Resumo: O artigo aborda uma possível distinção entre bens públicos e bens estatais a partir do ordenamento jurídico pátrio que possibilita a criação de pessoas administrativas estatais com personalidade jurídica de direito público e direito privado. Além disso, analisa a necessidade compreender os bens públicos fora do âmbito estrito do Código Civil para trabalhar uma abordagem decorrente da sua natureza e fundamentada numa perspectiva constitucional.
Palavras chave: bens públicos; bens estatais; bens privados; administração pública.
Sumário: 1. Introdução; 2 Bens públicos e bens estatais: uma diferenciação necessária; 3 O critério constitucional de delimitação dos bens públicos; 4 Bens públicos em razão da afetação; 5 O regime jurídico dos bens públicos; 6 Considerações finais; Referências bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
A doutrina não tem esgotado a questão da caracterização dos bens públicos. Normalmente apresenta a falsa idéia de que todos os bens estatais são bens públicos. Entretanto, não é tão simples assim. Se fizermos uma análise detalhada dos bens públicos chegaremos, pelo menos, a questionar esse entendimento para dizer que nem todos os bens estatais são públicos e alguns bens particulares são públicos, de modo que público não é sinônimo de estatal.
A partir deste entendimento, podemos delimitar como um bom critério de classificação dos bens públicos a afetação. Significa dizer que vamos diferenciar o público do estatal delimitando os bens públicos a partir das características atribuídas pela lei a determinados bens em razão de sua afetação ao um interesse superior.
Vamos diferenciar bens estatais e bens públicos. É importante tal diferenciação em razão de que normalmente ela é imperceptível. Entretanto, em razão de que o Estado é organizado em sua estrutura com pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, tal caracterização é muito importante. Passemos a esta análise.
2 BENS PÚBLICOS E BENS ESTATAIS: UMA DIFERENCIAÇÃO NECESSÁRIA
Ao analisarmos os bens públicos verificamos que esta categoria não se esgota com a enumeração dos bens estatais pois existem diferenças entre estes: nem todos submetem-se a um mesmo regime jurídico. Dentre os bens estatais é possível verificar que alguns bens submetem-se ao regime jurídico de direito público e outros ao de direito privado. Uma parte destes, embora estatais, não pode ser caracterizada como bens públicos.
Podemos afirmar que bens estatais são todos os bens do conjunto de pessoas estatais de direito público e de direito privado enquanto bens públicos são alguns bens do Estado e até mesmo alguns bens particulares que são alcançados por um regime jurídico específico em razão de sua importância para a sociedade, dentre os quais estão aqueles que Juarez Freitas denomina “bens quase-públicos”, trabalhando a idéia de afetação para caracterizar determinados bens como públicos.
“Bens quase-públicos são aqueles que, embora não contemplados pela classificação civilista, são especializados por uma afetação pública, sem alteração de titularidade que permanece particular, ou seja, fazem-se como que publicizados, sem serem propriamente integrantes do domínio público”. (Freitas, 1995, p. 70)
Os bens públicos compreendem todos os bens que possam ser afetados ao interesse público, como é o caso dos previstos no art. 99 CC/2002 (praças, praias, ruas…). Por outro lado, são exemplos de bens estatais que não são enquadrados como bens públicos os bens das pessoas jurídicas estatais de direito privado (prédios do Banco do Brasil, da Petrobrás…). Afinal, estes entes administrativos não prestam serviços públicos.
Em decorrência desta diferenciação, podemos afirmar que os bens públicos são aqueles que se submetem a uma disciplina específica estabelecida pelo regime jurídico dos bens públicos que estudaremos logo adiante, de modo que aplica-se apenas a parte dos bens estatais pois alguns são regidos pelo regime jurídico de direito privado.
Nesta concepção somos forçados a afirmar que são bens públicos os necessários à concretização dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Nesta categoria não podemos nem generalizar todos os bens que são de propriedade do Estado e dos entes de sua administração indireta, nem descartar aqueles que embora particulares, são necessários à satisfação dos interesses que devem ser garantidos pelo Estado.
De outro lado, se é necessário adotar uma determinada interpretação para diferenciá-los dos bens de natureza privada em razão de que têm algumas particularidades que os diferenciam dos demais, temos que excluir dessa caracterização os bens móveis que pertencem ao Estado. A noção que pretendo trabalhar é a de que o bem é público em razão de sua natureza, o que determina a aplicação de um determinado regime jurídico, ao contrário de se considerar apenas a propriedade estatal. Sendo razoável esta idéia, transpareceria uma diferenciação entre os bens estatais e os públicos justamente em decorrência de serem estes últimos bens indissociáveis dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.
