Audiência de custódia: primeiras impressões

Resumo: A prisão que deveria ser tratada como ultima ratio, atualmente é utilizada para sanar a falta de políticas públicas que transmitam segurança à população. O presente artigo foi iniciado com uma visão a respeito dos dados do sistema carcerário brasileiro, para que seja observada a crise prisional ocasionada pela existência de uma cultura de encarceramento desordenado que acarretou em uma superpopulação de presos em condições degradantes. Como a integridade dessas pessoas não é assegurada desde o ato da prisão em flagrante, com a implantação da audiência de custódia, procura-se demonstrar que, se suas finalidades forem alcançadas, haverá a humanização do processo penal já que há o objetivo de esclarecer o modo como foi efetuada a prisão e todas suas circunstâncias, evita o abuso de poder das autoridades, a prática de tortura e prisões preventivas desnecessárias. Esse estudo foi baseado em pesquisas bibliográficas, artigos científicos e em dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça.[1]

Palavras-chaves: Audiência de Custódia; Direitos Humanos; Pessoa Presa; Prisão.

Abstract: The prison that should be treated as ultima ratio is currently used to remedy the lack of public policies that provide security to the population. The present article was initiated with a view on the data of the Brazilian prison system, in order to observe the prison crisis caused by the existence of a culture of disorderly incarceration that resulted in an overpopulation of prisoners in degrading conditions. As the integrity of these persons is not ensured since the act of arrest in flagrante, with the implementation of the custody hearing, it is tried to demonstrate that, if their ends are reached, there will be humanization of the criminal process since there is the objective to clarify the How the arrest has been carried out and all its circumstances, it avoids the abuse of power of the authorities, the practice of torture and unnecessary prisons. This study was based on bibliographical research, scientific articles and data released by the National Council of Justice.

Keywords: Custody Hearing; Human rights; Prey Person; Prison

Sumário: Introdução. 1. Cultura do Encarceramento. 2. A humanização do Processo Penal. 3. Conceito de Audiência de Custódia. 4. Histórico. 5. A Realidade sobre a audiência de custódia. Considerações Finais. Referências.

INTRODUÇÃO

As audiências de custódia são objeto de questionamento pela doutrina já que o sistema carcerário brasileiro passa por uma crise indiscutível, pelo excesso de prisões e a carência dos estabelecimentos prisionais. Dessa forma, a audiência pode se tornar um instrumento para desafogar o sistema carcerário, proporcionando a liberdade de diversos agentes, em situações distintas, que merecem a aplicação de medidas mais brandas enquanto não houver riscos a aplicação da lei e ao devido processo legal. O objeto desse estudo é ter uma perspectiva da audiência de custódia, no contexto de crise do sistema carcerário ocasionada por uma cultura de encarceramento, que é tido como solução para o problema da criminalidade.

Com base em ensinamentos doutrinários de direitos humanos, nos direitos fundamentais previstos na Constituição, em análises iniciais do instituto em artigos científicos, em dados estatísticos e pesquisas promovidas ou divulgadas através do Conselho Nacional de Justiça é que foi feita uma análise sobre o encarceramento, a demonstração da previsão da audiência de custódia e do seu conceito para concluir qual é a realidade em que foi implantada a audiência de custódia.

A audiência de custódia é uma inovação trazida ao Direito Processual Penal, para auxiliar no controle de legalidade das prisões efetuadas no país. O abuso de poder das autoridades que efetuam a prisão e a consequente prática de tortura nos ambientes prisionais é uma realidade visível, veiculada em todos os meios de comunicação e para quem vive cotidianamente neles. O instituto é previsto no Direito Internacional, nos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), esta última mais conhecida como Pacto de San José da Costa Rica.

A principal finalidade dessa audiência é que a pessoa presa seja encaminhada à presença de um juiz ou autoridade competente, depois de efetuada a prisão, sem demora, para que sejam apuradas as circunstâncias em que ela aconteceu, assim como, eventuais práticas de tortura e maus tratos. O juiz, de acordo com o depoimento do preso, poderá manter a prisão ou conceder a liberdade cumulada com medidas cautelares ou não. Os agentes que promovem a prisão não participam da audiência, que terá a presença do representante do Ministério Público e do advogado do preso ou, na falta desse, de um Defensor Público. A principal dificuldade para que ela seja promovida em todo o território se dá não só pela extensão territorial do país, que é composto por 26 estados e 5.570 municípios além do Distrito Federal, como pela falta de estrutura nos municípios.

