
Não se olvide que o bem jurídico, considerado um dos pólos do Direito Penal ao lado da norma, também possui um papel de incomensurável importância no momento da interpretação teleológica de qualquer preceito e de todo o ordenamento jurídico já que os seus fins inventivos e justificadores estão presentes no momento em que certos interesses são elevados a categoria de bem jurídico.[33]
Todavia, é oportuno esclarecer que o conceito de bem jurídico não se confunde com o conceito de objeto material do crime uma vez que este representa o objeto sobre o qual recai diretamente a ação lesiva praticada pelo agente (sujeito ativo) enquanto que o bem jurídico é o interesse ou valor cuja proteção é almejada pela norma penal.
Ad exemplum, observe-se que no crime de furto o bem jurídico protegido sempre será o patrimônio enquanto que o objeto material pode ser um livro, um relógio, um automóvel, uma valiosa obra de arte, etc.
Estes motivos já seriam suficientes para demonstrar de maneira clara e precisa a penetrante propagação de efeitos do conceito de bem jurídico na forma como é constituído, estruturado e aplicado o poder punitivo do Estado, mas a importância do bem jurídico é ainda maior.
O bem jurídico também exerce sua influência sobre a pena que é a forma mais incisiva de intervenção estatal na esfera individual uma vez que em razão do princípio da proporcionalidade das penas deve existir um justo equilíbrio entre a intensidade da ofensa praticada contra certo bem jurídico protegido pelo direito penal e a respectiva conseqüência jurídica a ser suportada pelo agente praticante do injusto penal reprovável, ou seja, é imprescindível analisar a natureza e importância do bem jurídico atacado, bem como a intensidade da ofensa ou lesão suportada (ou tentativa de lesão), para só então se tornar possível a análise da existência ou não de mencionada proporcionalidade. Deve também ficar registrada a existência do entendimento de que o bem jurídico desempenharia ao mesmo tempo uma função individualizadora ao servir de parâmetro para a fixação concreta da pena atendida a proporcionalidade supramencionada.[34]
3) O bem jurídico e a Teoria Geral do crime
Não bastasse a relação existente entre o bem jurídico e os princípios básicos do Direito Penal – fortes baluartes e, repita-se, precisos limitadores do poder punitivo estatal -, o bem jurídico ainda irá desempenhar respeitável papel dentro da teoria geral do crime.
A teoria geral do crime, teoria jurídica do crime ou teoria do fato punível constitui o cerne do Direito Penal, “o segmento principal da dogmática penal”[35] porque destina-se explicar as características gerais e essenciais da conduta punível e de seu autor, assinalando os caracteres constitutivos gerais e comuns a todos os fatos puníveis[36], descobrir a “essência do conceito geral do delito”[37], tratando da chamada parte geral[38].
Todavia, o trabalho do espírito para empreender a apreciação ou análise das características gerais do fato punível não se esgota no estudo da parte geral dos códigos, mas é um trabalho que exige por parte da doutrina a investigação da parte especial dos códigos, porquanto a parte geral de vários códigos é por demais sucinta, limitada mais à questão da aplicação da lei penal do que da própria categorização e construção de um conceito de crime.[39]
A teoria geral do crime ou teoria do fato punível, conforme modernas orientações, considerada uma “disciplina lógica, intrasistemática, conceitual e de oculta vinculação com a realidade[40]” busca responder uma série de perguntas que orbitam ao redor do seu objeto de estudo: o fato punível.