Para o novo Código Civil são bens públicos os bens das pessoas jurídicas de direito público. Porém, nos parece que não é tão simples assim. Para o direito administrativo vale esta previsão? Para responder esta questão, é necessário entender a razão e os limites da caracterização de uma determinada categoria como bem público. É necessário adotar um critério delimitador. Adotando o critério da afetação, vamos considerar bens públicos todos aqueles pertencentes às pessoas jurídicas de direito público, bem como, aqueles que, embora pertencentes à pessoas jurídicas de direito privado, estejam afetados à prestação de um serviço público ou que estejam afetados a uma atividade de interesse coletivo da sociedade, sobre eles incidindo o regime jurídico de direito público.
3 O CRITÉRIO CONSTITUCIONAL DE DELIMITAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS
A Constituição da República utiliza o critério da atribuição de titularidade dos bens a determinado ente político-administrativo estatal, diferentemente do critério utilizado pelo Código Civil que aborda o direito de propriedade. Entretanto, a Constituição ao atribuir titularidade a um destes entes não estabelece que sejam bens públicos, apenas os colocando sob o controle de um deles de modo que são classificados em federais, estaduais, distritais e municipais. Ou seja, são bens que estão na titularidade de um ente político-administrativo. Normalmente afirmamos que são “bens públicos” de titularidade estatal.
Esta atribuição de titularidade delimita unicamente os bens da União e dos Estados federados silenciando a respeito dos municipais e distritais. São bens da União os previstos no art. 20 e dos Estados os previstos no art. 26. Os bens municipais são aqueles que situam-se dentro dos limites do Município e não pertencem ao Estado nem à União.
Verificamos, portanto, que a Constituição da República estabelece a titularidade de bens dos entes que compõem a federação mas não se refere especificamente a bens públicos de modo que os bens previstos constitucionalmente não esgotam, para fins do direito administrativo, a sua totalidade. Cremos assim ser necessário o enquadramento a partir do critério da afetação, em decorrência do qual poderá ser possível analisar quais dos bens estatais são abrangidos no conceito de bem público e também aqueles que não sendo estatais assim possam ser considerados.
Além dos citados, os entes da administração indireta também são titulares de bens públicos quando tiverem personalidade jurídica de direito público. Tal previsão decorre da interpretação do art. 98 do Código Civil, como veremos a seguir.
4 BENS PÚBLICOS EM RAZÃO DA AFETAÇÃO
Para tratarmos dos bens públicos temos que recorrer à categorização estabelecida no Código Civil de 2002, no Capítulo III do Livro II. O Código cria a categoria de bens para depois afirmar que alguns deles estão excluídos deste universo: estes são bens públicos. Portanto, esta classificação não exclui as demais, mas traz algumas peculiaridades que os diferenciam dos bens que podem ser apropriados mediante uma relação jurídica de direito privado.
Nesta caracterização, o Código limita os bens públicos como aqueles pertencentes às pessoas jurídicas de direito público excluindo todos os demais. Assim, o artigo 98 delimita quais são os bens públicos.
“Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem”.
Este não é um critério delimitador definitivo pois quando o artigo se refere a bens “pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno” parece estar se referindo a todas as categorias de bens, tanto os que podem ser objeto de apossamento quanto aos indisponíveis.
Analisando mais pormenorizadamente, vamos verificar que o critério específico para o estabelecimento de uma categoria de bens denominada “bens públicos” decorre da destinação ou afetação, independentemente de titularidade estabelecida em lei ou de título de propriedade. Esta é considerada a distinção mais relevante no ordenamento jurídico brasileiro já que é a lei civil que vai ordenar o regime jurídico dos bens em públicos e privados.
É necessário verificarmos qual o critério utilizado pela lei civil para diferenciar um bem entre público e privado. Esta classificação, como o próprio nome indica, vai salientar a destinação do bem e quem dele se utiliza: são os bens de uso comum do povo, os bens de uso especial e os bens dominicais. O Código Civil, diferentemente do critério utilizado pela Constituição da República para atribuir a titularidade, estabelece uma definição a partir da destinação.
“Art. 99. São bens públicos:
I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;
III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.”
