Breve nota acerca do controle jurisdicional do ato administrativo discricionário

Resumo: O presente trabalho tem por escopo perscrutar os limites da discricionariedade administrativa do Estado. Aborda a difícil identificação dos lindes da vinculação e da discricionariedade administrativa, utilizando, para esse fim, alguns parâmetros propostos pela doutrina, a exemplo dos princípios e do dever imposto ao administrador público de adotar sempre a melhor solução, sob a ótica do interesse público. Pretende, dessa forma, perquirir em quais situações é lícita a interferência do Poder Judiciário na atividade administrativa, e em quais outras lhe é vedada tal ingerência, por haver legítimo exercício da discricionariedade.

Palavras-Chave: Ato administrativo. Vinculação. Discricionariedade. Intervenção. Poder Judiciário.

Abstract: The scope of this paper is to find the limits of administrative discretion of the State. It addresses the difficult identification of the administrative discretion limits, using, for this purpose, some parameters proposed by the doctrine, such as the principles and the duty imposed on the public administrator to take the best solution from the perspective of the public interest. The aim, therefore, is to find out in which situations the interference of the judiciary in the administrative activity is lawful, and in which others he is prohibited to interfere, because there is a legitimate exercise of discretion.

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Keywords: Administrative act. Binding. Discretion. Intervention. Judiciary.

Sumário: Introdução. 1. Controle da Administração Pública. 1.1 Controle Jurisdicional. 2. Controle Jurisdicional do Ato Administrativo Discricionário. 2.1 Parâmetros do controle jurisdicional do ato administrativo discricionário. 2.1.1 O dever de adotar a melhor solução. 2.1.2 Discrição na norma e discrição no caso concreto. 2.1.3 Os princípios como parâmetros de controle. 2.1.3.1 Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Conclusão.

Introdução

A atividade estatal, destinada a gerir interesses de toda a coletividade, é levada a efeito por determinados agentes investidos em cargos, empregos e funções públicas, agindo em nome e à conta do Estado.

É consabido que a gestão da res publica apenas se faz possível com a concessão aos agentes públicos de determinados poderes, que, frise-se, são poderes instrumentais, conferidos tão somente para permitir o alcance das finalidades que eles devem perseguir, sendo, por isso, mais adequadamente chamados de deveres-poderes.

Não menos verdade é o fato de que, não raras vezes, o legislador não pode vislumbrar de antemão qual a melhor solução a ser adotada pelo administrador. Se puder, o ato será vinculado, não restando liberdade de escolha alguma a este. No primeiro caso, porém, terá que conferir ao gestor a competência para decidir, diante de duas ou mais possibilidades, aquela que melhor satisfaça a coletividade, o que não permite a conclusão, em hipótese alguma, de que ele possa fazer a escolha segundo sua vontade pessoal.

Como exerce função, o administrador está a serviço do interesse da sociedade e, portanto, adstrito sempre à consecução das finalidades coletivas que lhe são impostas.

Se o agente público extrapola essa margem de liberdade, ou age em desacordo com o interesse coletivo, é perfeitamente possível ao Poder Judiciário apreciar a atuação administrativa e determinar as medidas necessárias para sanar as irregularidades, malgrado haja posições divergentes a respeito dessa possibilidade.

Assim sendo, a discricionariedade não pode ser pretexto para o desvio de poder ou qualquer outra forma de uso indevido da coisa pública. Ela é, isto sim, uma técnica que permite a melhor gestão dos interesses públicos, fazendo-se absolutamente necessária em diversos casos.

1 Controle da Administração Pública

A Administração Pública, nunca é demais frisar, é inteiramente submissa à lei, expressão da vontade popular. Daí dizer-se que a atividade administrativa é infralegal; desenvolve-se sempre obedecendo à risca às disposições legais.

Não poderia ser diferente, pois o administrador é gestor da res publica, portanto, de coisa alheia, de forma que não pode dar a ela o destino que bem entenda, pois não lhe pertence, mas sim o destino que melhor atenda aos reclamos da sociedade, esta sim titular da coisa pública.

Os caminhos para melhor atender aos anseios do povo estão previstos na lei, elaborada por seus representantes eleitos. Eis o porquê do dever do Poder Público de prestar obediência irrestrita aos comandos legais.

Esta é, ademais, uma garantia dos cidadãos.

Isto se diz porque a atividade administrativa, não raras vezes, provoca impactos negativos na esfera jurídica dos particulares, cerceando-lhes certas liberdades, restringindo o exercício de direitos, impondo-lhes restrições e obrigações, etc. Essas intervenções administrativas nocivas aos interesses dos administrados apenas serão legítimas se previstas e autorizadas por lei – tem incidência, aqui, o princípio da legalidade.

Conclui-se, portanto, que tal princípio, na acepção ora tratada, constitui-se em importante garantia dos administrados contra abusos e arbitrariedades do Estado. No dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello: “O que deveras se pretendeu e se pretende com tal princípio, como é óbvio, foi e é, sobretudo, estabelecer em prol de todos os membros do corpo social uma proteção e uma garantia. Quis-se outorgar-lhes a certeza de que ato administrativo algum poderia impor limitação, prejuízo ou ônus aos cidadãos sem que tais cerceios ou gravames estivessem previamente autorizados em lei, e que ato administrativo algum poderia subtrair ou minimizar vantagens e benefícios que da lei resultariam para os cidadãos se esta fosse observada.” (grifos no original) (MELLO, 2006, p. 901-902).

