I.
Introdução.
Na
obscura Idade Medieval as penas cominadas às condutas típicas configuravam
iniqüidade inaceitável, decorrente à desproporção entre as sanções e o crime,
principalmente se enfocadas pela visão moderna do humanismo.
Os
glosadores, pós-glosadores, e, especialmente, os práticos desenvolveram o
instituto do crime continuado no intuito de livrar o delinqüente da pena de
morte conseqüente da terceira condenação por furto, considerando os atos criminosos em um único crime, consoante preciosa lição de
José Roberto Baraúna.
Carrara ao lecionar sobre o
crime continuado, asseverou: “deve sua origem à benignidade dos Práticos,
os quais, com seus estudos, tentaram evitar a pena de morte cominada ao
terceiro furto”.
A
legislação argentina e alemã não o definem, diferentemente do Código toscano,
que delineou com precisão o crime continuado, filiando-se a teoria objetivo-subjetiva.
Portanto,
os italianos privilegiam o requisito subjetivo, exigindo na conformação
do instituto um mesmo desígnio ou, para outros, a mesma resolução.
A
doutrina germânica, denominada objetiva, defende a prescindibilidade
da unidade de desígnios, contentando-se com o dolo ou a culpa (lato sensu).
Elucida
a questão o ilustre Magalhães Noronha, divisando claramente ambas as correntes:
“Considerandos
o caso clássico de crime continuado, em que o empregado, em dias sucessivos,
furta da gaveta do patrão várias quantias, a doutrina alemã contenta-se
com a identidade das ações e a homogeneidade subjetiva, ou seja, o dolo, ao
passo que a itálica investiga, além disso, o propósito do agente: conseguir
determinada importância, adquirir uma coisa, fazer uma viagem etc., enlaçando
esse desígnio todas aquelas ações. Conseqüência disso é que – afirmam alguns –
enquanto esta doutrina não admite a continuação no delito culposo, é este
compreensível naquela.”
II.
Elementos do crime continuado.
Nosso legislador, conforme reza o artigo 71 do
Código Penal, define que o crime continuado ocorre quando o agente, mediante
mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e,
pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes,
devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, adotando,
conforme doutrina de Damásio E. de Jesus a teoria puramente objetiva.
Seria,
então, suficiente na sua conformação que crimes da mesma espécie apresentem
semelhança em seus elementos objetivos de tempo, lugar, maneira de execução
etc.
Tais
elementos, analisados em interpretação analógica ou analogia intra legem, serão investigados
pelo juiz, e dificilmente o elemento subjetivo da unidade de resolução poderá
ser olvidado na apuração da unidade do aspecto material do delito, divisando o
crime continuado do concurso real, conforme entendimento dos preclaros
Damásio E. de Jesus, Magalhães Noronha, Roberto Lyra, Basileu Garcia e Aníbal Bruno, entre outros.
Os
elementos do crime continuado, elencados pela
doutrina anterior à reforma do Código Repressivo, são: a) unidade de tipo; b)
homogeneidade de execução; c) certa conexão temporal; d) identidade de
ofendido, tratando-se de bens jurídicos pessoais.
Com
a suso referida reforma da Parte Geral do Código
Penal, tornou-se inócua a dissidência doutrinária e jurisprudencial concernente
ao elemento da identidade de ofendido, quanto aos bens jurídicos pessoais, pois
de maneira expressa se estabeleceu a admissibilidade do reconhecimento da
continuidade delitiva nesta situação.
Atualmente
são elementos da continuação delitiva a pluralidade de
ações ou omissões, a pluralidade de delitos da mesma espécie e a continuação,
já que os delitos posteriores devem continuar o primeiro, segundo Magalhães
Noronha.
Exige-se
que o sujeito pratique duas ou mais condutas, pois
havendo única ação, ainda que desdobrada em vários atos, exsurge
o concurso formal.
Os
crimes de mesma espécie a serem considerados não são aqueles previstos no mesmo
tipo penal, no mesmo dispositivo penal, mas crimes assemelhados em seus tipos
fundamentais, por seus elementos objetivos e subjetivos, violadores
do mesmo interesse jurídico. Elucida o douto Julio F. Mirabete
que interpretação diversa esbarra no próprio texto do dispositivo penal, que se
refere a penas “diversas”.
Indispensável,
ainda, a configuração do nexo de continuidade delitiva, apurado pelas
circunstâncias de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, como
acima referido.
III.
Aumento da pena e últimas anotações sobre o tema.
Há
exasperação ampliada de pena na continuação específica prevista no parágrafo
único do artigo 71 do Código Penal.
No
crime continuado qualificado, quando o sujeito atinge interesses
personalíssimos de vítimas diferentes, com violência ou grave ameaça, o aumento
na pena é de um sexto até o triplo, desde que as condições circunstanciais recomendem, desde que não ultrapasse a fixação final da pena
o limite trintenário da apenação
e não supere a pena aplicável em concurso material. Quando a mesma vítima
suportar a continuidade delitiva, a exasperação não sobejará dois terços da
pena.
No
crime continuado simples, previsto no “caput” do artigo 71 do Código
Penal, a aplicação da pena obedece a duas regras, segundo ensina o ilustre
Damásio E. de Jesus: a) se as penas são idênticas, aplica-se uma só, com
aumento de um sexto a dois terços; b) se as penas são diversas, aplica-se a
mais grave, aumentada de um sexto a dois terços.
Dentro
dos parâmetros mínimo e máximo de aumento de pena o juiz poderá estabelecer o
acréscimo devido.
Importante
ressaltar que as penas pecuniárias não serão majoradas, sendo aplicadas
distinta e integralmente, seja na continuação delitiva, seja nos concursos
formal e material de crimes.
O
Magistrado aplicará o aumento de pena do crime continuado no último momento do
sistema trifásico de aplicação da pena. Após estabelecer a pena-base,
considerar as circunstâncias legais, fazer incidir as causas de diminuição e
aumento de pena, definirá o julgador, enfim, a pena devida, considerando o
aumento decorrente da continuação delitiva.
Nada
impede que entre os delitos componentes da continuação haja concurso formal,
todavia, incidirá apenas o aumento suso mencionado, prejudicada a aplicabilidade do artigo 70 do
Código Penal.
Para
efeito de contagem do prazo prescricional, os delitos componentes do crime
continuado devem ser considerados individualmente, “data venia”, apesar de respeitável entendimento contrário
do douto Magalhães Noronha, para quem “o prazo prescricional começa no dia
em que cessar a continuação (art. 111, I); e a sentença condenatória faz com
que ela cesse.”
Por
fim, permite-se a continuação delitiva entre crimes consumados e tentados, nos
crimes omissivos, e poderá ocorrer ainda em crimes culposos.
Defensor Público da Defensoria Pública Regional de Taubaté/SP. Atuou como advogado particular e público em algumas instituições, como a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, Prefeitura Municipal de Santo André e SEMASA. Foi professor universitário e em cursinhos preparatórios para concursos, ministrando aulas de Direito Civil e Direito Processual Civil.
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