Para a realização e implantação da audiência de custódia, o Poder Judiciário e o Poder Executivo se organizaram para atender as especificações dadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que iniciou seu projeto de implantação na cidade de São Paulo no ano de 2015 e gradativamente o expandiu para as comarcas das capitais do país. Não há previsão constitucional ou lei específica para padronizar o trâmite dessas audiências, apenas um Regulamento do CNJ. Pela força supralegal que os tratados internacionais que o Brasil faz parte têm, baseada no artigo 5º, §2º da Constituição Federal de 1988, não é imprescindível a previsão legal pois os direitos e garantias e fundamentais expressos na Constituição não retiram a validade dos direitos humanos protegidos pela ordem internacional.

1. A CULTURA DO ENCARCERAMENTO

Com base nos números do CNJ de 2014, a população carcerária do país é de 711.463 presos, levando em consideração que 147.937 são pessoas em prisão domiciliar, o Brasil, passa a ter a terceira maior população carcerária do mundo com esse contingente. Com o crescimento dessa população, o déficit de vagas também subiu, pois o sistema prisional não o acompanha e, segundo o conselheiro do CNJ Guilherme Calmon: “Considerando as prisões domiciliares, o déficit passa para 354 mil vagas. Se contarmos o número de mandados de prisão em aberto, de acordo com o Banco Nacional de Mandados de Prisão – 373.991 –, a nossa população prisional saltaria para 1, 089 milhão de pessoas”.

A ideia de prisão ainda é vista como a melhor, se não a única, forma para combater os crimes que tem uma natureza grave, evitando que ocorram novamente, afetando a atuação dos juízes criminais, assim, a prisão cautelar é tradição no processo penal brasileiro mesmo com diversas medidas cautelares que podem ser aplicadas, então, a audiência de custódia aumenta o poder e a responsabilidade dos juízes, defensores e promotores que participam dela, pois estabelece padrões de legalidade e eficiência na justiça criminal.

“Não pode o juiz permanecer alheio, como hoje ocorre frequentemente, às condições pessoais do preso que revelem a desnecessidade concreta de sua segregação. Reiteradas vezes, a Corte Interamericana de Direitos Humanos consignou que a prisão preventiva é a medida mais severa que se pode aplicar ao imputado de um delito, motivo pelo qual sua aplicação deve ter um caráter excepcional, em virtude do que se encontra limitada por princípios de legalidade, presunção de inocência, necessidade e proporcionalidade, indispensáveis em uma sociedade democrática. Afinal, a prisão preventiva é uma medida cautelar não punitiva, cuja prolongação arbitrária, sem que se haja demonstrado a responsabilidade penal da pessoa a que se aplica esta medida, a converte em um castigo”. (MASI, 2015, p. 24)

Sempre que se trata de discussão pautada nos direitos humanos, existe um fervor enorme já que a sociedade aderiu a um pensamento de que esses direitos só são aplicados as pessoas presas, enquanto o resto da população e as próprias vítimas de delitos se encontram desamparadas por eles. Propositalmente, os meios midiáticos colocam sob holofote questões polêmicas e televisionam por semanas um mesmo crime, que choca a sociedade e normalmente faz com que seja atribuída uma carga excessiva de punibilidade aquele determinado ato.

A sociedade já não vê outra forma de punir e diminuir a violência a não ser com a prisão, que se torna um gasto tamanho ao poder público, que não consegue suprir as necessidades básicas de um sistema prisional superlotado e ao mesmo tempo não atende a população com direitos mínimos assegurados na Constituição, e nem promove políticas públicas que reabilitem tanto a pessoa presa como a vítima de um crime, que deixa diversas sequelas. A prisão sempre deve ser fundamentada pelo magistrado competente, pois é dever do Estado punir e, ao mesmo tempo, assegurar a liberdade do indivíduo ao promover o devido processo legal.