Ocorre, no entanto, que muito pouco seria conseguido se houvesse a pretensão de responder tudo com uma só pergunta. Deste modo, as perguntas são consequências de uma análise que ocorre a passos sucessivos e ordenados, não se contentando apenas com a verificação ou não da ocorrência de um fato punível.[41]
A definição do fato punível pode variar dependendo do enfoque a ser utilizado pelo sujeito cognoscente, contudo, sem resultar em uma modificação do objeto cognoscível. Sob o aspecto formal – cujo ponto de referência repousa sobre o direito positivado – o fato punível passa a representar todo comportamento humano que contrarie a lei penal[42]; ou seja, “todo o crime resulta de definição legal”[43], repelindo-se pela experiência e pela lógica a ideia proposta por Garófalo da existência de um suposto “crime natural” como criminalidade substancial identificável em todos os tempos e lugares. A definição puramente formal de fato punível que o restringe a análise de sua contrariedade com o ordenamento jurídico-penal não é falsa, porém, se traduz em uma “fórmula vazia”.[44]
Já sob o aspecto material, buscando-se a essência do crime em sua realidade fenomênica, a sua substância, o fato punível seria toda lesão ou perigo de lesão às condições existenciais do grupo social manifestadas em realidades aptas a realizar a satisfação de necessidade humanas – individuais ou coletivas – que são objeto da proteção jurídica, em especial da tutela mais severa de todo o direito: a tutela penal.[45]
Assim o conteúdo necessário de todo fato punível não está representado por uma agressão a qualquer interesse humano, mas apenas a violação de determinado bem jurídico protegido pelo Direito Penal, pois “é sempre um bem jurídico o objeto da especial proteção que a lei confere com a cominação de pena, e a violação ou exposição a perigo deste bem é que constitui comportamento criminoso”.[46] Porém, em última análise a lesão de um bem jurídico-penal não esgota o conceito de fato punível em sua totalidade porque representa apenas um resultado essencial do crime.[47]
Tudo isto é certo, mas interessa, para objetivos práticos, saber quais características deve possuir um comportamento humano positivo (ação) ou negativo (omissão) para que só então seja considerado um fato punível.
Buscando sanar as deficiências apresentadas pelos outros conceitos de fato punível surge o conceito analítico, dogmático ou “operacional”[48]que, não obstante encontrar-se no plano teórico-abstrato, possui incontestável eficácia prática de esclarecimento e elucidação ao definir, modernamente, o fato punível como toda conduta – ação ou omissão – típica, antijurídica e culpável[49].
Elaborado pela dogmática germânica nos fins do século XIX e início do século XX mediante esforço de investigação lógica e sistemática das leis penais surge, inicialmente, o conceito clássico que adota a sistemática do esquema “objetivo-subjetivo” cunhado por von Liszt e Beling, segundo o qual, crime seria o movimento corporal (ação) que produziria uma modificação no mundo exterior.[50]
Neste conceito não eram reconhecidas quaisquer valorações porquanto, seguindo o conceito causal-naturalista de ação[51], considerava-se a tipicidade sob aspecto objetivo-descritivo seguido de uma antijuridicidade objetivo-normativa, completada pela culpabilidade subjetivo-descritiva.[52]
Na seqüência – por força da influência da filosofia neokantiana – o conceito clássico adquire novas feições buscando sanar algumas insuficiências e repelir as fortes críticas que lhe eram dirigidas sem, contudo, abandonar suas características fundamentais como o conceito causal de ação.[53] Passando a ser chamado de conceito neoclássico de crime, verifica-se agora a consideração de elementos axiológicos e normativos por influência da chamada teoria teleológica do crime.[54]
A ação perde seus aspectos puramente biológicos e passa a ser definida de maneira mais geral e abrangente como conduta volitiva, voluntária ou humana.[55] Na tipicidade ocorre a inclusão de elementos normativos e a consideração de elementos subjetivos no tipo, conquistas teóricas advindas dos estudos desenvolvidos por Mezger a partir das enunciações deste, de Mayer e de Hegler. Ainda possuindo nítida natureza objetiva, a tipicidade deixa de ser apenas a descrição avalorativa originalmente proposta por Beling e passa a ser resultado de juízos de valor.
Já o conteúdo da antijuridicidade não se restringe ao seu aspecto formal (contrariedade do fato com o ordenamento jurídico), mas requer um conteúdo material expresso na lesividade social da conduta. No que tange a culpabilidade, a teoria teleológica afasta a concepção puramente psicológica recepcionando definitivamente os elementos normativos concebidos especialmente por Frank. A culpabilidade agora não representa apenas o liame psicológico existente entre o autor e o fato punível, mas perfaz a reprovabilidade do autor pela formação de vontade contrária ao dever.
