Resumo: As ações afirmativas fazem parte de diversas discussões no direito constitucional contemporâneo, principalmente quanto a sua aplicabilidade eficaz na sociedade. O presente artigo tem como objetivo principal demonstrar a estrutura conceitual dessas medidas, seu âmbito de abrangência na sociedade e a estrita relação com o Princípio da Igualdade. Neste sentido, os resultados e conclusões do presente trabalho, após a utilização de um estudo normativo, analítico e empírico, foram que o conceito de ações afirmativas deve ser encarado de forma ampla, bem como sua abrangência na sociedade, sendo o Princípio da Igualdade o elemento norteador de toda a sua aplicabilidade, para não desrespeitar os moldes estabelecidos pela Constituição.
Palavras-chave: ações afirmativas; igualdade; direito constitucional; políticas públicas.
Abstract: Affirmative actions are part of several discussions on contemporary constitutional law, especially regarding its applicability in society. This article aims to demonstrate the main conceptual framework of these measures, within its scope in society and the strict relation to the Principle of Equality. In this sense, the results and conclusions of this work, after the use of a normative, analytical and empirical study, was that the concept of affirmative action should be viewed broadly, as well as its reach in society, and the Principle of Equality guiding element of application and not disrespect the Constitution.
Keywords: afirmative actions; equality; constitutional law; public policies.
Sumário: 1. Introdução. 2. A constituição federal e as ações afirmativas. 3.as ações afiramativas: conceito e abrangência. 4. A igualdade e as ações afirmativas. 5. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A relação entre as ações afirmativas, principalmente as idealizadas em forma de políticas públicas, demonstram grande discussão no cerne do debate constitucional contemporâneo.
Posto isso, surge a necessidade de demonstrar qual a verdadeira amplitude dessas medidas, indicando sua abrangência e possibilidade de eficácia social.
Quanto a abrangência das ações afirmativas, o presente trabalho partiu do seu conceito leigo, amplamente difundido na sociedade, ou seja, sua confusão com as “cotas raciais”, partindo para sua conceituação técnica, de forma a não colocar um conceito pronto e acabado do tema, mas demonstrar sua aplicabilidade, abrangência e força social.
Antes de adentrar neste âmbito conceitual, será apresentada a compatibilidade das ações afirmativas com o texto constitucional vigente, sendo observados alguns preceitos, levando em consideração que os ideais apresentados por essas medidas são corroborados pelos preceitos Constitucionais.
Entretanto, cumprirá demonstrar que embora a finalidade das ações afirmativas esteja de acordo com a Constituição Federal, sua aplicação pode estar em desacordo, se sua finalidade for demonstrar-se contra o Princípio da Igualdade e demais direitos do texto maior.
Desta feita, para complementar o descrito acima, foi descrita a importância que o Princípio da Igualdade tem nas ações afirmativas, pois ele deve ser elemento norteador e indispensável para a motivação, fundamentação e aplicação das mesmas.
No entanto, o presente trabalho não possui o objetivo de trazer um modelo pronto e acabado de aplicabilidade do princípio da igualdade nas relações sociais traçadas pelas ações afirmativas, mas apresentar breves considerações aptas a demonstrar a necessidade de analisar previamente a aplicação dessas medidas.
Por fim, basta mencionar que o trabalho procura dar as ações afirmativas o caráter de instrumento jurídico capaz de concretizar diversos direitos sociais, mas, por questões didáticas, os exemplos foram desenvolvidos sobre o Direito á Educação.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E AS AÇÕES AFIRMATIVAS
As ações afirmativas situam-se no cerne do debate constitucional contemporâneo, e interferem em questões que remontam à própria origem da democracia moderna[1].
Segundo Lênio Streck, “no moderno constitucionalismo, uma das conquistas reside exatamente na nova configuração da relação entre os poderes do Estado. A renovada supremacia da constituição vai além do controle de constitucionalidade e da tutela mais eficaz da esfera individual de liberdade. Com as Constituições democráticas do século XX, outro aspecto assume lugar cimeiro: trata-se da circunstância de as Constituições serem erigidas à condição de norma diretiva fundamental, que se dirige aos poderes públicos e condiciona os particulares de tal maneira que assegura a realização dos valores constitucionais (direitos sociais, direito à educação, à subsistência, à segurança, ao trabalho etc). A nova concepção de constitucionalidade une precisamente a idéia de Constituição como norma fundamental de garantia com a noção de Constituição enquanto norma diretiva fundamental.”[2]
Diversas discussões foram desenvolvidas acerca das ações afirmativas, levando em conta os mais diversos critérios e fundamentos, desde paixões ideológicas até rigores tecnicamente exagerados.