A prisão não pode fundada no livre arbítrio do juiz, e dessa forma, vê-se a audiência de custódia como um meio para assegurar que a prisão não seja eivada de vícios pela defesa da dignidade da pessoa presa que não pode se tornar alvo de tortura pelos agentes públicos. Desse modo, a oitiva do preso, após 24 horas do ato prisão, pela autoridade competente, dá a oportunidade ao Poder Judiciário de excepcionar a prisão aos casos em que ela não se mostra efetiva. Ora, o cárcere não pode ser a regra, e os delitos devem ser avaliados separadamente, de acordo com as circunstâncias que ocorreram, as consequências advindas e a condição do agente e da vítima.

2. A HUMANIZAÇÃO DO PROCESSO PENAL

A audiência de custódia é um instrumento para humanizar o processo penal e evitar atos ilícitos ou arbitrariedade das autoridades públicas permitindo uma visão mais crítica das subjetividades do caso, sendo evitada a judicialização da questão, se for possível uma mediação penal, sendo decididas, juntamente, questões de natureza assistencial ao preso.

O preso deve ser conduzido sem demora à presença do juiz, porém, não há previsão de um prazo determinado que classifique a rapidez com a qual deve ser feita essa diligência. No Código de Processo, em seu art. 306, parágrafo primeiro, prevê a comunicação imediata ao juiz de prisão de qualquer pessoa, com a remessa do auto de prisão em flagrante em até 24 horas, sendo que esse dispositivo foi alterado pela lei nº 12.403/2011.

A audiência não atende apenas a esse trâmite, posto que é imprescindível a oitiva de declarações do preso pelo juiz, para assegurar as disposições do art. 310 do CPP, alterado pela mesma lei, efetivando o novo modelo cautelar introduzido por ela, assim a prisão poderá ser: relaxada, quando ilegal; convertida em preventiva se constantes os requisitos desta. A concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, com sua substituição por medidas cautelares evitaria a alta quantia despendida pelo país para manter uma pessoa encarcerada provisoriamente, “[…] sem estigmatizar a pessoa que ainda não foi condenada e goza do amparo do princípio da presunção de inocência” (OLIVEIRA, et al. 2015, p.105).

A integridade do preso é tutelada e a realização da audiência de custódia pode efetivamente diminuir o próprio custo com a população carcerária e evitar o inchamento caótico do sistema desordenado que existe atualmente. Há questões sociais e civilizatórias que devem ser consideradas por conta de uma cultura de vingança e punição enraizada nas ações de combate a criminalidade que faz com que seja crescente o encarceramento.

A observância dessa garantia, conforme a Convenção Americana de Direitos Humanos dá uma nova visão à cultura do encarceramento em massa, como já menciona Júnior e Paiva (2014) com o surgimento de uma nova política criminal, que queira reduzir os estragos provocados pelo poder punitivo com o diálogo sobre os direitos humanos, sendo imprescindível a mudança cultural para efetiva ação da Constituição e para ordinarização do controle judicial de convencionalidade.

 A ideia que se adapta ao contexto social brasileiro é que o “bandido bom é bandido morto”, e não há outra medida ou meio que possa ser eficaz para que esse indivíduo sofra uma mudança significativa capaz de fazê-lo apto a estar em convívio social. O pensamento é extremo, mas justificado em virtude da recolocação daqueles que se encontram presos, novamente em liberdade, se mostra um risco pelas próprias taxas de reincidência da conduta delituosa, como divulgado pelo próprio Conselho Nacional de Justiça, após pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

“Pesquisa inédita realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a pedido do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revela que a cada quatro ex-condenados, um volta a ser condenado por algum crime no prazo de cinco anos, uma taxa de 24,4%. O resultado foi obtido pela análise amostral de 817 processos em cinco unidades da federação – Alagoas, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro. O estudo considera apenas o conceito de reincidência legal – conforme os artigos 63 e 64 do Código Penal, só reincide aquele que volta a ser condenado no prazo de cinco anos após cumprimento da pena anterior. Outros levantamentos já realizados sobre reincidência, com taxas mais elevadas, costumam considerar a quantidade de indivíduos que volta a entrar nos presídios ou no sistema de Justiça criminal independentemente de condenação, caso dos presos provisórios.”