Todavia a última grande modificação no conceito analítico do fato punível ocorre com o advento da doutrina finalista de Welzel, que adequou o conceito jurídico de ação ao seu conceito ôntico-ontológico, identificando-o com o “exercício de atividade final”[56], como “fator de direção que sobredetermina o sucesso causal exterior e o converte, deste modo, na ação orientada para o objetivo”[57]. Contudo é necessário observar que a terminologia utilizada por Welzel em 1935 (Finalität), se interpretada literalmente, dá lugar a equívocos – especialmente nos crimes culposos como admite referido autor – uma vez que a concepção adequada de ação finalista não se resume apenas a finalidade, mas encerra as ideias de direção e orientação, de encaminhamento sob o ponto de vista “biocibernético antecipado”. Assim, o mais correto seria denominar a “teoria final da ação” de “teoria da ação cibernética”, porém a primeira expressão consagrou-se mundialmente e, observada a ressalva acima, atende aos objetivos propostos desde que as principais atenções estejam centradas nas “descrições materiais de direção e do encaminhamento dos sucessos da ação”, como propõe Welzel com especial argúcia.[58]
Desta forma não só a vontade, mas também o conteúdo da vontade passou a ser considerado no próprio conceito de conduta. Se conduta implica vontade, a vontade sempre leva (e se dirige) a uma finalidade porque não existe vontade de nada ou vontade para nada.
Destarte, as consequentes modificações estruturais ocorridas na teoria do fato punível foram enormes, especialmente no que diz respeito ao tipo e a culpabilidade. O dolo e a culpa migram para o tipo formando a figura do “tipo subjetivo”, já a culpabilidade passa a ter sua estrutura composta apenas por elementos normativos destinados a fundamentação do juízo de reprovabilidade, deixando o objeto de reprovabilidade localizado no injusto penal que a partir de então adquire as características de injusto pessoal.[59]
Sobreleva notar-se que o tipo, descrição legal da conduta proibida – figura puramente conceitual – não é em si mesmo antijurídico, mas antijurídica é apenas a sua realização não justificada.[60] Já a antijuridicidade é a contrariedade da realização de um tipo proibitivo (norma incriminadora) com o ordenamento jurídico consubstanciada pela ausência de situação justificante.
Assim, segundo o sistema tripartido[61] – que é dominante na dogmática moderna -, o fato punível seria todo o comportamento humano (ação ou omissão voluntária) típico (previsto em lei como crime), antijurídico (contrário ao ordenamento jurídico, lesivo socialmente) e culpável (reprovável ao seu autor).
Não se olvide o sistema bipartido de fato punível composto pelo tipo de injusto (tipicidade e antijuridicidade, como o objeto de valoração) e pela culpabilidade (juízo de valoração de cunho subjetivo pessoal concreto), adotado por juristas como Arthur Kaufmann, Otto, Schünemann e Engisch.[62]
É oportuno lembrar que estratificado é o conceito de fato punível e não o fato punível, uma vez que não ocorre a soma de elementos, mas sim a consideração de características localizadas em planos conceituais distintos.
Observada esta perfunctória exposição sobre o conceito analítico do fato punível, evidencia-se o importante papel desempenhado pelo bem jurídico nas categorias conceituais cuja presença cumulativa transmuta uma conduta em fato punível. Considerações acerca do bem jurídico estão presentes de maneira nítida e incontornável na tipicidade e na antijuridicidade
Deixando de lado a conduta que é o substrato do fato punível, o bem jurídico permeia o tipo que é a descrição legal da conduta (elemento logicamente necessário, núcleo do ilícito penal[63]) influenciando a tipicidade, que é atributo da conduta (considerada a mais importante categoria para fins jurídico-penais[64]), uma vez que o tipo é o arquétipo conceitual onde está contida a descrição da lesão – ou perigo de lesão – de bens jurídicos.[65]
No que diz respeito a antijuridicidade, impende destacar que em algumas situações justificantes – como a legítima defesa, o estado de necessidade e o consentimento do ofendido – a sua ocorrência está vinculada a verificação de relações (diretas ou indiretas) com o bem jurídico, de modo que estas situações possam ter o efeito de excluir a ilicitude indiciada pela tipicidade.[66]
Primeiramente analisemos a legítima defesa, situação justificante fundada nos princípios da proteção individual e da afirmação do direito cuja definição legal[67] prevê a utilização moderada dos meios necessários para repelir agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Pois bem, não basta a existência de um comportamento humano que se direcione para uma lesão ou um perigo de lesão a determinado bem jurídico (agressão), e ainda, que este comportamento não seja autorizado pelo Direito e esteja se desenvolvendo ou em vias de efetivação para que o autor da reação defensiva a ação inicial de cunho agressivo esteja contemplado pela situação justificante da legítima defesa.
Para tanto, há de se analisar a natureza do bem jurídico protegido uma vez que existe uma cisão doutrinária no que tange a aceitação da legítima defesa de bens jurídicos de natureza coletiva.