Entretanto, cumpre demonstrar neste tópico a compatibilidade das ações afirmativas com a Constituição Federal, a qual deve nortear todas as relações jurídico-sociais.
Levando em consideração os conceitos e objetivos das ações afirmativas demonstrados em tópicos anteriores, pode-se concluir em outro momento que estas discriminações positivas tem a finalidade de conceder benefícios a determinados grupos sociais que se encontram em latente desvantagem com o restante da sociedade, para que possam ter seus direitos fundamentais (individuais e principalmente os sociais) materializados.
Ora, o enunciado das ações afirmativas se enquadra perfeitamente nas disposições constitucionais, e como defende Mello, “o artigo 3.o da Constituição Federal traz luz suficiente ao agasalho de uma ação afirmativa, a percepção de que o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual. Nesse preceito são considerados como objetivos fundamentais de nossa República: primeiro, construir – prestem atenção a esse verbo – uma sociedade livre, justa e solidária; segundo, garantir o desenvolvimento nacional – novamente temos aqui o verbo a conduzir, não a uma atitude simplesmente estática, mas a uma posição ativa; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, por último, no que nos interessa promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Posso asseverar, sem receio e equívoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos “construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam, em si, mudança de óptica, ao denotar “ação”. É preciso viabilizar – e encontramos na Carta da República, base para fazê-lo – as mesmas oportunidades. Há de ter-se como página virada o sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser acima de tudo, afirmativa. E é necessário que essa seja a posição adotada pelos nossos legisladores” [3].
Além disso, as ações afirmativas como medida que busca a concretização de diretos fundamentais sociais e consequentemente de direitos fundamentais individuais a determinados grupos sociais que se encontram marginalizados na sociedade, pretendendo alcançar os objetivos dispostos na Constituição Federal, mencionados acima, e conceder o direito norteador de todo sistema constitucional que é da dignidade da pessoa humana[4], não pode ser encarada como incompatível com o texto maior.
Ademais, como já foi explanado, a ação afirmativa constitui meio para a aplicação material do direito à igualdade, pois através dela se pode transmutar da igualdade formal para a material, como preceitua diversas disposições do texto maior.
Como leciona Carmen Lúcia Antunes Rocha, a ação afirmativa é um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é assegurada na Constituição Federal, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais e como cidadania não combina com desigualdades, ela é então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias[5].
A própria Constituição Federal autoriza a criação de políticas públicas para a materialização dos direitos sociais[6], porquanto, se estas são dirigidas aqueles que precisam mais do que o restante dos cidadãos, como é o caso das ações afirmativas, inegavelmente que serão plenamente concebíveis pelo sistema constitucional.
Ainda, a instituição de um estado democrático de direito no artigo 1º da Constituição Federal, possibilita a intervenção do Estado na criação de medidas interventivas no meio social, como as ações a afirmativas.
Até o momento foi reconhecida a compatibilidade constitucional das ações afirmativas, mas é de suma importância que tais características se apresentam quanto a seus objetivos e finalidades, pois é óbvio que uma política pública de ação afirmativa pode ser inconstitucional se não forem observadas certas características inerentes a sua formalização (planejamento orçamentário, plano de governo, etc.) ou tiverem um alcance inadequado, se apresentando contra as diretrizes constitucionais, promovendo uma discriminação negativa, desigualdade jurídica, baixa eficiência, entre outros elementos que não devem fazer parte dessas políticas.
Entretanto, de forma geral quanto a seus objetivos e finalidades estudados até agora a ação afirmativa apresenta-se de acordo como os ditames constitucionais, sendo a posição do Supremo Tribunal Federal quanto ao tema, que embora não tenha julgado e definido sua posição, apresenta decisões favoráveis[7].
AS AÇÕES AFIRAMATIVAS: CONCEITO E ABRANGÊNCIA
Quando há menção de ações afirmativas no cenário brasileiro já se é apresentada a idéia de um sistema de cotas nas universidades, entretanto, as cotas são apenas uma espécie da qual as ações afirmativas são gênero.