Os bens de uso comum são aqueles destinados ao uso indistinto de qualquer pessoa (art. 99, I CC/2002). São bens sobre os quais o povo em geral, de modo anônimo, pode exercer uso, sendo utilizados indistintamente, dentre os quais estão os rios, mares, estradas, ruas e praças. Segundo o critério da afetação para delimitar os bens públicos, verificamos que está sendo considerada a própria natureza do bem para o enquadramento. Além disso, cada uma das categorias não se esgota com os bens enumerados. Ao enunciado no inciso I do art. 99 poderíamos acrescer as praias e o meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CR/88), bens de uso comum do povo e essenciais à sadia qualidade de vida, cujo dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, é dever constitucional do Poder Público e da coletividade.
Esta concepção decorre da própria necessidade de considerarmos como de fundamental importância a concretização dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito explícitos no art. 1º da Constituição da República, especialmente os da dignidade da pessoa humana e da cidadania.
Trabalhar a idéia de bens públicos noutra concepção, não simplesmente como a de bens que constituem o patrimônio do Estado, mas como bens necessários à concretização daqueles princípios que mencionamos acima, exige uma análise dos bens a partir de uma concepção global, tal como a mencionada por Inge Kaul (2009) e que coloca o ser humano como o centro de qualquer discussão.
São bens que, em regra, são utilizados indistintamente por uma pluralidade de pessoas não individualizadas, independentemente de consentimento da Administração Pública mas que dependem da tutela estatal. E em decorrência desta tutela e das próprias características desses bens, haverá momentos em que a lei estabelecerá que o uso poderá ou não ser oneroso. O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído (oneroso) de acordo com a previsão legal (art. 103 do CC/2002). É o caso do estacionamento rotativo no centro da cidade, dos pedágios nas rodovias, da ancoragem em portos ou ainda, da utilização da água mediante outorga. Igualmente, a norma jurídica pode estabelecer limite de tempo e cobrança de tarifas para que veículos permaneçam estacionados em vias públicas. Aqui, é possível verificar que a interpretação não pode nem deve ficar restrita a simples letra da lei civil e que é necessária uma releitura crítica dos bens que estão sob a titularidade estatal para verificar se realmente ela deve ser ampliada ou reduzida.
Nesta acepção mais ampliada, bem público é o que pode ser utilizado indistintamente por qualquer cidadão por ser da própria coletividade. E pode apresentar uma diversidade de categorias de bens, como é o caso dos bens que não podem ser apropriados por quem quer que seja e sobre os quais o Estado deve exercer a tutela por ser sua preservação necessária à própria humanidade.
Todavia, afirmar que um bem seja de uso comum do povo, não significa necessariamente que este bem esteja aberto ao uso livre pela população. Me parece essencial ampliar um pouco o entendimento acerca da afetação dos bens ao interesse da coletividade para abranger inclusive o interesse da humanidade e assim estabelecer a possibilidade de uma restrição ao uso estabelecida pelo Estado. É o que acontece quando a Constituição da República estabelece que é dever do Estado e do cidadão e da coletividade a preservação do meio ambiente. Neste caso, não se está delimitando o bem público pelo critério da titularidade ou da propriedade. A Constituição da República está afetando determinado bem ao interesse maior da humanidade e por isso ele passa a ser considerado bem público de uso comum do povo embora com restrição imposta. Vejamos o que estabelece o art. 225 da CR/88:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:
I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
§ 2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.
§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
§ 5º São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.
§ 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.” (grifei)
O artigo constitucional que acima transcrevemos demonstra que a categoria “bem público de uso comum do povo” não pode se resumir a bens de uso indistinto por qualquer do povo e que há necessidade de renovação do entendimento acerca deles para que sejam incorporados os princípios fundamentais.
Os bens de uso especial são os bens que estão afetados a uma atividade ou serviço da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive de suas autarquias (art. 99, II do CC/2002), como é o caso de edifícios e terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração. Três considerações a respeito temos que fazer: a primeira, de que a lei não engloba nesta definição os bens móveis em razão de que eles têm características próprias, em razão de serem objeto de propriedade dos entes estatais mesmo que afetados a atividades administrativas; a segunda, que dentre as pessoas administrativas devem ser citadas a distrital, as fundações e os consórcios públicos quando sua personalidade jurídica for de direito público. Em terceiro lugar, quando se lê atividade ou serviço da administração, deve-se entender “administração” no sentido estrito vinculado às pessoas de direito público, excluídas as pessoas estatais com personalidade jurídica de direito privado, já que esta é a previsão do art. 98 anteriormente citado.