Do exposto, percebe-se a necessidade de mecanismos que garantam o respeito da Administração aos direitos dos particulares – mecanismos de controle da atuação do Estado, portanto. Do contrário, mais freqüentes do que já são seriam os desmandos dos entes públicos ou daqueles que lhes façam as vezes.

1.1 Controle jurisdicional

Dentre as formas de controle da Administração Pública, sobressai o controle jurisdicional.

Primeiro, porque é o mais efetivo, podendo qualquer cidadão ou outros órgãos legitimados para a tutela coletiva ingressar em Juízo sempre que direitos subjetivos ou direitos coletivos lato sensu forem violados.

A faculdade de recurso ao Judiciário é imperativo constitucional, prevendo a Carta da República, no seu art. 5º, XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Nestes termos está previsto o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que impõe que qualquer lesão, ou mesmo ameaça de lesão, a direitos, individuais ou coletivos, podem ser objeto de apreciação do Judiciário. Evidentemente, daí não se excluem os ilícitos praticados pela Administração, que podem sofrer censura por parte dos Juízes e Tribunais.

A razão da possibilidade do controle jurisdicional da Administração é óbvia. O Poder Público deve obediência irrestrita às leis; logo, havendo violação destas por parte daquele, deve existir algum mecanismo que o obrigue a submeter-se à ordem jurídica.

Num Estado Democrático de Direito, como o nosso, o meio mais efetivo de fazer o Poder Público retornar aos lindes da legalidade – que antes abandonara – é pela interferência do Poder Judiciário, incumbido constitucionalmente de compor conflitos de interesses com caráter de definitividade e de submeter qualquer pessoa, mesmo os entes de direito público, contra a sua vontade, aos ditames legais. Prever a submissão da Administração às determinações judiciais não é senão garantir o respeito ao princípio da legalidade.

Daí porque afirma Celso Antônio Bandeira de Mello: “Sendo certo, então, que a legalidade não foi concebida para compor o organograma da Administração ou para exibir uma aparência de modernidade das instituições jurídico-administrativas de um País, mas, precisamente, para resguardar as pessoas contra os malefícios que lhes adviriam se inexistissem tais limitações à Administração, cumpre sacar disto pelo menos a mais óbvia das conclusões – qual seja: a de reconhecer proteção jurisdicional a quem seja agravado por ação ou omissão ilegal do Poder Público sempre que isto ocorra. (…) Com efeito, o princípio da legalidade valeria absolutamente nada, reduzindo-se a uma ficção rebarbativa, caso sua obediência dependesse tão-só da vontade do Poder Público ou, na melhor das hipóteses, de um eventual controle provocado ou suscitado por órgãos do próprio Estado ou de algum autor popular.” (MELLO, 2006, p. 902).

Assim, sempre que houver lesão a particular por conduta imputável à Administração, ou mesmo quando se constatar a ocorrência de irregularidades no trato com a coisa pública, poderão os interessados e legitimados propor ao Poder Judiciário as ações competentes para a cessação das impropriedades e reparação dos danos, pois é certo que a ordem constitucional não tolera desmandos na gestão da máquina estatal.

Com efeito, não raras vezes a Administração, diante de recursos apresentados por particulares visando à correção de ilegalidades – oportunidade em que deveria fazer cessar o desrespeito aos ditames legais, acaso ocorrente –, age de forma parcial, não prestando a tutela que deveria aos direitos subjetivos vulnerados por conduta sua.

Assim, quando causa danos ao particular, o Poder Público é quase sempre refratário em desfazê-los (ou ressarci-los), entendendo que o seu papel é defender a qualquer custo o interesse secundário do Estado; assim, prefere insistir na ilegalidade a ter que respeitar a lei e dar ao cidadão o que de direito lhe pertence. Esquece-se o Administrador que respeitar as leis e os direitos dos administrados é também atender ao interesse público, pois a sociedade não espera – e exige – do Estado outra coisa senão o estrito respeito à ordem jurídica.

Dessa forma, na quase totalidade dos casos, só é possível buscar a cessação de irregularidades e a reparação dos danos sofridos com o recurso ao Judiciário.

2 Do controle jurisdicional do ato administrativo discricionário

Acalorados debates desde há muito são travados derredor do presente tema.

Diversas são as opiniões a respeito da possibilidade da sindicabilidade jurisdicional do ato administrativo discricionário.

Há aqueles que não reconhecem tal possibilidade, argüindo em defesa de sua posição o princípio da separação de poderes, que não admite ingerência abusiva de um poder sobre as atribuições do outro. Alegam que compete ao Executivo – e aos demais poderes, quando no exercício de função administrativa – exercer atividade administrativa, na qual se inclui a possibilidade da prática de atos discricionários.

Em outras palavras, entendem que a análise dos elementos discricionários do ato administrativo é de competência exclusiva dos administradores públicos discriminados em lei, e que, por tal razão, não é dado ao Judiciário proceder à análise ou juízo de valor acerca de tais elementos.