Há diversos conceitos para as ações afirmativas, vários deles levam em conta parâmetros apenas raciais, diminuindo a capacidade de intervenção social dessas medidas, definindo-as em geral como sendo somente forma de reparação histórica de indivíduos que vieram ao longo do tempo sendo discriminados.
É óbvio que é de grande valia estudar e utilizar as ações afirmativas para promover a igualdade racial, mas esta não é a única forma de sua manifestação.
Para se buscar a devida efetividade da ação afirmativa, é necessário ampliar sua capacidade de intervenção, compreendendo-a num sentido lato, com intuito de promovê-la de diversas formas e mecanismos sociais.
Assim, “Ação afirmativa é planejar e atuar no sentido de promover a representação de certos tipos de pessoas aquelas pertencentes a grupos que têm sido subordinados ou excluídos, em determinados empregos ou escolas. É uma companhia de seguros tomando decisões para romper com sua tradição de promover a posições executivas unicamente homens brancos. É a comissão de admissão da Universidade da Califórnia em Berkeley buscando elevar o número de negros nas classes iniciais […]. Ações Afirmativas podem ser um programa formal e escrito, um plano envolvendo múltiplas partes e com funcionários dele encarregados, ou pode ser a atividade de um empresário que consultou sua consciência e decidiu fazer as coisas de uma maneira diferente.”[8].
Nas considerações de Bergmann, se observa a amplitude social que as ações afirmativas podem se manifestar, podendo ser empregadas das mais diversas formas, pelo estado ou por particulares, formalmente escritas ou simplesmente realizadas pela consciência de qualquer indivíduo preocupado.
Por isso, que Menezes conceitua que as ações afirmativas são medidas especiais que buscam eliminar os desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados, o que se realiza por meio de providências efetivas em favor das categorias que se encontram em posições desvantajosas[9].
Com mais embasamento, mas ainda apresentando um sentido amplo, Sarmento define que “Ação afirmativa são medidas públicas ou privadas, de caráter coercitivo ou não, que visam promover a igualdade substancial, através da discriminação positiva de pessoas integrantes de grupos que estejam em situação desfavorável, e que sejam vítimas de discriminação e estigma social. Elas podem ter focos muito diversificados, como mulheres, os portadores de deficiência, os indígenas ou os afrodescendentes, e incidir nos campos mais variados, como educação superior, acesso a empregos privados ou a cargos públicos, reforço à representação política ou preferências na celebração de contratos.”[10]
Ainda o Supremo Tribunal Federal informa que “A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988.”[11]
Portanto, o campo de atuação das ações afirmativas deve ser amplo, e que sua característica principal é a concretização de direitos fundamentais, onde a igualdade apresenta-se como o direito norteador base, em busca da materialização dos demais direitos sociais.
Por exemplo, a utilização destas na forma de políticas públicas para a concretização do direito à educação, deve ser criada em sentido lato, amplo, e as razões serão expostas a seguir.
No Brasil, a maioria dos estudos desenvolvidos sobre as ações afirmativas concentram-se em alguns pontos específicos: 1) analisam os reflexos do modelo norteamericano, mais especificamente das políticas de cotas; 2) consideram o caráter histórico e a constituição do preconceito no Brasil, e as possibilidades e ação afirmativa nesse contexto; 3) formulam análises legais sobre sua aplicabilidade, ou 4) finalmente, analisam os programas já existentes[12].