A audiência de custódia é uma forma de evitar que o indivíduo seja inserido em um presídio sem nenhuma seletividade ou divisão dos encarcerados, um ambiente hostil sem condições saudáveis para permanência, mesmo que temporária. Todo esse conceito é válido, a medida em que são evitadas diversas formas de violência, porém deve ser feita tanto a ressocialização do preso como a reeducação social através de políticas públicas que assegurem os direitos de quem está preso e dos que estão sofrendo com a criminalidade fora dos presídios, efetivando assim, a proteção de direitos humanos a qualquer pessoa que realmente se encontre na jurisdição de um Estado que não cumpre seu papel de bem-estar social.

A doutora em Serviço Social, Miriam Krenzinger, em “Memórias: Workshop Nacional dos GMFs – Um Novo Olhar para a Execução Penal” traz a tona diversos apontamentos sobre a prisão ser uma instituição falida, pois o que se vê é que as discussões pautadas em política criminal, tendo como exemplo a diminuição da maioridade penal, acabam no momento em que se tem a visão de que o cárcere é um ambiente fracassado e uma faculdade de criminosos. Ao abordar sobre sua tese, vê a prisão de forma contemporânea e como uma complexidade, baseando-se em princípios que se adaptem ao pensamento da prisão não como uma simples questão de controle, como o princípio retroativo que a guiou nesse “paradigma da complexidade” e que é um resumo do que a sociedade tem em si como conceito das prisões, de modo geral

“Normalmente se defende que a prisão produz um círculo vicioso de violência. Produz mais violência porque a pena é castigo e a pena gera sofrimento. Essa visão é alimentada por práticas discursivas, tanto no sentido das denúncias contra o sistema, como também das análises que vão produzindo formas de pensar esse sistema e que inviabilizam qualquer alternativa para modificá-lo. Produz‑se um efeito perverso, o imobilismo. Todas as críticas contra o sistema vão produzir nos gestores das políticas criminais o olhar de que não adianta investirmos nesse lugar. Ele está fadado ao fracasso. Outro discurso que nasce daí: “temos de investir mais em escola, mais em educação do que no sistema carcerário”. “Temos de fazer com que as pessoas não entrem, pois não vão ter acesso à educação dentro da cadeia”. “A pena de prisão deveria ser utilizada somente em casos excepcionais”. “Não pode ser uma resposta primeira para o enfrentamento das dinâmicas criminais”. Porém, a prisão existe e está lá. Diariamente sendo gestada e organizada. Esse pensamento de que a prisão é ineficiente, não tem capacidade de produzir alternativas na vida daqueles que estão cumprindo uma punição, alimenta, no campo da política, a justificativa para o imobilismo, para o não investimento em sua melhoria, paradoxalmente. Esse é o sentido do princípio retroativo”. (KRENZINGER, 2016, p.29)

A complexidade da prisão demanda a compreensão de que a integração de diversos organismos sociais é que promoverá a compensação dos danos causados quando é cometido um crime, não sendo alheia ao Poder Público, a missão de reconsiderar os equívocos que geram recrudescimento penal e o uso excessivo do poder de punir estatal em situações que não serão alteradas se a dinâmica da sociedade também permanece a mesma.

3. CONCEITO DE AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

A audiência de custódia visa proteger e resguardar direitos inerentes àquele que se encontra em situação de restrição de liberdade, pelo seu encaminhamento à presença da autoridade competente para oitiva e dar conhecimento de quais foram as circunstâncias do ato de prisão. O juiz receberá o auto de prisão em flagrante, ouvindo o preso em até 24 horas após a prisão e, assim, determinará se a prisão deverá ser ou não mantida, sem prejuízo da aplicação de medidas cautelares.

Carlos Paiva conceitua o instituto

“Como o ato de guardar, de proteger. A audiência de custódia consiste, portanto, na condução do preso, sem demora, à presença de uma autoridade judicial que deverá, a partir de prévio contraditório estabelecido entre o Ministério Público e a Defesa, exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão, assim como apreciar questões relativas à pessoa do cidadão conduzido, notadamente a presença de maus tratos ou tortura. Assim, a audiência de custódia pode ser considerada como uma relevantíssima hipótese de acesso à jurisdição penal, tratando-se de uma das garantias da liberdade pessoal que se traduz em obrigações positivas a cargo do Estado.” (PAIVA, 2014)

Assim, a audiência de custódia, prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, assegura ao preso que os direitos inerentes à pessoa humana sejam perseguidos e as violações sejam evitadas e punidas. Portanto, a audiência de custódia é conceituada como um direito que deve ser assegurado ao preso, conforme preleciona Masi (2015, p. 2)