Expressiva corrente doutrinária partilha da idéia de que a ação protetiva da legítima defesa é cabível – desde que preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos da justificante – independente da natureza do bem jurídico envolvido.[68] Aliás, entende-se até que entre os bens jurídicos suscetíveis de defesa estariam incluídos todos os bens jurídicos reconhecidos pelo Direito e não apenas os reconhecidos pelo Direito Penal.[69]
Entretanto, o entendimento oposto[70] vislumbra a legítima defesa apenas para bens jurídicos de natureza individual (vida, liberdade, patrimônio, etc.) ainda que – em um posicionamento mais estendido -, o titular deste bem seja uma pessoa jurídica ou o Estado. Repousam os argumentos desta corrente doutrinária principalmente sobre as afirmações de que a natureza e o fundamento da legítima defesa circunscrevem-se a esfera jurídica individual e que a agressão de bens suprapessoais, coletivos ou comunitários (paz social, ordem pública, etc.) não é suscetível de ser repelida em legítima defesa, uma vez que o zelo por estes interesses sociais seria atribuição policial, não se autorizando a atuação de particulares neste sentido.
Atendidos todos os requisitos de ordem objetiva, observe-se, além disso, que sob o aspecto subjetivo um dos requisitos diz respeito à atuação do agente com vontade de defesa de bem jurídico para que só então reste configurada a excludente.
Já no que tange ao estado de necessidade, outra espécie de situação justificante – prevista no artigo 24 do Código Penal Brasileiro[71] -, vale observar que o bem jurídico também possui especial relevo uma vez que o estado de necessidade consiste em uma autorizada ação adequada de proteção necessária do bem jurídico em situação de inevitável perigo não provocado pelo agente.[72]
Uma exigência a ser atendida para a conformação da justificante em comento diz respeito a efetiva necessidade da ação de proteção uma vez que “de outro modo não se podia evitar” que o bem jurídico – alheio ou próprio – sofresse a lesão oriunda da situação de perigo.
Buscando fundamentação jurídica surgem algumas teorias como a “teoria do fim” que entende serem as ações protetivas de bens jurídicos verdadeiros “meios adequados para fins reconhecidos pelo Estado”. Já a “teoria da ponderação de bens” justifica ações que resguardem bens jurídicos de valor superior em detrimento de bens jurídicos de valor inferior. Contudo, de acordo com a “teoria da ponderação de interesses” que representa a posição contemporânea, a própria juridicidade da ação de proteção está vinculada a consideração de todas as causas e condições concretas relacionadas aos bens jurídicos em conflito, à natureza do perigo, etc. [73]
Assim, há de se ter em conta a natureza dos bens jurídicos envolvidos na situação de perigo já que no estado de necessidade é imperioso sacrificar um bem para preservar outro, caso contrário ambos os bens jurídicos irão perecer. Não se olvide que de acordo com seu respectivo substrato, os bens jurídicos podem representar interesses de natureza variada como uma relação vital (o matrimônio), um estado real (a tranqüilidade), um objeto psicofísico (a vida), um objeto espiritual-ideal (a honra) ou ainda uma relação jurídica (a propriedade).[74]
Todavia, ainda que a variegada natureza dos bens jurídicos permita sua avaliação e a conseqüente escolha do bem jurídico a ser sacrificado, insta esclarecer que em se tratando de situações envolvendo a “vida contra a vida” não há que se cogitar quaisquer diferenças de valor (verbi gratia, paciente com 30% de chances de sobrevivência versus paciente com 80% de chances de sobrevivência, ou, jovem versus idoso) ou de quantidade (exempli gratia, um veículo somente com o condutor versus um ônibus escolar com 40 crianças).[75]
O bem jurídico também desempenhará papel decisivo na esfera subjetiva do estado de necessidade uma vez que um dos seus requisitos é a ação do agente com vontade de salvar o bem jurídico, seja próprio ou alheio.