Assim, vamos considerar como bens de uso especial os bens imóveis destinados a prestação de um serviço aos cidadãos ou estabelecimento utilizado pela Administração Pública ou pelas pessoas estatais de direito público. Nesta categoria estão os mercados municipais, teatros públicos, museus, universidades, prédios de escolas e repartições públicas e as reservas indígenas. O beneficiário direto desses bens é o cidadão usuário do serviço prestado e o servidor público que o utiliza para o exercício de suas atividades. Deixamos de considerar os bens móveis em razão de que eles são propriedade dos entes estatais e assim serão regidos pelas normas de direito privado, embora deva ser observada toda e qualquer restrição legal imposta a eles.[1]
Esta classe de bens não comporta o uso geral e indistinto por todos, razão pela qual seu uso não está indistintamente aberto a toda a coletividade. Cabe à Administração Pública administrar o seu uso em conformidade com sua destinação. Esta classe de bens poderá ser utilizado por particular desde que a atividade a ser desenvolvida seja compatível com a destinação do mesmo e seja de interesse coletivo. É o caso ilustrativo da livraria de propriedade particular estabelecida em escola pública ou do box em mercado público. Entretanto, para que se possa fazer o uso privativo acima citado, o particular deve ter uma autorização do Poder Público. A partir deste entendimento exposto fica fácil verificar que apenas no primeiro caso é que vai poder se falar em bens de interesse da coletividade enquanto que estes geralmente servem para o desenvolvimento de atividades administrativas.
Já os bens dominicais são os bens que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades (art. 99, III do CC/2002). Este inciso limita os bens dominicais às pessoas de direito público novamente, excluindo as com personalidade jurídica de direito privado, muito embora parte da doutrina pátria considera que os bens das pessoas estatais privadas sejam enquadrados como bens dominicais.
Já a redação do parágrafo único do art. 99, III do CC/2002 é de uma redação precária. Estabelece que, não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado. Quer parecer aqui que a estrutura de direito privado é aquela estabelecida em lei. Poderíamos considerar que o CC/2002 quer se referir aos bens das empresas estatais, cuja personalidade jurídica é de direito privado e referidos por parte d a doutrina como domínio privado do Estado. Entretanto, não nos parece a melhor alternativa pois ou os bens destas pessoas jurídicas estão destinadas a um serviço ou estabelecimento do ente administrativo ou pertencem ao patrimônio disponível destas pessoas.
Se considerarmos que os dominicais são bens que não tem destinação definida, não sendo enquadrados entre os de uso comum, nem entre os de uso especial, evidentemente que não poderemos assim enquadrar os bens das pessoas estatais de direito privado. Os bens dominicais são bens sem destinação específica porque não a receberam ou porque perderam um destino anterior. Enquadram-se nesta categoria as terras devolutas, os terrenos de marinha e os bens imóveis desnecessários ao ente estatal. O beneficiário direto dos bens dominicais é o próprio Estado pois inexiste utilização imediata pelo cidadão. Tais bens podem ser utilizados com finalidades sociais, como as áreas públicas objeto de concessão de direito real de uso para fins habitacionais ou para auferirem rendas em decorrência dos negócios jurídicos de direito privado.
Alguns doutrinadores simplesmente tratam os bens dominicais como bens de domínio privado do Estado ou bens do patrimônio disponível visando expressar assim que o vínculo do Estado com tais bens seriam semelhantes ao vínculo do particular com os bens de seu domínio privado, em especial pela facilidade de alienação. Tal entendimento pode causar equívocos. Os bens públicos têm uma nova conotação no Código Civil de 2002, embora sem alterar o regime jurídico a que se submetem. O art. 100 estabelece que os bens de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar. O art. 101 estabelece que os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as disposições legais.
Um dos critérios específicos para separar os bens públicos dos privados é o critério da afetação. Afetação e desafetação dizem respeito, respectivamente, à destinação ou retirada de um determinado bem da submissão ao interesse público. Pela afetação ocorre a destinação ao uso comum ou ao uso especial. Exemplo de afetação explícita por força legal está na destinação obrigatória e inalterável de espaços livres de uso comum, como as vias e praças, as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, em decorrência da obrigatoriedade de planejamento após a vigência do Estatuto da Cidade, por exemplo.