“Audiência de custódia ou audiência de garantia é o ato judicial pré-processual que assegura a garantia que todo cidadão preso em flagrante tem (deveria ter) em face do Estado de ser apresentado pessoalmente e com rapidez à autoridade judiciária (juiz, desembargador ou ministro) competente para a aferição da legalidade de sua prisão (princípio do controle judicial imediato). Nesta audiência, o juiz ouvirá o próprio preso, a acusação e a defesa, exclusivamente sobre questões concernentes direta ou indiretamente à prisão e suas conseqüências, à sua integridade física e psíquica e aos seus direitos. Em seguida, proferirá uma decisão fundamentada sobre a continuidade ou não da custódia. Há quem estenda a necessidade deste ato a qualquer prisão de natureza cautelar, uma vez que os tratados internacionais que tratam da matéria não fariam essa distinção, devendo ser interpretados sempre de forma ampliativa (princípio da proteção suprema do ser humano, ou pro homine), em favor da máxima efetividade dos direitos humanos. A pessoa submetida à audiência de custódia mantém todos os seus direitos fundamentais, dentre eles especialmente o de permanecer em silêncio, se assim o desejar (sem que isso seja interpretado em seu desfavor em nenhuma hipótese), e o de ser assistido por defensor constituído ou público, que atuará com autonomia e independência, com o qual poderá se entrevistar, por tempo razoável (aquele que permita a exposição adequada do caso e a devida orientação) e em sigilo, antes da solenidade”.

Haverá, por conseguinte, a análise dos aspectos em que o preso foi abordado e levado ao ambiente prisional, englobando o período entre a prisão e o encaminhamento dele até o magistrado competente.  A decisão sobre a prisão tem critérios puramente objetivos para avaliar apenas esse ato, e não o mérito da causa, garantindo a defesa do preso em sua plenitude, com a obrigatoriedade da presença de um defensor. Precipuamente a finalidade da audiência é a condução da pessoa que se encontra presa, sem demora, à presença de juiz ou autoridade competente, consequentemente, busca-se coibir a prática de tortura e abuso de poder do agente que promove a prisão. Haverá, por conseguinte, a análise dos aspectos em que o preso foi abordado e levado ao ambiente prisional, englobando o período entre a prisão e o encaminhamento dele até o magistrado competente.

Em um plano secundário, há a evidente preocupação em desafogar o sistema prisional que está cada vez pior pelo excesso de presos e falta de vagas, fazendo com que os estabelecimentos prisionais não obedecem a capacidade de lotação real e prevista inicialmente. O que acontece é uma generalização de delitos, já que crimes mais graves e menos graves cometidos por agentes diversos não são relevantes para definir uma separação dos indivíduos presos. Práticas abusivas não são raras nos ambientes inóspitos da prisão e até mesmo antes que essa se efetue. Dessa forma, a oitiva do preso, em um curto lapso de tempo procura avaliar se realmente houve um contexto que permita a restrição de liberdade de forma legal e necessária. Observando os objetivos da audiência denota-se a busca pela ampla defesa, pelo contraditório, pela legalidade, além do atendimento ao princípio da presunção de inocência e ao da dignidade da pessoa humana.

4. HISTÓRICO

A audiência é prevista no Direito Internacional, com previsão normativa na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (1950), no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica (1969).

Na Convenção Europeia, que entrou em vigor em 1953, visando a proteção dos Direitos Humanos e liberdades fundamentais, há previsão de que qualquer pessoa presa ou detida deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais, no seu artigo 5.3. No Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado em dezembro de 1966 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, os Estados acordaram que todos os povos têm direito à autodeterminação, e em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural, estabelecendo no artigo 9.3, que qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais como meio para reconhecer o ideal do ser humano livre, no gozo das liberdades civis e políticas e liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado e menos que se criem às condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis e políticos, assim como de seus direitos econômicos, sociais e culturais.

