Resumo: O presente estudo tem o escopo de analisar a expansão da produção de normas de criminalização da atividade empresarial em nosso país. Esta análise propõe realizar-se por meio de uma perspectiva criminológica, sustentando sempre uma posição crítica em face das decisões de política criminal. Acredita-se que análises criminológicas do universo da delinqüência econômica são escassas e que esta breve reflexão pode auxiliar na compreensão dos mecanismos de seleção criminal, presentes no sistema punitivo contemporâneo. No que diz respeito à base teórica que sustenta essa reflexão, procurou-se apresentar conceitos clássicos da criminologia crítica bem como avançar em direção ao pensamento de criminólogos mais contemporâneos. O ponto nevrálgico deste breve ensaio toca a função política e simbólica que desempenha o sistema penal pátrio.
Palavras-chaves: Direito penal econômico – criminologia – crimes empresariais
A sociedade contemporânea traduz-se pela complexidade das relações humanas que em seu seio desenvolvem-se. Complexidade que resulta, sobretudo, da multiplicidade de variáveis que qualquer discurso compreensivo, digno de sua percepção, deve implicar. No dizer de Fábio Roberto D’Avila, são tempos de “liminaridade, no sentido que lhe é dado pela antropologia. Por liminaridade entende-se um período de passagem, um período intermédio, um período entre o dentro e o fora, o qual pode ser representado pela metáfora da soleira de uma porta, pela imagem de um espaço neutro e o fora. Sabe-se que a um esgotamento do paradigma passado, mas ainda não se pode perceber com clareza o modelo que começa a surgir.” (D’AVILA, 2012, p. 45) Próprio desse peculiar momento histórico-social, que vive a humanidade, é o surgimento de revoluções epistemológicas que (re)configuram toda forma de conhecimento. Em relação ao pensamento jurídico, essa senda de complexidades e transformações demanda ao direito a revisão de suas formas e fundamentos a fim de acompanhar a velocidade dessa realidade social.
Neste cenário, novas formas de ilicitude, com características próprias, aparecem, ficando impossível confrontar esta demanda com instrumentos da dogmática penal clássica, de origem liberal-iluminista. Assim, “normas penais que dizem respeito a bens jurídicos não individualizáveis, tais como previdência pública, livre concorrência, sistema financeiro, meio ambiente e ordem tributária, começam a surgir e estremecem as bases do direito penal ortodoxo”. (SHIRAKI, 2010, p.08-09) No dizer de Figueiredo Dias, o que caracteriza esta novel modalidade de ilícito é a impossibilidade de sua referência a uma pessoa ou a uma coisa individual, sendo conseqüentemente imaterial. “Nesse preciso sentido, não há um dano comparável como a modificação do mundo exterior, mas apenas a falta de cumprimento de uma tarefa imposta pelo estado no caso concreto.” (FIGUEIREDO DIAS, 2006, p. 42-43) Em verdade, o direito penal, hoje, não tem mais como alvo o sujeito marginalizado, excluído da sociedade capitalista pela falta de recursos e instrução. A tutela penal hoje se tornou difusa e está intimamente ligada à ordem econômica, política e social.
Nesse desiderato, cresce e toma corpo a criminalização da atividade empresarial em nosso país, fenômeno tecnicamente conhecido como a expansão do direito penal econômico. Sob a pretensa de proteção à ordem econômica, enquanto bem jurídico difuso, “o legislador se deixa levar pela sedutora ideia de pôr todo aparato burocrático das sanções criminais ao serviço dos mais diversos fins de política social, tendendo a legislação penal somente a crescer.” (FIGUEIREDO DIAS, 2006, p.16)
A legitimidade da intervenção criminal nas condutas que afrontam a ordem econômica é, hoje, um dos temas mais debatidos e trabalhados pela dogmática penal. Juristas e pesquisadores de prestígio tem cuidado de problematizar se esta reprimenda estatal de ultima ratio está assentada em bases axiológico-constitucionais suficientemente sólidas dentro de um Estado Democrático de Direito. No entanto, o presente artigo propõe uma perspectiva de análise científica diversa frente a este fenômeno. Pretende-se, aqui, tecer uma leitura criminológica, que possibilite compreender os movimentos e interesses sociais que envolvem o sistema penal e motivam as decisões de política criminal e não analisar a constitucionalidade ou legitimidade destas decisões. Acredita-se que a criminologia oferece uma metodologia e um aporte teórico próprio, que viabiliza uma perspectiva crítica e sociologicamente comprometida tanto da produção legislativa criminal, como do agir das agências penais, contextualizando-os na dinâmica dos conflitos sociais que os cercam. A esse respeito, Baratta discorre que “uma perspectiva infra-sistêmica da criminalização, pautada em uma análise imanente ao sistema jurídico, não oferece uma visão crítica, à medida que atua no âmbito da antijuridicidade formal.” (BARATTA, 2004, p. 06-24) O fato é que o discurso positivado, contaminado pela lógica materialista, ofusca os conflitos estruturais que se revelam os verdadeiros desencadeadores das respostas estatais em sede de direito penal.