Atualmente, todavia, esse entendimento vem sofrendo importantes mitigações, e cada vez mais se caminha para uma posição mais consentânea com a idéia de Estado Democrático de Direito, onde é imperativa a admissibilidade de recurso ao Poder Judiciário sempre que houver lesão ou ameaça de lesão a direitos dos administrados.

Nessa linha de intelecção, sendo certo que direitos subjetivos ou coletivos podem ser lesados, e não raras vezes são, pelo exercício irregular da discricionariedade administrativa, não se pode tolher do acesso ao Judiciário aqueles que se sentirem ofendidos.

Ademais, a discricionariedade não é uma carta branca, uma autorização legal ao gestor público para que adote a solução que melhor lhe aprouver.

A lei conferiu a determinados atos administrativos o atributo da discricionariedade precisamente porque, diante da realidade cambiante, da dinamicidade das situações com as quais pode lidar o gestor, não foi possível, a priori, determinar a alternativa ideal.

Se for previsível a solução que melhor atenda às necessidades públicas, por óbvio a lei impô-la-á, porquanto não tem outro objetivo que não o de atender ao povo – verdadeiro titular do poder – da melhor forma possível. Nesse sentido, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello: “Deveras, não teria sentido que a lei, podendo fixar uma solução por ela reputada ótima para atender o interesse público, e uma solução apenas sofrível ou relativamente ruim, fosse indiferente perante estas alternativas. É de presumir que, não sendo a lei um ato meramente aleatório, só pode pretender, tanto nos casos de vinculação, quanto nos casos de discrição, que a conduta do administrador atenda excelentemente, à perfeição, a finalidade que a animou. Em outras palavras, a lei só quer aquele específico ato que venha a calhar à fiveleta para o atendimento do interesse público. Tanto faz se trate de vinculação, quanto de discrição. O comando da norma sempre propõe isto. Se o comando da norma sempre propõe isto e se uma norma é uma imposição, o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei.” (grifos originais) (MELLO, 2008, p. 32-33).

Os legisladores, quando lançam mão da técnica da discricionariedade, o fazem porque reconhecem não ser possível identificar antecipadamente a alternativa ideal. Sabem eles que o gestor público, este sim, diante do caso concreto, possuirá elementos que lhe permitirão chegar ao resultado ótimo; precisamente por essa razão conferem a ele a competência discricionária.

Significa dizer que aquele administrador a quem foi confiada a discricionariedade deve necessariamente buscar a melhor forma de satisfazer o titular do poder, o povo, donde se conclui que, podendo ele identificar tal forma, tal opção, deve colocá-la em execução. Não lhe é dada, nesse caso, possibilidade de escolha; ocorre uma vinculação no caso concreto, idéia esta desenvolvida com muita propriedade por Celso Antônio Bandeira de Mello, que aduz: “A discrição, como se espera a breve trecho comprovar, é a mais completa prova de que a lei sempre impõe o comportamento ótimo. Procurar-se-á demonstrar que quando a lei regula discricionariamente uma dada situação, ela o faz deste modo exatamente porque não aceita do administrador outra conduta que não seja aquela capaz de satisfazer excelentemente a finalidade legal.” (MELLO, 2008, p. 32).

Abaixo tais idéias serão expostas com mais vagar.

2.1. Parêmetros do controle jurisdicional do ato administrativo discricionário

Diversos são os parâmetros que servem ao exercício da sindicabilidade judicial dos atos administrativos praticados no exercício da competência discricionária da Administração. Noutras palavras, variados são os mecanismos dos quais pode o Judiciário lançar mão para proceder a uma análise cuidadosa dos atos ditos discricionários.

Grande passo foi dado na direção da possibilidade do controle jurisdicional com a eclosão do estudo dos princípios de direito, que permeiam todo o ordenamento jurídico, com o auxílio dos quais se percebeu ser possível – e cada vez mais necessária – a sindicabilidade da discrição administrativa. Os princípios mostram-se, então, mecanismos sobremodo importantes para o controle da discrição da Administração Pública. Nesse sentido, afirma com muita propriedade Germana de Oliveira Moraes que “Há uma área de discricionariedade, controlável jurisdicionalmente, à luz dos princípios jurídicos, e outra não controlável, quer à luz das regras, quer à luz dos princípios – o mérito do ato administrativo” (MORAES, 2004, p. 44).

Em companhia dos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, dentre tantos outros, outras ferramentas se mostram úteis aos magistrados para a promoção do controle dos atos administrativos, em especial daqueles que permitem ao gestor público uma certa margem de “liberdade”, sendo algumas delas exemplificativamente tratadas nos sub-tópicos que seguem.

2.1.1 O dever de adotar a melhor solução

Este é o cerne de toda a questão da discricionariedade administrativa. É a idéia central, a verdadeira razão de ser da discrição.

A administração pública é a atividade de gerir bens e interesses de terceiros. O administrador não é dono da coisa pública, é tão somente incumbido de gerenciá-la, e a lei é o seu grande norte.