Outra justificante que depende sobremaneira da análise do bem jurídico envolvido é o consentimento do ofendido; única situação que não está elencada no art. 23, mas é implícita e decorre de interpretação lógico-sistemática de todo ordenamento jurídico, considerada como uma causa supralegal de justificação.[76]
Consistindo na renúncia de bens jurídicos disponíveis tutelados por normas penais, o consentimento do ofendido pode ter como efeitos tanto a exclusão da tipicidade da conduta (se o consentimento for real e se o tipo protege a vontade do ofendido) como da antijuridicidade da conduta típica (se o consentimento for presumido e, se além da vontade o tipo protege interesses públicos).[77]
Porém, é ponto pacífico e sedimentado em toda doutrina jurídico-penal que a caracterização de determinada situação dentro do conceito de consentimento do ofendido exige que o bem jurídico envolvido seja plenamente disponível por parte de seu titular, verbi gratia, o patrimônio, liberdade sexual, honra, caso contrário o consentimento – tanto real como presumido – será absolutamente ineficaz. Assim, mais uma vez há de ser analisada com maior detença a natureza do bem jurídico envolvido para que só então possam ter eficácia as especificações que giram em torno do próprio consentimento, como a sua anterioridade, a capacidade do ofendido para consentir e o conhecimento concreto daquilo que foi consentido tanto por parte do titular do bem quanto por parte do agente que, espera-se, esteja atuando dentro dos limites do consentido.
Essas são apenas algumas das questões que o estudo do bem jurídico suscita dentro do conceito analítico de crime, lembrando que a proposta central deste trabalho é o estudo bem jurídico, porquanto a análise apurada de cada uma destas questões demandaria espaço apropriado. Mas o que se destaca com inegável clareza é a elementar importância do bem jurídico.
4) O bem jurídico e a Constituição – Limites e críticas à Política Criminal.
Não bastassem as considerações enumeradas nos parágrafos anteriores acerca das relações existentes entre o bem jurídico e os princípios basilares do Direito Penal, além do importante papel desenvolvido pelo bem jurídico dentro da teoria do fato punível, há de ser notada a íntima conexão verificada entre o bem jurídico-penal e a Constituição.[78]
Uma vez que o texto constitucional pátrio perfilha valores fundamentais como a liberdade e a dignidade humana cujos desdobramentos se irradiam sobre todo ordenamento jurídico – cumprindo o papel de um norte diretivo -, há uma conseqüente delimitação e orientação da ação do legislador de modo a promover uma política criminal que não transforme o direito em mera força, mas obrigue os cidadãos em sua consciência, respeitadas as bases de um sistema democrático de direito.
Nesta esteira de pensamento resta cristalino que o conceito de bem jurídico-penal nasce limitado ao conteúdo material das normas constitucionais que lhe são hierarquicamente superiores e com as quais ele jamais pode confrontar. Assim esquadrinhado, desponta também evidente que o conceito de bem jurídico-penal além de ser protegido pelo Direito Penal, precisa ser protegido do Direito Penal, restringido assim o poder punitivo a uma esfera precisamente limitada pelo Texto Maior, verdadeiro e legítimo indicador das linhas substanciais prioritárias já acolhidas na realidade social como um valor.[79]
O conjunto de valores encontrados no altiplano constitucional serve de baliza segura não só para o momento embriogênico das normas penais – onde há a seleção e definição dos bens jurídicos a serem defendidos – mas também para o momento de interpretação e de aplicação destas mesmas normas.
A propósito, norma alguma pode ignorar o conteúdo axiológico constitucional, devendo sempre ser examinada a luz deste conteúdo que confere o elemento normativo-material de todo ordenamento jurídico com vistas à realização da justiça material pela adoção de uma legalidade democrática.
Contudo mister destacar-se que não basta apenas a previsão constitucional de certo valor social para que seja autorizada de pronto a criação de instrumento sancionatório criminal para a respectiva proteção.
Deve também ser notado o escalonamento existente entre estes valores que observa o contexto histórico ao qual encontra-se inserido, reforçando ainda mais o caráter fragmentário e proporcional da tutela penal que busca sua legitimação não apenas em aspectos formais, mas também na valoração ético-social.
Como toda norma é fruto de uma decisão política, surge a Política Criminal como conjunto de critérios de orientação para o legislador, diferenciando-se do Direito Penal e da Criminologia, apesar da íntima relação.
Apesar da Constituição ocupar o posto mais alto de todo o ordenamento jurídico e prever vários direitos e garantias individuais contra o poder punitivo do Estado – o que para muitos é um exagero benevolente – na prática não são poucos os exemplos das mais variadas “conscientes, sistemáticas e funcionais” violações perpetradas pelo próprio Estado.
As cifras negras da criminalidade e o predomínio radicalmente desproporcional das classes economicamente inferiores nas instâncias formais de controle social[80] – em especial o sistema penitenciário – revelam que a mais importante regra constitucional não é respeitada e daí exsurge imperiosa indagação: “todos são iguais perante a lei”?
