A decisão do Supremo Tribunal Federal na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 187, em 15 de junho do corrente ano, foi um marco democrático ao país, haja vista, ter possibilitado uma interpretação conforme a Constituição ao art.287 do Código Penal (Incitação ao Crime).
O Estado policialesco herança do período da ditadura, é um ranço na histórica política do país. O primeiro registro histórico de aviltamento aos direitos e garantias individuais, ocorreu por meio da Carta de 1937, que instituiu o Estado Novo, período em que Getúlio Vargas decretou o Estado de Guerra e de Emergência, numa suposta ameaça comunista, com o único objetivo de se manter no poder, proibindo toda e qualquer possibilidade de manifestação pública. Mister ressaltar, que houveram insurreições populares em meados do século XIX, entretanto foram repelidas pelo Governo, de forma incisiva e truculenta, numa política de imposição do medo.
Não destoante disto, a Carta de 1967, institucionalizou a preocupação com a “segurança nacional”, e, em nome desta, se consagrou o período negro da história brasileira, a opinião tinha que ser velada, milhares de jovens foram presos, mortos e outros tidos como “ desaparecidos” até os dias atuais. A liberdade era desconhecida, o cidadão não podia demonstrar nenhuma insatisfação diante das incongruências do regime, pois se o fizesse receberia uma resposta enérgica do Estado.
Por conta deste contexto repressivo, crescia no país uma sede de redemocratização, que ocorreu por meio da Constituição Cidadã de 1988, assim nomeada por objetivar a efetiva cidadania. Nesse ínterim, a participação popular para a construção democrática é de suma importância, as passeatas em favor da legalização da maconha, representa um movimento participativo da sociedade no que tange a identidade política, ao reprimir este movimento com força policial, na alegação de incitação ao crime, se tolhe o exercício democrático.
No que tange ao direito fundamental a liberdade, Jhon Stuart Mill[1] a entende de extrema relevância para a construção de uma sociedade não apenas justa, mas de um Estado justo, próspero e benéfico para o bem comum de todos os cidadãos. Sendo este um reflexo de bem-estar de cada indivíduo, quando se respeitada liberdade plena, as peculiares e particulares.
Nesse sentido, Jean Cruet[2], faz um alerta, “A liberdade é um produto histórico instável, um estado de espírito nacional, não é a conseqüência dum sistema político determinado”. O estudioso deixa evidente que a liberdade tem terreno fértil quando trabalhado num governo democrático, que exerça a soberania sem arbítrio, a atuação policial, que ofende os direitos fundamentais é atentatória ao próprio direito.
De maneira sucinta, os direitos fundamentais para Luiz Alberto e Vidal Serrano[3],“constituem uma categoria jurídica, constitucionalmente erigida e vocacionada à proteção da dignidade humana em todas as dimensões.”. Para os autores os Direitos Fundamentais tem um enfoque conteudísitico, que consistem em direitos protetivos do indivíduo diante das necessidades materiais, direitos potestativos da preservação do ser humano e o que interessa a este estudo, os direitos fundamentais protetivos da liberdade, que enfatiza serem “(…)direitos de resistência, são constituídos das chamadas cláusulas limitativas do Estado, voltados a fixar os limites da atuação diante das liberdades do indivíduo”.
Nesse liame, há de se entender o Direito Penal, não o fazendo apenas na visão do que está na lei penal, sendo esta equivocada, pois existe o discurso dos juristas, o ato do poder político e por corolário o poder punitivo. Nessa nuance, o direito penal seria como afirma Zaffaroni[4], “(…) ramo do saber jurídico que, mediante a interpretação das leis penais, propõe aos juízes um sistema orientador de decisões que contém e reduz o poder punitivo para impulsionar o progresso do estado constitucional do direito”. Ou seja, criminalizar uma manifestação pacífica acerca da legalização da maconha é tão atentatório quanto à suspensão dos direitos políticos decretados pelo governo militar no golpe de 1964.
Quando se fala de estado constitucional de direito, se entende que os outros ramos são irradiados pela força dos princípios da Constituição, por isto, o Direito Penal tem que ser entendido em consonância com os preceitos constitucionais. Embora o preâmbulo não tenha força normativa, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, possui uma afirmação de princípios, quando o constituinte consignou no preâmbulo, o fez por receio da ditadura, principalmente quanto sustentou objetivar assegurar os direitos sociais, individuais e a liberdade.