Com efeito, as leis, elaboradas por representantes eleitos pelo povo, é que estabelecem os contornos de todo o desenrolar da atividade administrativa, de sorte que o gestor público apenas segue seus comandos, não dispondo de liberdade para adotar as soluções que lhe parecem mais simpáticas segundo seus conceitos pessoais. Pelo contrário, ele deve seguir à risca os comandos normativos, que, por sua vez, irão conter a previsão da solução mais satisfatória aos reclamos da comunidade, pois as leis não perseguem resultados inconvenientes, mas sim os ótimos.

De fato, se o legislador puder prever, de antemão, a decisão ótima, a que se mostre mais capaz de atender as aspirações do povo, certamente inserirá esta previsão na norma, obrigando o administrador a dela lançar mão.

Porém, dada a vertiginosidade com que muda a sociedade, dada a dinâmica dos fatos sociais, que sofrem constantes modificações, e considerando a complexidade da realidade com que se depara o agente público, extremamente difícil de ser apreendida a priori, quando da elaboração das leis, tornou-se comum, e mesmo necessária, a utilização da técnica da discricionariedade.

Quando se trata de competência discricionária, a lei atribui certa margem de “liberdade” ou de decisão ao gestor, para que ele, diante de cada caso concreto, persiga a solução ideal e, muitas vezes, somente neste momento, na situação concreta, é possível perceber essa solução.

Assim sendo, forçoso concluir que, quando a lei regula discricionariamente uma determinada situação, o faz precisamente para que o agente público incumbido da prática do ato persiga a solução ideal, a que melhor contente o interesse público, ou seja, a discricionariedade é verdadeira prova de que sempre o melhor resultado deve ser visado.

Logo, a outra conclusão não se pode chegar que não aquela segundo a qual, podendo o administrador identificar, por qualquer modo, a alternativa ideal, deve levá-la a efeito. Seria ilógico pensar diferente, pois nada autoriza o agente público a dispor da coisa pública ou dar a ela o destino que melhor lhe aprouver segundo sua vontade pessoal, donde se dessume que, sendo possível vislumbrar a alternativa ótima a ser implementada, ela torna-se obrigatória ao administrador, mesmo porque teria sido necessariamente prevista no texto legal se o legislador dela tivesse conhecimento.

É essa a ideia desenvolvida por Celso Antônio Bandeira de Mello, ao afirmar que “o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei” (grifos no original) (MELLO, 2008, p. 33).

A razão de ser da Administração Pública e, em última análise, do Estado, é exatamente a busca do bem comum, da satisfação dos interesses coletivos, a persecução de finalidades públicas. Dessa forma, o melhor resultado é imposto ao gestor, se dele tiver conhecimento, e não a ele facultado.

Assim, mesmo que a lei que regula a prática de determinado ato administrativo discricionário, em abstrato, preveja a faculdade de agir ou não agir, deverá necessariamente haver um facere por parte da Administração se as peculiaridades do caso concreto mostrarem ser esta a conduta ideal. Se dantes, por outro lado, na abstração do texto normativo, o ato comportava a escolha da ocasião de sua prática, esta liberdade não mais será atribuída ao agente público se a realidade fática acusar o exato momento de executá-lo. O mesmo se diga quando a lei confere margem de escolha quanto à medida idônea diante de determinada situação: se o caso concreto permitir chegar seguramente à conclusão de que o objeto (ou conteúdo) ideal para a ocasião é “A”, e não “B”, aquela alternativa deve ser posta em execução.

2.1.2 Discrição na norma e discrição no caso concreto

Neste sub-tópico será desenvolvida idéia muito próxima daquela vertida no item anterior, porém, sob uma diferente perspectiva.

Celso Antônio Bandeira de Mello desenvolve com maestria a noção tantas vezes repetida no presente trabalho, de fundamental importância para a compreensão e aceitação do controle judicial da discrição administrativa: “Com efeito, se a lei comporta a possibilidade de soluções diferentes, só pode ser porque pretende que se dê uma certa solução para um dado tipo de casos e outra solução outra espécie de casos, de modo a que sempre seja adotada a decisão pertinente, adequada à fisionomia própria de cada situação, tendo em vista atender a finalidade que inspirou a regra de direito aplicanda.” (grifos originais) (MELLO, 2008, p. 36).

É bastante evidente, portanto, e remonta à própria natureza da discricionariedade, que a norma atributiva de discrição ao administrador prevê, em seu bojo, mais de uma solução passível de ser adotada, o que implica reconhecer que uma mesma regra discricionária, aplicada a situações diferentes, pode ensejar soluções diversas, sem que haja qualquer ilegalidade ou lesão à isonomia. Pelo contrário, foi exatamente esta a intenção do legislador quando criou aquela espécie de norma.

A razão disto, como tantas vezes frisado, e muito bem sublinhado por Celso Antônio Bandeira de Mello, é conferir ao administrador liberdade para escolher a solução pertinente, ideal para aquele caso, a que da melhor forma atinja as finalidades públicas. Sem o uso da técnica da discricionariedade, o gestor ficaria engessado, preso a um resultado que muitas vezes não seria o mais conveniente.

Ocorre que, e este trecho merece especial atenção, a previsão na norma, em abstrato, de margem discricionária não significa necessariamente que tal liberdade remanescerá no caso concreto.

Pelo contrário, malgrado tenha o texto legal previsto, em abstrato, ampla liberdade ao agente público incumbido da prática do ato, pode acontecer que não reste a ele qualquer margem de escolha diante do caso concreto, porquanto, diante dos contornos e das peculiaridades deste, tornou-se possível apontar a alternativa ideal.