A Convenção Americana de Direitos Humanos foi adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos em 1969, e entrou em vigor para o Brasil em 25 de setembro de 1992, com validade a partir do Decreto-Lei nº 678 de 6 de novembro de 1993. A Convenção abarcou os direitos fundamentais civis e políticos como o direito à vida, à integridade pessoal, proibindo a escravidão e servidão, assegurando os direitos à liberdade pessoal em seu artigo 7. No artigo 7.5 da CADH (1969), há a presença do instituto da audiência de custódia quando menciona que

“Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo.  Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.

Passados quase 20 anos da adesão da CADH, foi proposto o Projeto de Lei Do Senado Federal (PLS) nº 554/2011, que tem como autor o Senador João Capiberibe, em que a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, emitiu parecer favorável à emenda do art. 306 do Código de Processo Penal. Assim, o preso deve ser apresentado em até 24 horas após o ato da prisão em flagrante para ser ouvido por juiz.

O que embasa a audiência de custódia é a Convenção Americana de Diretos Humanos, assim, não há prévia necessidade de aprovação do Poder Legislativo para que ela tenha suas previsões atendidas, já que é tratado internacional que versa sobe direitos humanos no qual o Brasil é signatário, conforme MAZZUOLI

“Tecnicamente, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil já têm status de norma constitucional, em virtude do disposto no § 2.º do art. 5.º da Constituição, segundo o qual os direitos e garantias expressos no texto constitucional “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, pois, na medida em que a Constituição não exclui os direitos humanos provenientes de tratados, é porque ela própria os inclui em seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu “bloco de constitucionalidade” e atribuindo-lhes hierarquia de norma constitucional, como assentamos anteriormente. Portanto, já se exclui, desde logo, o entendimento de que os tratados de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada do § 3.º do art. 5.º equivaleriam hierarquicamente à lei ordinária federal, pelo fato (aparente) de eles terem sido aprovados apenas por maioria simples (nos termos do art. 49, I, da Constituição), e não pelo quórum que lhes impõe o referido parágrafo”.

A atual redação do art. 306 do Código de Processo Penal, alterado pela Lei 12.403/11 disciplina a imediata comunicação do juiz, do Ministério Público e a família do preso, tendo em seu § 1º, prazo de 24 horas para que o auto de prisão em flagrante seja remetido ao juiz e, na falta de advogado, à Defensoria Pública.

A audiência foi regulamentada através da Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em aprovação unânime em 15 de dezembro de 2015, tendo entrado em vigor em 1º de janeiro de 2016, estipulando o prazo de 90 dias para que os tribunais se adequassem. Foi fundada no art. 9º, item 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, bem como o art. 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na decisão nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 do Supremo Tribunal Federal, consignando a obrigatoriedade da apresentação da pessoa presa à autoridade judicial competente, o art. 96, letra “a” do inciso I da Constituição Federal, que atribui aos tribunais a possibilidade de tratarem da competência e do funcionamento dos seus serviços e órgãos jurisdicionais e administrativos; e a decisão prolatada na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5240 do Supremo Tribunal Federal, declarando a constitucionalidade da disciplina pelos Tribunais da apresentação da pessoa presa à autoridade judicial competente.

A audiência já era incentivada e acordos de cooperação foram celebrados entre o CNJ, Ministério da Justiça e Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) para que a audiência fosse difundida, tendo como fim: o esforço mútuo entre os órgãos do Judiciário e do Poder Executivo, a aplicação de medidas cautelares alternativas à prisão e o monitoramento eletrônico.

A falta de lei específica que tutele a audiência de custódia não impede que ela aconteça pela extensão dos direitos humanos previstos nos tratados como ensina Valério de Oliveira Mazzuoli

“Os direitos humanos, diferentemente dos direitos fundamentais, podem ser vindicados indistintamente por todos os cidadãos do planeta e em quaisquer condições, bastando ocorrer a violação de um direito seu reconhecido em tratado internacional aceito pelo Estado em cuja jurisdição se encontre. Talvez por isso certa parte da doutrina tenha preferido o uso da expressão direitos humanos fundamentais, com o intuito de significar a união material da proteção de matiz constitucional com a salvaguarda de cunho internacional desses direitos”. (MAZZUOLI, 2014, p.)