Ainda, na esfera do Poder Legislativo nacional, encontramos propostas de ações afirmativas, especialmente no que diz respeito ao acesso ao ensino superior. Em 1993, encontramos a proposta de Emenda Constitucional do então deputado Florestan Fernandez (PT/SP); em 1995, a então senadora Benedita da Silva (PT/RS) apresenta os projetos n.o 13 e 14; no mesmo ano é encaminhado o projeto de lei n.o 1239, pelo então deputado federal Paulo Paim (PT/RS); em 1998, o deputado federal Luiz Alberto (PR/BA) apresenta os projetos de lei n.o 4.567 e 4.568; e, em 1999, temos o projeto de Lei n.o 298, do senador Antero Paes de Barros (PSDB). Analisando o conjunto dos projetos, observamos que são apresentadas diferentes propostas: a concessão da bolsa de estudo; uma política de reparação que, além de pagar uma indenização aos descendentes de escravos, propõe que o governo assegure a presença proporcional destes nas escolas públicas em todos os níveis; o estabelecimento de um Fundo Nacional para o Desenvolvimento de Ações Afirmativas; a alteração no processo de ingresso nas instituições de ensino superior, estabelecendo cotas mínimas para determinados grupos. Na definição dos grupos beneficiados, os projetos estabelecem critérios exclusivamente raciais/étnicos ou sociais, ou procuram utilizar ambos os critérios. Naqueles que estabelecem grupos raciais, temos como público-alvo os “negros”, “afrobrasileiros”, “descendentes de africanos”, ou setores “etno-raciais socialmente discriminados”, em que estaria incluída a população indígena. Há projetos específicos para a população denominada “carente” ou para os alunos oriundos da escola pública. Sobre a proporção daqueles atingidos pelas propostas, não há um padrão nesse dimensionamento; alguns projetos definem todo o grupo especificado, racial ou social, como beneficiário; outros estabelecem um percentual, como 20% das vagas para alunos carentes, 10% das vagas para “setores etno-raciais discriminados”, 45% dos recursos para “afrodescedentes”; 50% das vagas para alunos oriundos das escolas públicas; ou ainda uma percentagem proporcional à representação do grupo em cada região. A definição dos grupos e de sua abrangência são aspectos importantes na formulação de leis e políticas e, dependendo do nível de aplicação – se nacional, estadual ou municipal -, necessitam incorporar diferenças regionais[13].
Ora, as propostas de ações afirmativas no contexto atual concentram-se em questões raciais, mencionando um pouco de alunos carentes advindo de escolas públicas, e utilizam apenas uma espécie, que é a cota, para sua implementação. Entretanto, os problemas educacionais apresentam-se muito mais complexos e abrangentes, sendo as políticas publicas de ações afirmativas um eficaz instrumento jurídico de concretização deste direito se utilizada corretamente, ou seja, de forma mais ampla.
O Brasil possui cerca de 14,3 milhões de analfabetos totais[14], sendo que destes, 09 milhões são negros. A questão do negro no contexto social é um tanto complicada, mas também há outros grupos sociais que necessitam de atenção.
Um exemplo é a população de regiões pobres, como o Nordeste, onde cerca de 20% da população é analfabeta.
Ademais, a população indígena se apresenta com cerca de 1,3 milhões de crianças entre 06 e 14 anos com atraso educacional, e mais de 200.000 não freqüentam a escola, ainda, 3,9 milhões de crianças indígenas vivem com famílias que sobrevivem abaixo da linha da pobreza.
Outro fator relevante, é que 50% das crianças e adolescentes vivem com famílias no nível da pobreza, sobrevivendo com menos de meio salário mínimo mensal.
Tais dados e demais fatos, posicionam o Brasil na 80º posição no Índice de Desenvolvimento de Educação realizado pela UNESCO em 2006, ficando atrás de países como Panamá, Equador, Bolívia e Paraguai.
Portanto, as políticas públicas de ações afirmativas devem se concentrar para todos os excluídos socialmente, ou como leciona Rocha[15], “do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é assegurada na Constituição Federal, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais.”
Importante frisar, que o sentido amplo de aplicações das ações afirmativas defendido neste trabalho não significa banalizar sua utilização, mas demonstrar que ela pode ser promovida tanto por um particular quanto pelo poder público, além de salientar a necessidade de atingir diversos grupos sociais marginalizados socialmente, que necessitam de medidas eficazes para terem seus direitos sociais concretizados, cabendo ao poder público analisar a melhor aplicabilidade e a os necessários destinatários dessas ações, sempre utilizando como elemento norteador o princípio da igualdade como será tratado no próximo tópico.
A IGUALDADE E AS AÇÕES AFIRMATIVAS
A raça humana é diferente e desigual, já em sua essência. Na esfera biológica, cada pessoa possui seus traços únicos, sendo um ser, por excelência, único. Também na esfera sociológica diferenças foram construídas e profundamente enraizadas em nossa cultura, o que também difere os povos como sendo únicos. Seja por motivo natural ou social, a humanidade é, por excelência, diferente e desigual[16].
Entretanto, o ideal de estabelecer uma sociedade igualitária a muito vem sendo buscado por toda a história da humanidade, mas em que constitui tal igualdade, já que somos diferentes por excelência?
O jus-filósofo Bobbio[17] nos apresenta que a busca pela igualdade é um desejo de índole moral socialmente e politicamente almejado.
