Há algum tempo tem sido voga, na Cidade de São
Paulo, a exigência de prova da capacidade econômica e financeira do
jurisdicionado que se declara pobre na acepção jurídica do termo, para, com
isso, conceder-lhe o benefício da atividade jurisdicional gratuita. E
fundamentam tal proposição em face do comando insculpido
no inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Isso quando não
se indefere de plano pedido, mandado recolher a taxa judiciária sob pena de
indeferimento da inicial.
Entrementes, afigura-se-nos
despropositada tal exigência, justamente por confundir a Assistência Judiciária
com Assistência Jurídica, cada qual tendo o seu campo de atuação e fundamento
principiológico legislativo distinto.
Façamos, pois, o necessário discernimento para, ao
final, adequarmos a matéria à sua exata e jurídica
conclusão.
Da
assistência jurídica integral
A assistência jurídica integral é a prevista no
inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal. Não se confunde com a
assistência judiciária (justiça gratuita) prevista na Lei n. 1.606/50. Para a
Constituição Federal, o interessado tem de comprovar a insuficiência de
recursos e, com isso, se valerá da Defensoria Pública (Lei Complementar n. 80,
de 1994).
Semelhante dispositivo se vê no Código de Defesa do
Consumidor quando garantiu, como instrumento
necessário à execução da Política Nacional das Relações de Consumo, a
manutenção de assistência jurídica integral e gratuita ao consumidor carente
(art. 5º, inciso I).
Como observou Euro Bento
Maciel, a assistência judiciária é o gênero do qual a justiça gratuita é a
espécie. E continua o ilustre advogado: “Na ‘assistência judiciária’ o Estado
assume, pelo beneficiário, a obrigação de arcar com as
despesas processuais e honorários do patrono, que não é constituído pelo
interessado, mas lhe é nomeado pelo Juízo ou pela Ordem dos Advogados do
Brasil, sem que lhe assista direito à livre escolha do profissional, enquanto
que, na ‘justiça gratuita’, a isenção suportada pelo Estado se restringe às
despesas processuais, sendo o patrono escolhido, constituído e remunerado pelo
próprio cliente.” (Justiça gratuita e assistência judiciária. Revista do
Advogado: São Paulo, n. 59, jun/2000, p. 66.)
Candente e incensurável também é a
sempre abalizada doutrina de Pontes de Miranda: “Assistência judiciária e
benefício da justiça gratuita não são a mesma coisa. O benefício da justiça
gratuita é direito à dispensa provisória de despesas, exercível
em relação jurídica processual, perante o juiz que promete a prestação
jurisdicional. É instituto de direito pré-processual. A assistência judiciária
é a organização estatal, ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa
provisória das despesas, a indicação de advogado. É instituto de direito
administrativo.” (Comentário ao Código de Processo Civil. 2ª ed., Forense: Rio
de Janeiro, 1958, tomo I, p. 460)
Veja-se que a própria Lei Complementar n. 80/94, dispõe em
seu artigo 1º que à Defensoria Pública incumbe prestar assistência jurídica,
judicial e extrajudicial, integral e gratuita, aos necessitados. Entre os
benefícios do comprovadamente necessitado, encontra-se a possibilidade de ver
resolvido o conflito de interesses extrajudicialmente em sessão de conciliação;
o patrocínio de ação pena privada subsidiária da pública, de ação civil, de
defesa em ação penal, de defesa em ação civil (inclusive reconvenção), a
asseguração das garantias e direitos fundamentais do cidadão por força da
atuação do Defensor junto aos estabelecimentos policiais e penitenciários, a
defesa do direito perante os Juizados Especiais etc. Enfim, entre os benefícios
do assistido, encontra-se o de ver assegurado, em
processo judicial ou administrativo, o contraditório e a ampla defesa, com
recursos e meios a ela inerentes.
A assistência jurídica integral, portanto, tem vasto campo
de proteção e é de incumbência precípua dos membros da Defensoria Pública.
Se a Constituição Federal previu a assistência jurídica (a
mais ampla) aos que comprovem o estado de carência econômica, apenas para esta
deve-se exigir prova da necessidade. Não se confundindo tal instituto com o
previsto na Lei n. 1.050/60, certo é que tal Diploma foi recepcionado pelo
Estatuto Supremo, de tal sorte a ainda permanecerem em pleno vigor os seus
dispositivos. Aplicando-se ao caso a Lei 1.060/50, resta saber o que ela
determina.
A
assistência judiciária
A assistência judiciária, prevista na Lei Federal,
é estritamente processual. Prevê apenas a dispensa do pagamento de diligências
de oficial de justiça, selos, emolumentos e custas devidos
aos juízes e serventuários da Justiça, despesas com as publicações
indispensáveis no jornal encarregado da divulgação dos atos oficiais,
honorários de advogado e peritos (e assistentes técnicos) etc.
Com efeito, preleciona Yussef Said Cahali que: “o beneficiário da gratuidade não consiste na
isenção absoluta de custas e honorários, mas na desobrigação de pagá-los
enquanto persistir o estado de carência, durante o qual ficará suspensa a
exigibilidade do crédito até a fluência do prazo de cinco anos, a contar da
sentença final…” (Honorários Advocatícios. 3ª ed., São Paulo: RT, 1997, p.
155).
O Tribunal de Justiça de São Paulo tem decidido que é “suficiente a declaração de pobreza para serem concedidos os benefícios
da Assistência Jurídica, a qual somente será negada por fundamentadas razões.”