Foi com base nesse raciocínio que Celso Antônio Bandeira de Mello chegou ao brilhante arremate de que a discrição na norma é diferente da discrição no caso concreto, e o explanou nas seguintes palavras: “(…) em despeito da discrição presumida na regra de direito, se o administrador houver praticado ato discrepante do único cabível, ou se tiver eleito algum seguramente impróprio ante o confronto com a finalidade da norma, o Judiciário deverá prestar a adequada revisão jurisdicional, porquanto, em rigor, a Administração terá desbordado da esfera discricionária, já que esta, no plano das relações jurídicas, só existe perante o caso concreto. Na regra de direito ela está prevista como uma possibilidade – não como uma certeza. A “admissão” de discricionariedade no plano da norma é condição necessária, mas não suficiente para que ocorra in concreto. Sua previsão na “estática” do Direito, não lhe assegura presença na “dinâmica” do Direito.” (grifos no original) (MELLO, 2008, p. 37).

Essa conclusão é da mais elevada importância, é absolutamente fundamental, é mesmo uma decorrência lógica do sistema normativo.

Isso levou a uma redefinição do conceito de mérito do ato administrativo, tradicionalmente entendido como o motivo e o objeto do ato e caracterizado pela não-sindicabilidade pelo Poder Judiciário. Celso Antônio Bandeira de Mello continuou a admitir a intangibilidade do mérito administrativo pelos magistrados, restringindo consideravelmente, todavia, aquela noção de mérito.

Efetivamente, sob o influxo das idéias aqui vertidas, o citado mestre concluiu pela ocorrência de um estreitamento do conceito de mérito administrativo, ampliando, por conseguinte, a possibilidade do exercício do controle judicial sobre os atos administrativos, porquanto aquela margem de liberdade conferida ao agente público em abstrato, no texto legal, pode não remanescer no caso concreto. Confira-se, a respeito, as palavras do aludido autor: “Mérito é o campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada.” (grifos no original) (MELLO, 2008, p. 38).

Logo, mérito é a parcela de liberdade de escolha que remanesce ao administrador no caso concreto, e não aquela prevista abstratamente na lei.

Dessa forma, no entender de Celso Antônio Bandeira de Mello, é vedado ao Judiciário apreciar aqueles atos administrativos praticados no exercício de discrição prevista em lei, nos casos em que, perante a situação concreta, ainda reste, ao menos, duas soluções possíveis, não sendo factível apontar qual delas melhor satisfaz os anseios da coletividade, pois aqui existirá mérito administrativo, de acordo com o conceito supramencionado.

Entrementes, sempre que, ante a realidade fática, for tolhida a liberdade prevista em lei, não haverá falar em mérito do ato administrativo ou apreciação discricionária do fato, mas sim em vinculação, porquanto o agente do Estado deverá obrigatoriamente adotar aquela solução mais conveniente ao interesse coletivo, única possível e admissível naquela situação específica. A execução de qualquer outra alternativa seria inquinada pelo vício da ilegalidade, violando princípios basilares do Direito Administrativo, dentre os quais a indisponibilidade do interesse público e a impessoalidade.

Tratando-se de ilegalidade, como logo acima pontuado, é inevitável o arremate de que, em casos tais, é plena a possibilidade de cognição jurisdicional sobre os atos administrativos, devendo os juízes e tribunais anulá-los, modificá-los e até determinar a prática de outros em substituição àqueles, ou para sanar omissão administrativa.

Assim, toda vez que, a despeito da discricionariedade prevista abstratamente, não sobejar margem de liberdade ao gestor no caso concreto, tratar-se-á de vinculação. Inexiste, in casu, mérito do ato administrado, porquanto todo ele é vinculado, razão pela qual é pleno o controle exercido pelo Poder Judiciário, pois, se solução ilegal – como acima dito – foi implementada, não poderia subtrair-se ao controle judicial.

Seria imenso absurdo permitir que ato visivelmente ilícito, visto que não obediente à finalidade da norma e, logo, ao interesse público, pudesse vingar e produzir efeitos jurídicos sob o argumento de que o Poder Judiciário não poderia intervir na atividade administrativa.

Ante todo o exposto neste sub-tópico, percebe-se que as possibilidades de controle jurisdicional dos atos administrativos discricionários foram alargadas, uma vez que o mérito do ato, considerado por muitos como intangível por agentes externos à Administração, teve seus contornos redefinidos e estreitados, havendo, em conseqüência disto, maior espaço para o controle judicial da atuação discricionária do Estado.

2.1.3 Os princípios como parâmetros de controle

Os princípios constituem um dos mais importantes instrumentos de controle da discricionariedade administrativa.

Os administradores públicos, por evidente, devem respeito e obediência à Constituição, às leis e aos princípios, sejam estes últimos positivados ou não, quer se trate de competência vinculada ou discricionária. Em qualquer caso, portanto, deve a atividade administrativa pautar-se pelos ditames da legalidade e pelos comandos normativos dos princípios, sendo legítima a ingerência judicial sempre que houver descumprimento de tais deveres.