5. A REALIDADE SOBRE A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

A realização da audiência é assegurada independentemente da condição do agente, já que poderá ser realizada onde ele se encontre, em casos excepcionais ou de enfermidade. A autoridade competente será definida pelas leis de organização do judiciário da localidade ou por ato normativo do Tribunal de Justiça. A responsabilidade da conduta do preso ao local em que será realizada a audiência é da Secretaria de Administração Penitenciária ou da Secretaria de Segurança Pública. Os agentes policiais que efetuaram a prisão não podem participar dessa, e havendo a oitiva do preso, o representante do Ministério e o procurador da parte farão seus questionamentos sem qualquer indagação relativa ao mérito da conduta delituosa para constituir imputação.

Se o juiz optar pela liberdade provisória, com a aplicação de medidas cautelares, estas devem ser acompanhadas por Centrais Integradas de Alternativas Penais, estruturadas preferencialmente no âmbito do Poder Executivo estadual, de acordo com a Resolução 213 do CNJ, devendo também prestar saúde e assistência social aos presos. Se a pessoa presa declara que foi torturada ou sofreu maus tratos, serão tomadas todas as investigações possíveis para a apuração dos fatos, resguardando a segurança física e psicológica com o encaminhamento para atendimento médico e psicossocial.

Os números prestados pelo CNJ, em dois anos de realização da audiência de custódia são positivos se avaliados pelo ponto de vista que os presos provisórios tendem a diminuir, mesmo que em 54,4% dos casos a prisão foi mantida e 45,6% a liberdade foi concedida, baseando-se na análise de aproximadamente 200,8 mil detenções. O índice de queixas a respeito de tortura ocorreu em 4,8% das prisões, tendo 10,9% com indicações à serviços sociais.

A apuração da eficácia das audiências pode ser pautada na comparação dos dados anteriores e posteriores à sua implantação, já que o critério para a soltura é subjetivo. Em decorrência das mudanças promovidas na estruturação dos órgãos envolvidos, as audiências podem se tornar um meio paliativo para dar uma falsa sensação de punição já que o preso que pode ser liberado nas 24 horas seguintes. O Poder Judiciário assume então, uma conduta de transformar a prisão em um alicerce do poder punitivo do Estado, de forma equilibrada e justa, sem a desvirtuação da prisão para mero instrumento de contenção de indivíduos perigosos.

A promiscuidade que cerca a aplicação da lei penal do Brasil põe em cheque a necessidade real das audiências que, requerem a defesa integral dos direitos daquele que foi preso, especialmente, se houver qualquer forma de abuso na prisão. E, mesmo livre de qualquer ilegalidade, o sujeito ainda pode ser recolocado na sociedade de forma imediata. Denota-se que pode haver a liberdade após a avaliação da periculosidade do agente ou pelo simples fato de que não há local apropriado para encaminhar aquele.

Se os objetivos da audiência de custódia não forem alcançados há um sério risco de que a lei 12.403/2011 apenas saliente a inexecução da Lei Penal Brasileira. Há oposição a realização da audiência, segundo Oliveira et al (2015), tanto por essa não ter uma base de recursos materiais e humanos, pela suficiência do modelo atual, quanto pela falta de previsão legal. Alega-se que o contato do preso com a autoridade não seria necessariamente com um juiz, ou seja, à presença do delegado já bastaria. O propósito da previsão nos Pactos Internacionais é a imediata apresentação do detido ao Estado-juiz, sendo totalmente contrária a referida alegação. Há, ainda, a humanização do processo penal pela percepção das características do preso com a formação da convicção do julgador e não a mera especulação dos fatos que levaram ao cárcere mesmo que não exista avaliação do mérito.

O desvio de finalidade alçado pela audiência pode ser observado se a concessão de liberdade for motivada, principalmente, pelo tratamento inapropriado que se faz presente no sistema prisional brasileiro, já que não há estrutura para asseverar dignidade mínima na vida carcerária. Se o princípio da dignidade humana não é minimamente atendido na vida carcerária, o sistema passa a abrigar uma superpopulação prisional e não atende as demandas exigidas. A precariedade das condições encontradas exigem atenção do poder público em relação a crescente violência e a quantidade de prisões que são realizadas, já que a pena privativa de liberdade não tem atingido seu caráter ressocializador e continua sendo utilizada como primeira medida.