(JTJ 168/237)
Do mesmo modo, o consentâneo e assente Julgado dessa Corte, do qual
foi relator o preclaro Desembargador Toledo Silva, em inarredável consonância
com abalizada doutrina, perfilha o cunho absoluto de que: A parte gozará dos
benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria
petição inicial, de que não está em condições de pagar as
custas, despesas do processo e os honorários de Advogado, sem prejuízo
próprio ou de sua família.” (JTJ 171/201)
Permissa venia, mas
exigir-se prova da necessidade é negar vigência ao artigo 4º da Lei n.
1.060/50, que concede o benefício da assistência judiciária à parte que
“mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em
condições de pagar as custas do processo e os
honorários do advogado, sem prejuízo do próprio sustento”. De igual, afronta-se
acintosamente o parágrafo único do artigo 2º da Lei nº
1.060/50, que considera necessitado todo aquele cuja situação econômica não lhe
permita pagar as custas do processo e os honorários de
advogados sem prejuízo do próprio sustento ou da família, sendo que tal
dispositivo limita-se, simplesmente, a conceituar os necessitados para os fins
legais, como os que não podem pagar as custas do processo e honorários de
advogados sem prejuízo do próprio sustento ou da família.
Quando a parte, no item que pede os benefícios, afirma na própria peça
de ingresso, como manda o artigo 4º do referido dispositivo legal que não reúne
condições de pagar as custas e despesas judiciais sem
comprometimento do seu próprio sustento e de sua família, atendeu ao que
determina a Lei. Isso é o quanto basta.
No § 1º do artigo 4º já mencionado, vem a presunção legal da pobreza
jurídica, até provem em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta
lei.
Na esteira deste enunciado legal, o que não poderia ser diferente,
nossos Tribunais, referendados em venerandos Arestos do Superior Tribunal de
Justiça, têm decidido que: “Para que a parte obtenha o beneficio da assistência
judiciaria, basta a simples afirmação da sua pobreza,
até prova em contrário (RSTJ 7/414; neste sentido: STJ-RF 329/326 JTAERGS
91/194, Bol. AASP ), o que
dispensa, desde logo, de efetuar o preparo da inicial. (TFR-1ª Turma, AC
123.196-SP, rel. Min. Dias Trindade).
Portanto, ao formular o pedido de gratuidade judicial, por ocasião do
ingresso da ação, a parte preenche todos os requisitos legais bastantes à sua
concessão com a simples afirmação de não estar em condições de pagar as custas do processo e os honorários do advogado, sem que,
com isso, tenha prejuízos na manutenção do auto-sustento e da família. E, desse
modo, não encontra respaldo legal a decisão que nega o benefício pleiteado ante
a ausência de prova da necessidade, nem mesmo a que manda a parte comprovar a
necessidade.
De mas há mais.
Cabe ressaltar, conforme orienta-se a
jurisprudência do E. Tribunal de Justiça de São Paulo, conforme dá conta
venerando acórdão do qual foi Relator o Desembargador Salles Penteado: “presume
a Lei nº 1.060, de 1950, esta insuficiência, se a
afirmação de ausência de condições de pagar custas e honorários advocatícios
‘na própria petição inicial’ (artigo 4º , “caput”). A presunção é, e não
poderia deixar de ser iuris tantum” (art.
4º, § 1º). Se se tratasse de pedido formulado no
curso da ação, aí sim, “em face das provas” o Juiz pode concedê-la ou denegá-la
de plano. É o artigo 6º da Lei Federal nº 1.060/50.
Ainda que a parte tenha indicado advogado particular, nem por isso deixa de ter
direito à assistência judiciária, não sendo obrigada, para gozar dos benefícios
desta (RT 707/119), a recorrer dos serviços da Defensoria Pública (STJ-Bol. AASP 1.703/205. Apud: Theotonio
Negrão. Código de Processo Civil. 28ª
ed. Saraiva/1997, nota 4 ao artigo 5º).
Em seus comentários ao Código Processual, anota Theotonio
Negrão que: “ao necessitado a legislação assegura o direito de ser assistido em
juízo, gratuitamente, por advogado de sua escolha, quando este aceita o
encargo, independentemente da existência de Defensoria Pública.”
Conclusão
Como se pode ver, por qualquer ângulo que se olhe, saltam as evidências que a melhor exegese sistemática e
teleológica, à luz da lei, da jurisprudência esmagadora e da melhor doutrina, o
deferimento do benefício pleiteado pela parte é de rigor, independentemente de
prova de sua necessidade, máxime se houver firmado instrumento de declaração
(que não precisa ter a firma reconhecida).
Quando se afirma na peça inaugural sua necessidade, gera a presunção
contida no § 1º do artigo 4º,
da Lei nº 1.060/50, cabendo à parte
contrária o ônus da prova da capacidade econômica (§ 2º, do artigo 4º e artigo
7º, combinados). O ônus da prova não é daquele que pretende os benefícios, nada
tendo a ver a assistência judiciária com a assistência jurídica integral
prevista no Estatuto Supremo. Mesmo porque, se falsamente efetiva tal
afirmação, está sujeito as penas que a parte final do
§ 1º, do artigo 4º do referido Diploma Congressual dá conta.
Portanto, ilegal e arbitrária a exigência de prova da necessidade, de
tal sorte a desafiar a interposição de agravo de instrumento, no bojo do qual pode-se pleitear antecipação da tutela recursal, além de
atribuição de efeito suspensivo ao recurso instrumental.
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