A utilização das regras para o controle da discrição administrativa é sobremodo difícil, porque são elas próprias, as regras, que atribuem “liberdade” ao agente público para a tomada de decisões, e o fazem especificamente porque não se mostra possível ou conveniente, a princípio, apontar uma única solução. Logo, pela utilização das prescrições das regras relativamente pouco se pode fazer no que concerne ao controle da discricionariedade.

O mesmo não se pode dizer quanto aos princípios, que são comandos mais gerais e com maior grau de abstração, veiculando valores ou diretrizes, o que permite sua aplicação à generalidade dos fatos jurídicos, em especial aos fatos jurídico-administrativos, ainda que se trate do exercício de competência administrativa discricionária. No dizer de Robert Alexy, “Segundo a definição padrão da teoria dos princípios, princípios são normas que ordenam que algo seja realizado em uma medida tão alta quanto possível relativamente a possibilidades fáticas ou jurídicas. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização.” (ALEXY, 2007, p. 64).

Assim, os postulados ou princípios são um norte a ser seguido pelos agentes do Estado, que devem buscar neles as balizas de sua atividade, bem como a forma correta de gerir a coisa pública, sendo indiferente que a atuação administrativa seja realizada no exercício de competência vinculada ou discricionária; sempre e sempre, em qualquer caso, deverá estrita obediência aos princípios que permeiam nosso ordenamento jurídico. Como mandamentos de otimização, os postulados impõem sempre a busca do melhor resultado, da melhor forma de atender o interesse público.

Germana de Oliveira Moraes, ao tratar da vinculação do ato administrativo e dos princípios, afirma o seguinte: “Nota-se, em sua redefinição teórica das categorias da vinculação e da discricionariedade, que o conceito de vinculação ultrapassou os limites da legalidade, no sentido de conformidade com as regras jurídicas, para abranger também a compatibilidade com a principiologia constitucional, para além do princípio da legalidade, pois assevera que o administrador jamais desfruta de liberdade legítima e lícita para agir em desvinculação com os princípios constitucionais do sistema.” (MORAES, 2004, p. 42).

Não são vinculados apenas aqueles atos em que a lei estabelece com rigor todos os elementos e condições para sua prática. Também no caso em que, à luz dos princípios do ordenamento jurídico, em especial aqueles insculpidos na Carta Magna, seja possível prever qual a alternativa mais conveniente ao interesse público, haverá vinculação. Nesse sentido, afirma Odete Medauar: “Hoje nem o agente administrativo na sua atividade nem o magistrado, nas ações atinentes ao controle jurisdicional, podem deixar de lado os princípios norteadores do Direito Administrativo e da Administração, incidindo estes, por certo, em âmbito outrora apontado como integrante da esfera discricionária.” (MEDAUAR, 2005, p. 84).

Assim é que Germana de Oliveira Moraes afirma: “A constitucionalização desses princípios da Administração Pública e dos princípios gerais do Direito gerou para o Poder Judiciário a possibilidade de verificar além da conformidade dos atos administrativos com a lei, ao exercer o controle de seus aspectos vinculados, à luz do princípio da legalidade, também aspectos não vinculados desses atos, em decorrência dos demais princípios constitucionais da Administração Pública, da publicidade, da impessoalidade e de moralidade, do princípio constitucional da igualdade e dos princípios gerais da razoabilidade e da proporcionalidade.” (MORAES, 2004, p. 112).

Percebe-se, assim, que a correta utilização dos princípios possibilita um controle muito mais amplo da discrição administrativa, não se adscrevendo apenas aos elementos vinculados dos atos, estendendo-se ao que se convencionou chamar de mérito do ato administrativo, sem que haja, com isso, ingerência indevida de um Poder sobre outro.

Os atos administrativos devem guardar relação de compatibilidade e obediência àqueles valores que regem o ordenamento jurídico, e estes conferem aos magistrados uma maior possibilidade de controle da atuação dos administradores, permitindo que a atividade jurisdicional possa proceder a uma análise mais ampla e criteriosa, não restrita às rígidas amarras das leis formais, podendo ir mais longe, verificando o respeito dos atos administrativos aos valores que constituem o fulcro do sistema jurídico.

Em suma, ainda que a lei atribua discrição ao agente público, a lesão aos princípios é razão bastante para determinar a revisão da atuação administrativa.

2.1.3.1   Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade

Os princípios da proporcionalidade e razoabilidade talvez sejam os mais importantes quando se fala em controle da atuação discricionária do Estado.

Difícil definir com exatidão os contornos de tais princípios, mesmo porque há significativo dissenso doutrinário a respeito do tema, chegando alguns ao ponto de confundi-los.

Foge ao âmbito deste trabalho a delimitação dos conceitos de tais postulados, ou uma análise mais percuciente acerca dos mesmos. O que importa para a consecução de nosso objetivo é ter uma noção de ambos, para que se possa, dessa forma, utilizá-los como instrumento para o controle judicial da discrição administrativa.

A proporcionalidade não consta expressamente do nosso texto constitucional, mas, não obstante, pode ser tido como princípio de direito positivo, pois é um postulado que existe de forma difusa, esparsa, dispersa na nossa Carta Magna e mesmo nas demais normas do ordenamento jurídico. Afirma Robert Alexy que o “princípio da proporcionalidade compõe-se de três princípios parciais: dos princípios da idoneidade, da necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito” (ALEXY, 2007, p. 110).