O Poder Executivo transferiu sua responsabilidade ao Judiciário, evidenciando seu reiterado descaso com a criação de vagas nos presídios e estabelecimentos prisionais que estejam aptos para o cumprimento de pena.  Além disso, as políticas públicas são falhas, pois é inexistente uma gama de assistência aos que permanecem presos ou estão em liberdade

É justificável a preocupação dos operadores do direito em ter a eficácia destas audiências pautada no insucesso da execução penal, que não corroboram para a crença que os objetivos fixados inicialmente serão realmente preenchidos. Os direitos que são perseguidos podem ser rechaçados, ainda, pela sociedade que não aceita a passividade das autoridades e apenas pugnam pela punição, sem qualquer defesa aos direitos da pessoa humana, que apesar de terem violado um bem jurídico protegido, não estarão aptos à reinserção social quando submetidos a maus tratos e métodos arcaicos de punição.

A avaliação do teor das decisões que concedem a liberdade do preso é que comprovará se os objetivos da audiência vêm sendo defendidos. O ato de libertar é de extrema responsabilidade, pois pode mudar a realidade da aplicação das medidas cautelares alternativas à prisão e encaminhar uma reforma gradativa do sistema prisional brasileiro. O cenário novo proporcionado pela audiência de custódia pode evitar, além do encarceramento desordenado, a prática da tortura a fim de compelir o autuado a delatar possíveis comparsas ou confessar um crime pelo qual não cometeu. É imprescindível que esse instituto jurídico cumpra seu papel no nosso ordenamento e o direito da pessoa presa seja garantido para que ela responda por seus atos com a dignidade que o Direito defende como já observado por Paiva (2015 apud ABRAMOVAY; BATISTA, 2010)

“Interligando as três finalidades da audiência de custódia (I – ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos humanos, II – prevenção da tortura e III – evitar prisões ilegais, arbitrárias ou desnecessárias) há o discurso – emergencial – de combate ao “grande encarceramento”, de tirar o Brasil do vergonhoso 3º lugar no ranking dos países com maior população carcerária, de salvar vidas… Mas que não nos enganemos: de nada adiantará a implementação da audiência de custódia se a mentalidade do Poder Judiciário permanecer a mesma, a de sempre.”

Enfim, a universalidade na defesa dos direitos humanos servirá para atender não só as pessoas em liberdade, como as que estão no cárcere e deve ser um paradigma para que o sistema funcione e possa ser integrado de forma que englobe direitos que são previstos há anos e não são efetivados, posto que a aplicabilidade das próprias audiências deva ser vista como uma obrigação do Estado, para não ser mais uma norma exemplar de Direito meramente simbólico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A audiência de custódia é um direito humano assegurado ao preso e realmente busca, a priori, que ele seja ouvido e que sua integridade seja mantida, garantindo a dignidade na prisão e que elas sejam excepcionadas. Com base nos dados estatísticos analisados durante as pesquisas, denota-se que o índice de prisões não teve uma baixa tão significativa nesses dois anos em que a audiência vem sendo praticada. Não se pode auferir, ainda, se o instituto está melhorando o sistema prisional e contribuindo para que haja a razoabilidade da aplicação da prisão, pois os critérios que são utilizados para a soltura não são apenas objetivos, ou seja, se houve ou não tortura, se a prisão é ou não legal. O juiz pode entender, de acordo com a situação, que a prisão não precisa ser mantida e pode ser substituída ou concedida a liberdade.

A demora da implantação da audiência, desde a sua previsão nos tratados internacionais que o Brasil faz parte, escancara a falta de preocupação do poder público em viabilizar políticas que incentivem uma nova visão para o Processo Penal. A extensão territorial do país dificulta demasiadamente que a audiência seja promovida em todas as comarcas e demanda o esforço dos órgãos públicos que fazem parte de um aglomerado de ações desde o ato da prisão até a condução ao ambiente em que será realizada. O que deve ser levado em consideração de agora em diante, é a razoabilidade e proporcionalidade das decisões dos magistrados ao conceder a liberdade ou manter a prisão, pois na fundamentação delas serão extraídos os resultados reais dessa audiência tanto para a sociedade como para o sistema carcerário.

 

Referências
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Notas
[1] Trabalho orientado pela profa. Roseli Rego Santos Cunha Silva, Mestre da Faculdade Católica do Tocantins

Informações Sobre o Autor

Rafaela Gomes

Acadêmica de Direito na Faculdade Católica do Tocantins


Equipe Âmbito Jurídico

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