O Estado Democrático de Direito brasileiro é alicerçado no princípio da pluralidade que tem por finalidade o respeito à dignidade da pessoa humana e a sua liberdade, José Afonso da Silva[5], obtempera que a sociedade é composta por “(…) inúmeras categoriais sociais, de classe, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos. Optar, pois por uma sociedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de interesses contraditórios e antinômicos.” Se eduz assim, a necessidade de equilíbrio entre as pretensões múltiplas, cabendo ao Estado abrir a discussão de assuntos relevantes e não refreá-los pela força e por uma interpretação penal desarrazoada.
O mestre em Direito Penal Tadeu Antonio Dix Silva[6], cita José Afonso da Silva, no que concerne a liberdade de manifestação e de pensamento, que o referenciado autor as associa a liberdade de comunicação, que avalia ser mais abrangente que as dantes citadas por abranger um conjunto de direitos, de maneira mais categórica, afirma ter “(…) forma e processos e veículos que possibilitam a coordenação desembaraçada de criação, expressão e difusão de pensamento e da informação como se extrai dos incs.IV, V, IX, XII e XIV do art. 5º, cominados com os arts. 220 a 224 da Constituição.” [7] Ora, é imanente ao cidadão brasileiro o direito de utilizar qualquer meio de comunicação, ou até mesmo irem às ruas para altercarem sobre assuntos que lhes são de interesse.
Pinto Ferreira apud Alexandre de Moraes [8] faz uma interação pertinente ao ressaltar que “o Estado democrático defende o conteúdo essencial da manifestação da liberdade, que é assegurando tanto sob o aspecto positivo, ou seja, proteção da exteriorização da opinião, como sob o aspecto negativo, referente a proibição da censura”. Nesse viés, a liberdade de expressão em conformidade com o art. 220 da Constituição Federal garante a manifestação do pensamento, sob qualquer forma, não sendo admitida no exercício de sua externalização atos que atentem a essa finalidade.
O promotor Edilson Pereira de Farias [9] frisa que o Poder Público para restringir a liberdade de expressão e informação, precisa ser por meio de lei, sendo esta consoante a Constituição, o que de fato não ocorria ao enquadrar uma manifestação pacífica pela legalização da maconha no tipo penal de incitação ao crime.
O romancista Rudolf Von Ihering[10] é enfático nos dizeres, “A vida do direito é a luta: luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos (…)” O direito não é uma simples idéia, é uma força viva”. Nessa linha, continua debatendo a questão, ao aludir “ O direito é um trabalho sem tréguas, não só do Poder Público, mas de toda a população’. Em síntese, o direito é uma constante luta por uma construção democrática, por uma sociedade fraterna, justa e solidária que necessita de intervenção popular para a obtenção deste fito.
José Roberto Dromi apud Pedro Lenza[11] suscita que o futuro do constitucionalismo “deve ser influenciado até identificar-se com a verdade, a solidariedade, o consenso, a continuidade, a participação a integração e a universalidade”. Estas identificações são os valores que devem nortear a aplicabilidade constitucional, tendo por essência a participação popular para o reforço da democracia participativa e do Estado Democrático de Direito, no fim de fazer prevalecer o princípio da dignidade da pessoa humana de maneira universal, de forma que não se promova dento da estrutura estatal qualquer forma de desumanização.
Urge salientar, conforme leciona o professor Canotilho[12], que “(…) o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos” [13]. Em suma não cabe ao Estado obstar o exercício dos direitos fundamentais com base em uma interpretação que não converge com as demandas sociais.
Nesta linha, oportuno citar as anotações do estudioso Capez[14] que “ Constitucionalismo é um movimento político e jurídico que visa estabelecer regimes constitucionais, ou seja, um sistema no qual o governo tem seus limites em Constituições escritas. É a antítese do absolutismo, do despotismo”. Por este motivo, coibir as passeatas pela descriminalização da maconha, era ato ilegal, pois contrariava ao Estado Democrático de Direito.
À guisa de arremate a atuação do Egrégio Tribunal Federal perante a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 187 é digna de nota, louvável pelo senso democrático e principalmente pelo teor principiológico adjacente nos votos dos ministros. A exegese do art. 287 do Código Penal à luz da Constituição, respeitou as liberdades expressas e garantidas no texto constitucional, resguardou as conquistas do Estado Democrático de Direito, perfazendo desta forma, a sua principal função de guardião da Constituição.
Bacharelada em Direito pela Faculdade Anhanguera Educacional. Pós graduanda em Direito e Processo do Trabalho pelo grupo Anhanguera Educacional. Aluna especial de mestrado na Fundação Eurípedes de Marília, monitora de Filosofia do Direito na instituição em comento. Membro do grupo de pesquisa em Constitucionalização do Processo e do grupo de Gramática dos Direitos Fundamentais, ambos na Fundação Eurípedes de Marília.
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