5 O REGIME JURÍDICO DOS BENS PÚBLICOS
Os bens públicos diferenciam-se dos bens privados em razão de características estabelecidas pelo regime jurídico de direito público. Um bem não é público em razão de sua natureza peculiar. Um bem é público em razão de uma qualificação legal, ou seja, de sua sujeição a um conjunto de normas jurídicas que vão nos dizer que estes bens têm características especiais em razão de que eles são o instrumento para a concretização dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Têm serventia voltada à concretização dos interesses primários da coletividade.
Qual a finalidade de se falar em regime jurídico? Segundo a doutrina tradicional significa que os bens públicos são impenhoráveis, inalienáveis e imprescritíveis. Alguns doutrinadores citam, ainda, a não oneração e a intangibilidade. Atualmente a finalidade de se estabelecer um regime próprio aos bens públicos é, segundo Justen Filho (2009, p. 903), protegê-los em razão de sua qualidade ou importância para a concretização dos fins que mencionamos acima. Isso significa que um bem público pode ter uma limitação em sua utilização por particulares.
É importante mencionar também que a doutrina tem falado em regime jurídico administrativo, alguns abordando a idéia de um regime específico, outros o vinculando ao regime jurídico de direito público, entendimento ao qual me filio.
Ao abordarmos a idéia de regime jurídico administrativo, afirmamos que a Administração Pública ocupa uma posição de superioridade em relação ao particular quando estiver presente numa relação jurídica. Isso para garantir a superioridade e o poder necessários à concretização dos interesses da sociedade.
Olhando de modo mais específico, podemos afirmar que a posição de superioridade que ocupa a Administração Pública numa relação jurídica de direito público estabelece que ela tem prerrogativas e deve observar sujeições. Por outro lado, vamos verificar que embora esta seja a regra, o ordenamento jurídico brasileiro prevê que a Administração Indireta é composta de pessoas jurídicas com personalidade de direito público e outras de direito privado.
Voltando o olhar a estas pessoas jurídicas, seremos obrigados a dizer que somente terão prerrogativas as pessoas de direito público, prerrogativas estas que são limitadas pelas sujeições. Já as pessoas de direito privado da Administração Indireta tem apenas sujeições, já que o Estado ao criar a pessoa jurídica abre mão das prerrogativas. Este entendimento está expresso no artigo 173 da Constituição da República que assim estabelece:
“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (…)
II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;
III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; (…)
§ 2º As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.” (grifei)
Do disposto no artigo citado, podemos verificar que a Constituição da República retira as prerrogativas do ente administrativo a ser criado e estabelece o dever de orientar-se pelos princípios da Administração Pública. Portanto, os entes privados criados pelo Estado estão em aparente igualdade com os particulares exceto quanto ao cuidado que deve ser observado com o patrimônio estatal. Este é o entendimento de José dos Santos Carvalho Filho (2009) quando se refere ao novo Código Civil:
“resultou superada a acirrada discussão em torno da natureza dos bens pertencentes a empresas públicas e sociedades de economia mista, que eram considerados bens públicos conforme a atividade nele exercida. Na verdade, nunca abonamos tal entendimento, visto que tais entidades têm personalidade jurídica de direito privado e, dessa maneira, seus bens só podem ser qualificados como bens privados.
A nova regra tem contorno claro, qualificando como bens privados os pertencentes a pessoas jurídicas de direito privado. Por conseguinte, os bens daquelas entidades, bem como os das fundações governamentais de direito privado, devem considerar-se efetivamente como bens privados. (…) Para nós, contudo, nem mesmo em sentido amplíssimo, como diz o autor. Trata-se de bens privados porque pessoas jurídicas privadas os seus titulares.”
Entretanto, embora o autor analise a categoria de bens públicos como todos os pertencentes às pessoas jurídicas de direito público, entendemos que este posicionamento é fundamental para o entendimento da categoria na época atual.
O entendimento de Carvalho Santos é importante para verificarmos o regime jurídico aplicável aos bens estatais e podermos afirmar que nem todos estão submetidos ao regime jurídico de direito público, que caracteriza o regime dos bens públicos como forma de dar garantia a eles, em decorrência da qual estará informada pela superioridade da Administração Pública.