Nestes traços, observa-se que a igualdade constitui um anseio de bem estar social, no qual os indivíduos apresentem-se aptos a terem seus direitos respeitados e de serem tratados igualitariamente.
Mas, tal aspecto se apresenta de natureza puramente teórica-filosófica, buscando uma mera conceituação, no entanto, para o presente trabalho é coerente analisar a igualdade como um direito disposto na Constituição Federal.
O princípio da igualdade constitui o signo fundamental da democracia[18], sendo uma norma de direito fundamental que confere aos indivíduos o direito à igualdade de tratamento, tendo a característica de um direito subjetivo, sendo um princípio objetivo que se projeta sobre todo o ordenamento jurídico, com aplicabilidade imediata (CF, art. 5º, § 1º), imune ao poder constituinte reformador (CF, art. 60, § 4º, IV) e, portanto, ocupante de uma posição preferente na ordem jurídica.[19]
As constituições – inclusive a brasileira – estabelecem que todos são iguais perante a lei, apresentando, assim, a face formal do princípio da igualdade, onde, se pode afirmar que a lei e sua aplicação deva tratar todos da mesma forma, sem distinção de grupos, ou seja, as normas jurídicas devem ser cumpridas[20].
A igualdade formal já foi alvo de desenvolvimento de Kelsen, o qual leciona:
“compreende-se como de per si evidente que a exigência ou postulado de que todos os homens sejam tratados por igual, ou seja, de que não se deve fazer menção de nenhuma das desigualdades de fato existentes, qualquer que seja o conteúdo que possa ter o tratamento conforme a norma pressuposta pela norma de justiça, conduz conseqüências absurdas (…) Não é possível deixar de lado todas as desigualdades em toda e qualquer espécie de tratamento. Certas desigualdades têm de ser tomadas em consideração. Trata-se apenas de saber quais as desigualdades que devem ser desprezadas e quais os indivíduos que, portanto, podem ser considerados como iguais.”[21].
Portanto, observa-se que o enunciado Aristotélico de simplesmente “tratar todos iguais perante a lei” é insuficiente para aplicar o princípio da igualdade nas relações sociais, sejam elas de direito público ou privado.
Alexy leciona que “Se o enunciado geral de igualdade se limitasse ao postulado de uma práxis decisória universalizante, o legislador poderia, sem violá-lo, realizar qualquer discriminação, desde que sob a forma de uma norma universal, o que é sempre possível. A partir dessa interpretação, a legislação nazista sobre judeus não violaria o enunciado ‘os iguais devem ser tratados igualmente’ ”.[22]
Então, utilizar a igualdade como postulado universal, pouco adiantaria, pois autorizaria a discriminação, como nos exemplos dados por Canotilho[23], onde uma lei determina que, “todos os indivíduos de raça judaica devem ter sinalização na testa; todos os indivíduos de «raça negra» devem ser tratados «igualmente» em «escolas» separadas das dos brancos”, observa-se que tanto negros como judeus estão sendo tratados de forma igual, embora, de forma discriminatória.
Ademais, ao observar alguns artigos da Constituição Federal, pode-se concluir que ela mesma apresenta normas que excetuam o disposto da igualdade formal ou perante a lei.
No art. 7º, XXX E XXXI, vêm regras de igualdade material, regras que proíbem distinções fundadas em certos valores, ao vedarem diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil e qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência. A previsão, ainda que programática, de que a República Federativa do Brasil tem como um de seus objetivos fundamentais reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III), veemente repulsa a qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV), a universalidade da seguridade social, a garantia ao direito à saúde, à educação baseada em princípios democráticos e de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, enfim a preocupação com a justiça social como objetivo das ordens econômicas e social (arts. 170, 193, 196 e 205) constituem reais promessas de busca da igualdade material[24]
Torna-se assim, necessário repensar o valor da igualdade, a fim de que as especificidades e as diferenças sejam observadas e respeitadas. Somente mediante essa nova perspectiva é possível transitar-se da igualdade formal para a igualdade material ou substantiva[25].
Portanto, conclui-se que a igualdade deve buscar uma aplicação material, ou seja, utilizar medidas que possibilitem sua concretização na sociedade e não se apresentar como um critério universalizante, não interpretativo, do qual vincula apenas o legislador.