Infelizmente não! Não pode se ignorar que: a) a igualdade formal prevista no texto constitucional contrapõe-se com uma desigualdade material cruel e seletiva dentro de uma sociedade estratificada de classes (tanto capitalista como comunista) que remontam as origens da pena privativa de liberdade, como bem destacam MELOSSI/PAVARINI[81] em consagrada obra; b) os crimes estão presentes em todas as classes, dividindo-se em crimes convencionais (classes pobres) e crimes não convencionais (“crime do colarinho branco”), mas a reação a estas categorias de crimes é diferenciada tanto na criação (quantidade de pena, benefícios legais) quanto na aplicação da norma (prisões cautelares, devido processo legal, ampla defesa, execução penal).
A correlação original “crime-pecado” é substituída pela visão lombrosiana de “crime-doença” e depois pela correlação “crime-pobreza” que hoje é presente no elemento “crime-consumo” de modo que os consumidores falhos ou débeis não são funcionais ao sistema e precisam ser auxiliados pelo sistema penal em sua dificuldade de “inserção”[82]. Neste diapasão, a insegurança social generalizada dá azo a uma política de segurança que realimenta o sistema penal em um esforço contraproducente que segundo o discurso oficial busca a “contenção da violência” mas na prática reforça e reproduz de forma legítima as desigualdades sociais em um claro programa visceral de reprodução e manutenção ideológica.
5) Considerações finais
Não obstante a atividade de seleção dos bens jurídicos esteja presa às necessidades sociais “reais” de determinado contexto histórico, busca-se imunidade contra possíveis manipulações ideológicas ao exigir-se a observância e o respeito os limites constitucionais, sem ignorar que estes mesmos limites são fruto de uma ideologia. Enfim, o papel desempenhado pelo bem jurídico-penal como critério de garantia individual e de limitação estatal não pode ser relegado a um segundo plano, mas também deve ser sopesado com extrema cautela. Não é exagero asseverar que o processo penal é o que há de mais importante na vida de alguém que venha a ser alcançados pelo Sistema Penal, para tanto basta verificar os efeitos de uma condenação: individuais, sociais e penais.
Recorrentes avalanches ideológicas e tempestades políticas cientes desta importância insistem em “soterrar” o bem jurídico-penal, com especial exemplo – mas não único – para os ataques sofridos pela dogmática no período do Terceiro Reich. Hodiernamente, propagada a ideia de “tolerância zero” ganha corpo a seletiva e odiosa proposta do “Direito Penal do Inimigo”, que apesar de não ser oficialmente aceita já é aplicada no Brasil e no Mundo bastando apenas olhar o perfil da população carcerária para entender “quem é o inimigo”, “quem merece um tratamento diferenciado”, “quem não tem garantias constitucionais”. A prisão não pode mais ser utilizada como aspirador para a escória social.[83]
Como dito anteriormente, as considerações ora realizadas são importantes e extremamente caras a todo jurista cônscio de que “o direito não é uma coisa, posta à mesa, como ‘fato’, para a refeição positivista. Direito e, portanto, crime, são elementos de um processo histórico-social e sociopolítico” relembrando as palavras do saudoso Lyra Filho[84]; a todo jurista que não ignore – consciente ou inconscientemente – a gama de efeitos que a atuação penal tem proporcionado; a todo jurista que não queira limpar o sangue derramado com textos legais e que não deseje ser um mero títere na mão de interesses obscuros.
E ainda, a toda pessoa que procure uma solução mais justa e humana para as misérias sociais (não apenas econômicas). Precisamos ter esperança, porque sem esperança estaremos fadados a escuridão e ao fracasso. Devemos entender que a melhor política criminal é a política social e prestigiar atitudes de inclusão cidadã que busquem diminuir as desigualdades e que prestigiem o respeito ao “outro”. Encerramos essas considerações lembrando a lição do saudoso mestre Alessandro Baratta[85]: o que mais importa é o “direito à segurança” ou a “segurança dos direitos”?
Advogado. Mestre em Direito Penal e Criminologia pela UCAM/RJ. Professor de Direito Penal e Criminologia da Universidade Positivo (UP). Professor da Escola da Magistratura do Paraná (EMAP-PR). Professor do Curso Preparatório Prof. Luiz Carlos
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