A criminologia crítica, fincada em bases teóricas eminentemente marxistas, tem como ponto alto de seu discurso a desconstrução do mito da igualdade no direito penal. O autor Juarez Cirino aponta para o fato de que “a igualdade formal do sujeito jurídico ocultaria a desigualdade real de indivíduos concretos, em chances de criminalização”. (CIRINO DOS SANTOS, 2002, p.09-11) Pode-se dizer que a principal contribuição desta corrente do pensamento criminológico é sustentar que todo sistema criminal está envolto a uma ideologia de controle social que tende a priorizar as classes economicamente abonadas. Nesse preciso sentido, Baratta explana que “o direito penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos, típicos dos indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente a existência da acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para as formas de desvio típicas das classes subalternas”. (BARATTA, 2002, p.165) O próprio Sutherland, em sua obra “White Collar Crime”, já preconizava que os indivíduos materialmente favorecidos estariam, de certa forma, imunes aos processos criminalizatórios. (SUTHERLAND, 1983, P. 225-258)
Em um primeiro momento, o atual fenômeno da criminalização da atividade empresarial parece contrariar esta lógica, ao passo em que a expansão do direito penal econômico atinge diretamente os sujeitos mais bem colocados na pirâmide social. Todavia, em que pese à criminalização primária incidir sobre estes indivíduos e de certa forma eles sofrerem a persecução penal, a realidade empírica nos mostra que dificilmente eles acabarão no sistema prisional. Se mecanismos seletivos impedem que a elite social acabe na execução criminal, o movimento estatal, neste ponto, seja pela atividade legiferante, seja pelo agir de suas instituições, cumpre uma importante função política e simbólica. Sobre a relevância da função política, na equação da lógica punitiva, o criminólogo Julio Virgolini diz que “tanto na formulação das definições do desvio, como na configuração dos sistemas punitivos, o poder político intervém de maneira decisiva, às vezes como uma obscura e imprecisa influencia.” (VIRGOLINI, 2004, P.03) A esse respeito, David Garland leciona: “A formulação de políticas se torna uma forma de atuação simbólica que rebaixa as complexidades e o caráter duradouro do controle do crime efetivo, em favor das gratificações imediatas de uma alternativa mais expressiva. A elaboração de leis se torna uma questão de gestos retaliadores, cujo objetivo é o de reconfortar um público preocupado com o tema e de se alinhar ao senso comum.” (GARLAND, 2008, p. 282-283) Ousa-se dizer que, em relação à criminalidade econômica, a resposta do Estado atende a uma necessidade política de manter o apoio dos menos privilegiados, difundindo uma sensação ilusória de isonomia sem a qual a própria legitimidade e fundamentação do sistema penal não se sustentariam.
Conclui-se que a reação do Estado, por meio do direito criminal, em direção aos comportamentos que agridem a ordem econômica, possui uma forte carga política e simbólica, sendo na prática pouco eficaz. Ao mesmo tempo em que dispositivos de seleção não deixam a elite empresarial desembocar no cárcere, existe uma considerável margem de reprimenda estatal que cumpre a função simbólica de explorar a imagem de igualdade formal enquanto perpetua a desigualdade material do sistema punitivo.
Advogado criminalista, Pesquisador do Programa de Pós Graduação em Ciências Criminais da PUC/RS desde 2008, Especializando em Ciências Penais pela PUC/RS, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Criminologia da PUC/RS.
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