Entretanto, não constitui tarefa simples analisar o princípio da igualdade perante as ações afirmativas para se buscar uma interpretação e aplicação realmente adequada. Portanto, levando em conta a complexidade do tema, serão demonstradas algumas teorias de aplicação do direito à igualdade e, por fim, será apresentada uma solução hipotética baseada em um modelo.
É importante salientar que não basta recorrer a histórica e notória afirmação Aristotélica de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades, pois tal preceito não oferece paradigmas e conceitos para sua aplicação, sendo necessário o desenvolvimento de teorias que buscam moldar um panorama para uma eficaz aplicação social, principalmente quando relacionado com ações afirmativas.
Na esteira desse pensamento, a ação afirmativa emergiu como face construtiva e construtora do novo conteúdo a ser buscado no princípio da igualdade jurídica. O direito constitucional, posto em aberto, mutante e mutável para se fazer permanentemente adequado às demandas sociais, não podia persistir no conceito estático de um direito de igualdade pronto, realizado segundo parâmetros históricos, eventualmente ultrapassados. Daí a necessidade de se pensar na igualdade jurídica que se faz, constitucionalmente, no compasso da história, do instante presente e da perspectiva vislumbrada em dada sociedade: a igualdade posta em movimento, em processo de realização permanente; a igualdade provocada pelo Direito segundo um sentido próprio a ela atribuído pela sociedade[26].
Importante ressaltar que, a igualdade jurídica, pode ser definida como igualdade nos direitos fundamentais, pois são de fato, os direitos fundamentais as técnicas mediante as quais a igualdade de ambos os casos é assegurada ou perseguida; e é a diversa natureza dos direitos, nos dois casos sancionados que consente de explicar a diversa relação com as desigualdades de fato. Precisamente, as garantias dos direitos de liberdade asseguram a igualdade substancial ou social. Umas tutelam as diferenças, das quais postulam a tolerância; as outras removem ou compensam as desigualdades que postulam como intoleráveis. Os direitos do primeiro são diretos à diferença, isto é, a ser si mesmo e permanecer uma pessoa diversa das outras; os de segundo são direitos à compensação pelas desigualdades, e por isso, a tornar-se, nas condições mínimas de vida e sobrevivência igual às outras. No primeiro caso a diversidade é um valor de garantia; no segundo, um desvalor a combater. A relação entre os três clássicos princípios inscritos sobre a bandeira da Revolução francesa – liberté, égalité, fraternité – pode ser sobre essa base requalificada. Estes valores não se implicam entre eles, assim como se tem visto, não se implicam entre eles os direitos de liberdade e os direitos sociais. Mas nenhum caso é incompatível. Ao contrário, são mediados por valores de igualdade, que forma o fundamento axiológico dos outros dois. O direito à igualdade pode ser concebido como uma meta direito em relativamente não só à liberdade assegurada pelos direitos de liberdade, como também à fraternidade prometida pelos direitos sociais: precisamente, este é o principio constitutivo dos direitos de liberdade, enquanto igualdade dos direitos de todas as suas pessoais distinções ou diferenças, como dos direitos sociais, enquanto igualdade substancial dos direitos de todos a condições sociais de sobrevivências[27].
Neste sentido, Carmen Rocha preconiza que a utilização de ações afirmativas passou a significar, desde então, a exigência de favorecimento de algumas minorias socialmente inferiorizadas, vale dizer, juridicamente desigualizadas, por preconceitos arraigados e que precisavam ser superados para que se atingisse a eficácia da igualdade preconizada e assegurada constitucionalmente na principiologia dos direitos fundamentais[28].
Perante tais lições, conclui-se que as ações afirmativas, a igualdade e os direitos fundamentais (principalmente os sociais, destacando neste trabalho a educação), formam um trinômio do qual a ação afirmativa é o meio utilizado para a concretização dos direitos sociais perante os parâmetros da igualdade, entretanto, quais seriam estes parâmetros.
O grande jus filosofo Bobbio determina que para uma aplicação adequada da igualdade nas relações sociais, deve-se proferir as seguintes indagações: quem é igual? Em relação a que? Qual o critério justo ou médio para que algo seja de alguém de forma igualitária?[29]
Com as premissas de Bobbio, compactua-se a idéia de estabelecer benefícios a determinados grupos de indivíduos marginalizados socialmente, pois necessitam de algo a mais que os outros cidadãos para estabelecer um critério de relacionamento mais igualitário na sociedade.