Dessarte, o ato administrativo deve ser adequado (idôneo) ao alcance da finalidade para ele abstratamente prevista, necessário para atingi-la – ou seja, é indispensável a sua prática, pois não há outra forma ou outra espécie de ato mais adequados à consecução daquela finalidade pública -, devendo ser, ainda, proporcional em sentido estrito, quer dizer, o grau de benefício que será obtido com aquela específica atuação administrativa deverá ser tal que compense eventual sacrifício de direitos de terceiros ou do próprio Estado-Administração que irá ocorrer com a sua execução.

Se assim não for, é indubitavelmente possível que os órgãos do Poder Judiciário corrijam a atuação ilegal, mesmo se ocorrente, in casu, o exercício da competência discricionária. Com efeito, não se poderia tolerar que o agente público, sob o argumento de exercer a discrição administrativa que lhe foi atribuída, expedisse ato administrativo flagrantemente inadequado ao cumprimento de determinada finalidade, ou que não fosse necessário, porquanto o mesmo objetivo poderia ser alcançado com a prática de um outro ato mais conveniente, ou ainda que causasse mais prejuízos do que benefícios. Se isto se der, é evidente que o Judiciário poderá ser acionado para corrigir a ilicitude.

A respeito do tema, afirma Germana de Oliveira Moraes: “Os parâmetros de moralidade, proporcionalidade e razoabilidade, ora consagrados como princípios constitucionais, no Direito Brasileiro, antes componentes do mérito do ato administrativo, transitaram para o domínio da juridicidade, ou legalidade em sentido amplo.” (MORAES, 2004, p. 50).

O princípio da razoabilidade, por seu turno, pode ser entendido por bom senso aplicado ao Direito, ou ainda associado à idéia de justiça, a um agir razoável, à equidade e à justa razão.

Para muitos, significa a razoabilidade mesmo uma valoração jurídica de justiça, ou, noutras palavras, “a justeza da aplicação da norma jurídica” (TOURINHO, 2006, p. 96). Percebe-se, de logo, a envergadura deste princípio, muitas vezes associado à própria idéia de justiça e de correta aplicação das normas jurídicas, harmonizando os conflitos de interesses. Administrar respeitando o princípio sub examine significa aplicar as leis de forma escorreita, com bom senso e dentro dos limites do socialmente aceitável.

Razoabilidade comporta, também, a idéia de finalidade, pois não se pode sequer cogitar em defender a idéia de que o administrador que agiu buscando interesses escusos atuou de forma razoável.

Humberto Ávila entende o princípio em questão sob diversas acepções. Primeiramente, vincula-o à eqüidade, afirmando que na aplicação das normas jurídicas deve-se ter sempre em mente aquilo que normalmente acontece, e não as hipóteses insólitas, ou seja, devem ser privilegiadas aquelas interpretações consentâneas com o que corriqueiramente se verifica (ÁVILA, 2006, p. 139-146).

Entende o supracitado mestre, também, que a razoabilidade traz consigo uma idéia de congruência, ou seja, deve a aplicação da norma guardar compatibilidade com os fatos, sendo necessária a existência de um suporte empírico para a execução do comando legal. Cita o exemplo de uma lei estadual que determinou o pagamento de adicional de 1/3 de férias para inativos, considerada inconstitucional por ser irrazoável, tendo em vista que inativos não gozam de férias.

Conclui Humberto Ávila, por fim, que “a razoabilidade também exige uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona” (ÁVILA, 2006, p. 145).

Enfim, o postulado em questão possui contornos bastante amplos. Em respeito a ele, deve o agente público agir atendendo à “expectativa de comportamento normal do agente público, semelhante ao do homem comum, sincero, honesto e leal, em quem se possa confiar e consentâneo com os valores sociais daquele momento histórico” (MORAES, 2004, p. 130). Deve atuar de acordo com os padrões socialmente aceitos, com a idéia de justiça, de moralidade, boa-fé, bom senso, enfim, deve pautar sua conduta de acordo com aquilo que razoavelmente se espera dela.

O administrador, evidentemente, deve atuar a todo tempo de forma obediente aos mandamentos da razoabilidade. Se assim não age, mesmo no exercício de competência discricionária, é lícita a intervenção do Judiciário para que corrija as ilicitudes.

A título de exemplo, figuremos a hipótese de determinada lei atribuir a um certo servidor competência para decidir discricionariamente sobre a punição a ser aplicada a um colega seu após término de regular processo administrativo disciplinar. Se com as apurações ficar demonstrado que a irregularidade foi mínima, possuindo a conduta baixíssimo grau de lesividade e sendo diminuto o prejuízo para a Administração, não é lícito àquela autoridade, por óbvio, aplicar a penalidade de demissão ou suspensão por longo prazo. Deve, isto sim, apenar o servidor faltoso de forma razoável, aplicando-lhe punição proporcional à irregularidade cometida, não podendo ser negado a este a possibilidade de recorrer ao Judiciário para rever a sanção imposta se violada aquela relação de proporcionalidade entre falta e pena.

