O século passado legou ao presente a clara marca da insegurança. Foi a era dos extremos, cem anos densos em acontecimentos sociais. Houve duas Grandes Guerras e outros inúmeros conflitos armados, que se arrastam até hoje. Após o fim da cisão do mundo em dois grandes grupos de Estados (orientados pelo capitalismo e pelo socialismo), seguiu-se a formação de diversos blocos econômicos, em que se conciliam, inclusive, antigos adversários.
A comunicação revolucionou-se. Surgiram a internet e outros meios, que reduziram as distâncias geográficas e incrementaram as relações civis e empresariais entre pessoas de Estados distintos.
O direito também se transformou. Lembre-se, por exemplo, da virada hermenêutica do século XX, da multiplicação dos microssistemas legislativos e da constitucionalização dos direitos de terceira e até de quarta geração.
No campo das organizações empresariais, nasceram novas formas de contrato, como a franquia, o know-how, a agência e a joint venture. Criaram-se novos arranjos societários e a governança corporativa animou as empresas na transição dos milênios.
Especialmente no Brasil, o Direito Comercial mostrou-se extremamente instável na última década. Houve sucessivas alterações da legislação de sociedades por ações. O Código Civil de 2002, que contemplou expressamente a teoria da empresa, trouxe significativas mudanças no âmbito do direito societário. Substituiu a antiga dicotomia entre sociedades comerciais e civis pela distinção entre empresárias e simples. Reformulou os tipos societários existentes, principalmente o da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, que passou a ser chamada apenas de sociedade limitada.
Além disso, percebe-se um progressivo esvaziamento do princípio da autonomia da pessoa jurídica, em virtude de decisões judiciais que vêem na teoria da desconsideração a panacéia de todas as questões patrimoniais referentes às sociedades, principalmente as limitadas.
Diante dessa crise, que não é exclusiva do Brasil, mas da sociedade globalizada, a doutrina busca soluções alternativas. Conforme assinala o argentino Efraín H. Richard, hoje é necessário o retorno ao coração do velho Direito Comercial, verbis:
“Voltar àquilo que nós chamamos de ‘velho coração do direito comercial’, sempre renovado, num duplo esforço: um direito substancial mais simples, configurando o que chamamos de ‘economia do direito’, com menos normas mas mais efetivas, deixando as condutas à autonomia da vontade enquanto não infrinjam a ordem social pretendida, e, quando se mostrem desvios ou a necessidade de regulação, dispor de técnicas normativas mais que perfeitas. Ao mesmo tempo, uma justiça imediata, ou pelo menos mais eficiente (…).”[1]
Nomeadamente quanto à questão societária, no direito estrangeiro, merece registro a solução encontrada pela França por meio da Sociedade por Ações Simplificada (SAS), que, na visão de alguns doutrinadores,[2] significou um big bang das sociedades comerciais daquele país.
Trata-se de tipo societário previsto na Lei n. 94-1, de 03 de janeiro de 1994, cujos sócios, na vocação original, podiam ser apenas pessoas jurídicas, o que lhe rendeu, inicialmente, o título de “sociedade de sociedades”.[3] Entretanto, em virtude de seu sucesso, seu domínio foi amplamente liberado pela Lei n. 99-586, de 12 de julho de 1999, que passou a admitir sua constituição, com pessoas naturais, inclusive na forma unipessoal.
A nova fattispecie societária ostenta um regime legal extremamente simples, com cerca de 20 dispositivos (arts. 262-1 a 262-21 da Lei n. 66-537, de 24 de julho de 1966, hoje vertidos para os arts. L.227-1 a L.227-20 do Nouveau Code de Commerce), remetendo quase tudo ao exercício da autonomia da vontade das partes.
A respeito, Jean Stoufflet assinala que a SAS marca a entrada definitiva da autonomia da vontade e do contrato no direito francês das sociedades por ações, que, desde os anos 1940, concedia-lhes uma posição restrita.[4]
Essa liberdade de conformação da estrutura societária, somada à limitação qualitativa dos sócios no texto original da lei – apenas pessoas jurídicas -, descortinou o arcabouço adequado a albergar os grupos de sociedades. Mais tarde, contudo, abriu-se o campo da liberdade contratual ao demais atores do cenário econômico. Hoje, entre outros, temas como deliberações sociais, administração e representação social, alienabilidade de ações, hipóteses de dissolução e de retirada são regulados amplamente no estatuto social das SAS.
Ademais, a SAS pode ser empregada pelo Estado na descentralização administrativa, ou seja, a intervenção da Administração Pública no domínio econômico para realização de atividades empresariais pode se dar sob tal forma societária, seja com aporte de capital exclusivamente público, seja em concurso com os particulares. Segundo Guy Durand, isso traduziu uma modernização significativa dos meios de gestão do setor público da França.[5]
A propósito, a SAS congrega várias das “tendências do direito societário”, de que fala Osmar Brina Corrêa-Lima em recente estudo. Revela a tendência para: a) a auto-regulamentação; b) a harmonização das legislações societárias; c) a valorização do princípio da autonomia da vontade; d) a redução dos tipos societários existentes; e e) maior ênfase da função social da empresa.[6]
Com efeito, o sucesso da SAS na Europa é indiscutítvel. Sua sistemática inspirou, nitidamente, a reforma (de flexibilização) das sociedades por ações da Alemanha.[7] Atualmente, fala-se de sua influência sobre a proposição de uma Sociedade Privada Européia (SPE), cujo traço marcante é a liberdade contratual, pois somente esta pode ensejar uma estrutura societária supranacional, que transite com facilidade pelos diversos ordenamentos coexistentes no bloco econômico.[8]
Mas, afinal, a SAS seria um tipo adequado ao equacionamento dos riscos do empresariado brasileiro? Seria ela uma alternativa atraente para o repensar do arcabouço societário pátrio?
Em suma, esses são questionamentos que devem nortear o legislador brasileiro e os estudiosos do Direito Comercial. Trata-se de indagações que deve estar no espírito de todos aqueles que têm responsabilidade com o futuro do Direito Societário Nacional.
Ainda que não se pense em adotar a forma da sociedade por ações simplificada, deve-se refletir sobre a influência da autonomia da vontade no âmbito do Direito das Sociedades. Seria interessante a dignificação de tal autonomia no atual estágio jurídico do Brasil? Em que medida ela ainda atua no território pátrio?
Esta é a pretensão do presente texto: apenas lançar alguns questionamentos a partir da experiência francesa, cujo sucesso pode concorrer para a modificação do sistema brasileiro.
Professor do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB
Professor do Unicentro Newton Paiva
Doutor em Direito de Empresa pela UFMG
Mestre em Direito Comercial pela UFMG
Ex-Coordenador-Geral e, atualmente,
Diretor do Gabinete do Advogado-Geral da União
Procurador Federal
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