Posto isso, a clássica obra de Celso Antonio Bandeira de Mello[30], traz diretrizes que podem ser aplicadas analogicamente às ações afirmativas e aos critérios de mencionados acima, pois apresenta fórmulas de utilização do princípio da igualdade material na formação das leis, em diversas relações que envolvem indivíduos diferentes.
Segundo Bandeira de Mello, é importante a identificação do fator de discrímen para não desrespeitar o princípio da igualdade. Portanto, tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional.
Ou seja, além de identificar destinatário e o objeto, há de ter uma “razão valiosa” e coerente com os preceitos constitucionais para que determinados grupos sociais sejam beneficiados. Entendem neste sentido, Larenz[31], o qual determina uma “diferenciação objetivamente justificada”, e Canotilho[32], que preceitua um “motivo racional evidente”.
Ainda, Robert Alexy[33] utilizando a máxima Aristotélica e a jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, chegou a duas premissas para a utilização da igualdade nas relações sociais, defendendo que “Se não há nenhuma razão suficiente para a permissão de um tratamento desigual, então está ordenado um tratamento igual” e “ Se não há uma razão suficiente para ordenar um tratamento desigual, então está ordenado um tratamento desigual”.
Dworkin[34], utiliza uma “exigência de racionalidade” para a aplicação da igualdade nas relações sociais, criando três esboços: a) Classificações suspeitas, onde traz a igualdade material como parâmetro, admitindo que determinados indivíduos possam ser tratados desigualmente desde que essa discriminação seja condição para a igualdade de todos; b) Classificações banidas, aquelas que utilizam critérios específicos como a raça ou a religião são ilegítimas, mesmo que o objetivo seja o bem estar social; c) Fontes banidas, onde somente são legitimas as discriminações se o interesse geral não estiver pautado em critérios decorrentes de preconceitos.
Ademais, Wilson Steinmetz[35], interpretando a jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol e o Supremo Tribunal Federal, com as lições de Karl Larenz, defende que deve ser utilizado os princípios da razoabilidade e proporcionalidade para nortear a utilização de tratamentos desiguais na sociedade.
Por fim, buscando parâmetros de aplicação da jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, observa-se que “o direito deve distinguir pessoas e situações distintas entre si, a fim de conferir tratamentos normativos diversos a pessoas e a situações que não sejam iguais”[36], tendo a “função de obstar discriminações e de extinguir privilégios”[37] devendo conter uma “correlação lógica e racional”[38], analisando “critérios impessoais, racionais e objetivos”[39] juntamente com “pressupostos lógicos e objetivos” e identificando o “elemento de discrimen razoável”[40] utilizando um “necessário coeficiente de razoabilidade” e proibindo qualquer tipo de “discriminação arbitrária”[41].
Após a análise de algumas teorias de aplicação acerca do direito da igualdade, conclui-se que, embora, cada uma tenha (ou não) traçado caminhos diversos, para chegar a suas conclusões, é pacífico defender que a aplicação do direito à igualdade nas relações sociais deverá sempre buscar a concretização do texto Constitucional, propiciando um bem estar social, fluindo à materialização do princípio da dignidade da pessoa humana, dos objetivos dispostos no artigo 3º da Constituição Federal e norteando todas as relações de direitos fundamentais (individuais ou sociais) da Magna Carta.
Posto isso, as políticas públicas baseadas em ações afirmativas, devem, no mínimo, seguir as seguintes orientações de formulação:
1. Deve-se identificar um problema social que atinge, restringindo ou limitando direitos fundamentais sociais, uma coletividade determinada de pessoas.
2. Deve-se proceder a identificação da coletividade atingida, para saber qual grupo social esta sendo afetado.
3. Analisar o fator de diferenciação, relacionando o grupo social afetado com o restante da sociedade, buscando entender se a problemática enfrentada pela coletividade determinada impõe condições negativas de convivência social caracterizando-se uma fragilidade real, não possibilitando que esta consiga por si só alcançar o patamar de igualdade dos demais cidadãos.
4. Por fim, Identificada a fragilidade real, se deve buscar soluções efetivas para a minorização da desigualdade social, criando ações afirmativas coerentes e benéficas diretamente ao grupo social inferiorizado, e por conseguinte, indiretamente ao restante da sociedade.
O último quesito mencionado apresenta-se como o mais complexos, pois apresenta um grande trabalho multidisciplinar que deve ser realizado pelo Estado para que a referida política pública de ação afirmativa tenha sua verdadeira eficácia social.