Conclusão

Percebe-se, da análise das linhas acima, que limites cada vez mais estreitos foram impostos ao exercício da discricionariedade administrativa, visando, com isso, não ao engessamento da coisa pública e a ampliação das dificuldades para o seu gerenciamento, mas sim o respeito aos princípios regentes da Administração Pública, tornando mais escorreita a atividade desenvolvida pelos gestores públicos, majorando e melhorando a consecução das finalidades coletivas.

Proibir a análise e a correção dos atos discricionários pelo Poder Judiciário é simplesmente permitir que o administrador imprima sua vontade pessoal à gestão da Administração Pública, pois, se a discrição é conferida exatamente para que se persiga a melhor solução para a coletividade, mas, nada obstante, são os magistrados impedidos de verificar se esse inarredável dever foi cumprido, ou seja, se o gestor público buscou contemplar da maneira mais adequada os interesses públicos, isto equivale simplesmente à completa entrega da coisa pública ao particular.

Efetivamente, de que vale obrigar os administradores a perseguir a melhor solução, se, em caso de desobediência, nada pode ser feito para sanar a irregularidade? Como tolher do Judiciário, a quem compete aplicar o direito ao caso concreto e fazer cessar as violações a direitos, a possibilidade de corrigir tão graves irregularidades contra toda a sociedade, como são aquelas atinentes ao uso indevido da discricionariedade administrativa?

A discricionariedade, em verdade, como ficou acima demonstrado, é uma técnica para que o agente público, diante das circunstâncias que só ele, no caso concreto, pode conhecer, persiga e execute a melhor solução para o interesse público, e tal técnica só se aplica nas hipóteses em que ao legislador não se afigura possível tomar ciência dos detalhes e das peculiaridades da situação concreta. Daí, logicamente, não se pode extrair a conclusão de que o agente a quem foi conferida a competência discricionária pode optar pela alternativa que bem entenda, segundo seu querer pessoal, dentre aquelas possíveis, mas sim, como é evidente, apenas por aquela mais satisfatória aos anseios da coletividade. Se assim não for, haverá ilicitude e, destarte, caberá intervenção jurisdicional para a correção do ato administrativo, sua anulação ou mesmo substituição por outro ato diretamente pelo Judiciário.

Diversas são as formas ou ferramentas de que se podem valer os juízes para o controle da discricionariedade, sejam os princípios específicos da Administração Pública ou os postulados gerais que regem todo o ordenamento jurídico, seja o dever de adotar a melhor solução, a finalidade do ato, enfim, vários são os mecanismos postos ao alcance e utilização dos magistrados.

No caso concreto, os juízes irão definir se houve extrapolação dos limites da competência discricionária. Apenas aí, na situação real, é viável fazer com segurança um juízo acerca da legitimidade ou não do uso da discrição.

Nesse sentido, brilhante a conclusão de Celso Antônio Bandeira de Mello, quando afirmou que discrição na norma não significa discrição no caso concreto. A lei pode atribuir competência discricionária a algum agente, mas, no caso concreto, esta pode não remanescer, porquanto passou a ser possível a identificação da solução ótima.

Em que pese o fato de defendermos arduamente um controle cada vez mais amplo da discrição administrativa pelo Judiciário, abarcando um grande percentual dos atos exarados pela Administração, pensamos que, em determinados casos, seria vedada a ingerência dos magistrados.

Como exemplos, pensamos nos atos de nomeação de Ministros de Estado ou de Embaixadores – para aqueles que os consideram atos administrativos em sentido estrito –, de forte conteúdo político. Isto porque ao Presidente da República é conferido um mandato para que possa imprimir à Administração a sua diretriz política, e a nomeação dos seus auxiliares imediatos é parte disto, não sendo razoável permitir que os juízes decidam se o cidadão “A” é mais indicado para ocupar a pasta da Fazenda do que o cidadão “B”.

De qualquer forma, é bastante complicado estabelecer, de antemão, um rol dos atos que não comportariam censura pelo Judiciário; apenas no caso concreto, com a ajuda do bom senso, será possível identificá-los.

Do mesmo modo, quando não for objetivamente possível, mesmo com a utilização de todos os instrumentos postos à disposição do intérprete, apontar a alternativa mais adequada dentre aquelas permitidas pela lei atributiva de discricionariedade, significa que ocorre em concreto a discrição administrativa, de forma que só ao administrador é dado fazer a opção, pois a ele foi conferida competência discricionária.

Não se pode, assim, pretender vedar ou limitar o controle jurisdicional da atuação discricionária do Estado, pois, nos casos acima tratados, há ilicitude, e o ordenamento jurídico não pode dar abrigo a práticas ilegais dos administradores.


Referências
ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
MEDAUAR, Odete. Parâmetros de Controle da Discricionariedade. In: GARCIA, Emerson (Coord.). Discricionariedade Administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 21 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
_____. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. 2 ed. São Paulo: Dialética, 2004.
TOURINHO, Rita. Discricionariedade Administrativa: ação de improbidade & controle principiológico. 1 ed. Curitiba: Juruá, 2006.


Informações Sobre o Autor

Luiz Eduardo Galvão Machado Cardoso

Procurador do Banco Central do Brasil. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia


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Equipe Âmbito Jurídico

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