O regime jurídico dos bens públicos, como o conjunto de preceitos básicos, princípios e normas, vão caracterizá-los e nortear sua gestão. Este regime jurídico compreende as seguintes características: a inalienabilidade, a impenhorabilidade, a imprescritibilidade, a impossibilidade de oneração e a intangibilidade. Destas cinco caracterísitcas, a doutrina tem atribuído as primeiras três aos bens públicos. Tais características têm como fundamento a sua destinação, necessária à consecução dos interesses coletivos não podendo, desta forma, ficar à disposição do administrador ou responderem pelos atos do Estado em detrimento dos interesses maiores da coletividade.
Analisando as características citadas acima, veremos que a inalienabilidade e a impossibilidade de oneração são verdadeiras sujeições, enquanto que as demais são prerrogativas. Em decorrência disso, estas três últimas, são características dos bens estatais públicos enquanto que as duas primeiras são características dos bens estatais, estejam submetidos ao regime jurídico de direito público ou privado.
Este parece ser o entendimento de Carvalho Filho (2009):
“diversamente do que grande parte da doutrina tem ensinado, sustentamos que não é a inalienabilidade que caracteriza os bens públicos, por isso que podem eles, mediante as condições da lei, ser alienados, mas sim a alienabilidade condicionada, ou seja, a possibilidade de alienação desde que sob as condições que a lei demandar. Desse modo, só haverá inalienabilidade como princípio se a natureza do bem não comportar alienação ou se a Constituição expressamente o determinar, como é o caso das terras devolutas necessárias à proteção dos ecossistemas naturais, previsto no art. 225, § 5º, da vigente Constituição”.
E realmente não pode ser entendido de outra forma. Quando se trata de alienação, forma de sujeição, os arts. 17 a 19 da Lei 8.666/93 (lei de licitações) estabelecem normas aplicáveis a todos os bens estatais. Entretanto quando se trata de prerrogativas – impenhorabilidade e imprescritibilidade –, a Constituição da República as estabelece. A imprescritibilidade, pela qual os imóveis públicos urbanos e rurais, indistintamente, são insuscetíveis de usucapião está expressa nos arts. 183, § 3º e 191, parágrafo único da CR/88 e também no art. 102 do CC/2002. A impenhorabilidade está prevista no art. 100 da CR/88, que institui o precatório.
De outro lado, o art. 225, § 5º da CR/88 estabelece a indisponíbilidade das terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais, o que vai caracterizar a inalienabilidade, impenhorabilidade e imprescritibilidade desses bens. Portanto, a Constituição da República estabelece prerrogativas e sujeição a um bem dominical, demonstrando que o bem é público em razão de sua natureza e não em decorrência de sua propriedade.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das concepções que procurei demonstrar acima, fica evidente e podemos concluir que o ordenamento jurídico pátrio não é concludente no sentido de estabelecer uma certeza acerca da definição dos bens públicos. Dependendo da interpretação que fizermos acerca dos bens públicos, teremos um entendimento que abrange ou não todos os bens estatais. Por outro lado, e este entendimento deixo de abordar no artigo, podemos enquadrar como públicos os bens de particulares que estejam afetados ao interesse da sociedade. Não significa, todavia, transferi-los ao Estado. Trata-se, apenas, de fazer uma análise de sua natureza e submetê-los ao regime jurídico de direito público. São os chamados bens públicos não estatais.
Todavia, não podemos permanecer advogando a tese de que os bens somente por serem estatais são bens públicos. Os bens pertencentes a pessoas jurídicas de direito privado estatais são bens privados. Considerá-los públicos é submetê-los ao regime da impenhorabilidade e imprescritibilidade, por exemplo. Neste estágio do Estado, época em que se clama por democracia e responsabilidade do Estado, temos que aperfeiçoar o sistema jurídico no sentido de, pelo menos, tentar apontar novas perspectivas para satisfazer os princípios fundamentais já estabelecidos na Constituição da República.
Assim, não nos resta outra alternativa que acenar para questões que realmente tenham sentido de aperfeiçoamento do Estado visando ao bem-estar da sociedade, no qual se concretize a cidadania e a dignidade do ser humano. Neste sentido, o bem público não é uma simples propriedade do Estado. É um mecanismo cuja natureza é instrínseca à própria natureza da sociedade. É um instrumento de garantia da cidadania.
Doutorando e Mestre em Educação nas Ciências Unijuí; Especialista em Direito Tributário Unisul; Graduado em Direito e Administração Unijuí; Professor do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí.
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