CONCLUSÃO
Como conclusão das breves anotações realizadas neste trabalho, cumpre salientar que a formação das ações afirmativas, principalmente as realizadas na forma de políticas públicas, as quais utilizam capital do Estado, devem ser bem estruturadas e procurar atender realmente os grupos sociais que necessitam de benefícios maiores, por sua condição precária no meio social comum.
Para isso, é necessário entender o quanto as ações afirmativas são eficientes, caso corretamente utilizadas, e a importância de sua abrangência. Entretanto, para não banalizar sua utilização é necessário norteá-las pelo princípio da igualdade, como demonstrado, não necessariamente com o modelo esboçado, mas com os fundamentos de bem estar social, proporcionalidade, razoabilidade e procurando atingir os preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana e os demais objetivos do texto maior.
Ademais, as ações afirmativas, embora a discussão seja atual, já foram alvo de táticas políticas e anseios populares no passado, não com este nome, mas com estrutura e formação parecidas.
É o caso da criação, no governo de Getúlio Vargas (1944), da Consolidação das Leis Trabalhistas, onde foi previsto, naquele momento, que os trabalhadores necessitavam de uma legislação apta a garantir-lhes alguns direitos básicos, limitando os abusos dos empregadores.
Ora, uma medida que traz benefícios latentes a um grupo social inferiorizado no momento, tem todo o escopo de uma ação afirmativa.
Mas, tal fato, serve de exemplo para demonstrar que as ações afirmativas são, além dos preceitos básicos descritos, anseios sociais que se formam com o tempo, onde em determinados momentos há a necessidade de beneficiar alguns grupos e outros não.
Por isso, as ações afirmativas devem ser levadas como medidas momentâneas, de curto, médio ou longo prazo, pois a mutação cultural, econômica, jurídica e política influi nas relações sociais e altera, com o passar dos anos, as situações que um dia foram berço e abrigo para uma medida afirmativa, sendo necessária o controle do Estado e da Sociedade para que algo justo, não se torne, no futuro, injusto.
Por outra via, observou-se que a finalidade das ações afirmativas são compatíveis com o texto constitucional, mas devem seguir os preceitos comuns de sua formação, no caso de serem políticas públicas, para não serem consideradas formalmente inconstitucionais, bem como buscar a garantia dos preceitos constitucionais para não serem materialmente inconstitucionais.
Por fim, a ação afirmativa, interpretada e utilizada adequadamente, é um importante instrumento jurídico e social de concretização dos direitos dos grupos realmente marginalizados na sociedade, devendo o poder público, a sociedade e todos os operadores do direito e das demais ciências, acompanharem sua criação e desenvolvimento, com intuito de alcançar, ao menos em parte, os tão sonhados fundamentos e objetivos da Constituição Federal.
Doutor e Mestre em Sociologia, com especialização em Ciências Sociais Aplicadas na área da Administração Pública, com experiência em construção de banco de dados (pesquisa em andamento financiada pelo Cnpq) aperfeiçoamento em Procedimentos Didático-Pedagógicos e aperfeiçoamento em Ensino a Distância. Graduado, Bacharel e Licenciado, em Ciências Sociais. Atua como docente no Centro Universitário de Araraquara – UNIARA no Curso de Direito. Além de ter experiência docente no ensino fundamental, médio, superior e em pós-graduação. É coordenador e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito da UNIARA, atuando em grupos de pesquisa no CNPq e em orientações de iniciação científica. Atua na área social voltada as crianças e adolescentes através de uma pesquisa financiada parcialmente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e com apoio dos Juizes de Direito das Varas da Infância e da Juventude de Araraquara e de São Carlos. Essa pesquisa pretende criar através de critérios científicos um banco de dados sobre os atos infracionais cometidos por crianças e adolescentes na cidade de Araraquara com o objetivo de aprimorar a atuação tanto pública como privada na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, bem como, na prevenção das infrações penais. Busca desenvolver metodologia de pesquisa, em conjunto com o CEDECA – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente de Araraquara, com o objetivo de avaliar a questão da prostituição infantil na cidade. Participou de Congressos e Fórum Nacionais e Internacionais. Tem diversas publicações em revistas científicas e livros, bem como, já organizou várias publicações.
Acadêmico de Direito do Centro Universitário de Araraquara.
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