O oficial de registro de imóveis, no desempenho de suas funções, além de todo cuidado que quem exerce função pública deve ter, necessita cingir-se ainda mais de cautela quando da analise dos títulos submetidos à sua apreciação visando a consumação de ato registral.
Corolário do princípio da legalidade, surge a obrigação do oficial analisar acuradamente os títulos e investigar se de fato estão hábeis para averbação ou o registro.
A esse processo de verificação, convencionou-se denominar de qualificação, que nas palavras de Francisco José Rezende dos Santos é “o ato de qualificar, ou seja, avaliar ter o título as características e os requisitos que o permitam portar o pretendido direito e quem e que o tornam hábil a exercitar a finalidade aspirada pelos outorgantes, outorgados ou simplesmente interessados, junto ao Registro de Imóveis[1]”.
Ainda no olhar de Francisco José Rezende dos Santos, o Registro de Imóveis possui três funções, que apesar distintas são harmônicas entre si, quais sejam: (i) função jurídica, de propiciar segurança notadamente quanto ao exercício dos direitos reais, oponibilidade aos direitos reais sobre imóveis; (ii) função administrativa, de levar ao registro do imóvel os atos oriundos da administração, especialmente os referentes às restrições ou imposições administrativas, e a; (iii) função fiscal, à medida que os oficiais devem velar para que os tributos incidentes sobre os negócios jurídicos sejam recolhidos em sua totalidade[2].
Desta forma, em razão de toda confiança empenhada nos registros públicos, os oficiais registrais devem se curvar aos ditames da Lei e só permitir o processamento dos negócios que não tenha nenhuma formalidade preterida.
Como toda boa regra, o rigor na qualificação também comporta exceções.
Afigura-se razoável que no caso da sucessão causa mortis, quando houver efetiva transferência de propriedade exclusivamente aos herdeiros, isto é, quando todos aceitarem a herança, e não houver cessão para terceiros, que a qualificação seja flexibilizada.
Isso porque, na sucessão mortis causa, o evento morte é o clímax, tendo como um de seus efeitos a abertura da sucessão (transferência patrimonial), que será automática e instantânea, operando-se ipso iure[3].
Dizendo de outra forma, “a abertura da sucessão coincide, cronologicamente, por efeito de ficção jurídica, com o instante da morte, e não com outro momento anterior ou posterior.[4]” Assim o Código Civil adotou o droit de saisine (direito de saisina), que na visão de César Fiuza fora introduzido em nosso ordenamento por legado português, através do Alvará de 09 de novembro de 1754, que determinou que transmissão do domínio, isto é, “abertura da sucessão se dá com a morte e no mesmo instante os herdeiros passam a ser titulares da herança.”[5]
Para Eduardo de Oliveira Leite, “o saisine oriundo do direito francês é que confirma a idéia de que a posse da herança se transmite in continenti aos herdeiros”.[6]
Pontua por sua vez Carlos Roberto Gonçalves, que o Código de 1916, também contemplava o referido princípio e o atual, em seu art. 1.784, o reproduziu, “sem, no entanto, qualquer referência à transferência do domínio e posse”. Conclui o autor, que “optou o novel legislador, como já dito, por se referir à transmissão da herança, subtendendo a noção abrangente de propriedade”[7].
Desta forma, no Direito Civil brasileiro (por força do art. 1.784), em decorrência do óbito, há transferência imediata do patrimônio do falecido aos sucessores, mesmo que não seja praticada nenhuma formalidade, indo mais além, mesmo que os beneficiários sequer saibam da existência dessa situação.
Dá-se o nome de herança ao conteúdo da sucessão causa mortis, que é o “patrimônio do falecido, ou seja, o conjunto de bens materiais, direitos e obrigações.”[8] Na verdade, a herança é o resultado de todo acervo patrimonial do de cujus que pode ser tanto ativo como passivo.
Assim, com o fato jurídico morte, há abertura da sucessão, e nos termos da sistemática no Brasil adotada, opera-se automaticamente a transmissão do patrimônio do extinto para os legais sucessores. De tal forma que estes, “se sub-rogam nas relações jurídicas do defunto, tanto no ativo como no passivo (CC, arts. 1.792 e 1.997)[9]”.
A transmissão da herança não é importante apenas pelo prisma da justiça – de deferir aos sucessores os bens de quem os antecedeu – mas também o é, pela própria lógica e segurança jurídica, pois não seria razoável se admitir que o acervo patrimonial do falecido ficasse sem titularidade. Nesse sentido pontua Eduardo de Oliveira Leite, que na impossibilidade de se admitir que um patrimônio permaneça sem titular, por ficção legal, o direito sucessório impõe a transmissão da herança, garantindo a continuidade na titularidade das relações jurídicas.
A transmissão do acervo opera-se então automaticamente (no exato momento do evento morte) e em sua totalidade, sub-rogando-se os sucessores plenamente, em todos os direitos e obrigações, e passam a ser vistos como se fossem o próprio falecido. De acordo Carlos Roberto Gonçlves, “nisso consiste o princípio da saisine, segundo o qual o próprio defunto transmite ao sucessor a propriedade e a posse da herança”.[10]
Na perspectiva registral, pensamos que a saisine também reflete diretamente no universo cartorário. Pois, como há uma sub-rogação legal dos sucessores, que passam a ocupar o lugar do de cujus, isto é, que se investem plenamente no lugar do defunto. Em razão disso, se não houver vícios insanáveis que maculem o negócio jurídico, a qualificação deve se afrouxada e o ato registral levado a cabo.
Estamos a defender, que excepcionalmente, na sucessão causa mortis, atos registrais (averbação e registro) podem ser realizados na matrícula do imóvel, sem o mesmo rigor e exigências de uma qualificação ordinária.
Para melhor compreensão daremos um exemplo, embora casuisticamente há várias outras situações.
O exemplo versa sobre a exigência da certificação pelo INCRA do levantamento geodésico nos imóveis rurais, sendo que o Decreto 4.449/02, em seu art. 10º, do § 2º, exigiu que nenhum imóvel rural não pode ser desmembrado, nem parcelado ou remembrado, como também transferido (de qualquer forma alienado), isto é, em nada poderá ser alterado no registro imobiliário, sem que o órgão fundiário primeiro realize a certificação.
Em razão do encimado princípio da saisine, pontuamos que a transferência para os herdeiros (e, somente para eles), poderia ser realizada mesmo sem a certificação, em que essa exceção se justificaria no referido princípio, pois como já dito à exaustão, no caso estaria ocorrendo apenas a sub-rogação na pessoa do falecido. Reitera-se, a aquisição da propriedade no caso da sucessão se dá com o evento morte, sendo o registro destinado apenas para tornar oponível a terceiros (público) este direito real.
A rigor o oficial deve exigir o cumprimento de todas as solenidades e protocolos emanados da Lei. Mas situações há que o Estado cria tantos obstáculos e odiosas burocracias que elas se perdem e sim mesmas, em que algumas não podem ser cumpridas sem a realização das outras e as outras por suas vezes não são cumpridas sem a realização das que a exigiu. Tem-se assim um ciclo vicioso[11], em que um “abismo chama outro abismo[12]”.
Em situações como essas, que infelizmente na praxe cartorial não são poucas, defendemos uma postura conciliatória do oficial, em envidar esforços para resolver o problema dos usuários.
Destarte, o oficial de registro de imóvel no seu mister, ao se deparar com a sucessão mortis causa deverá abrandar o rigor da qualificação registraria, não ignorá-la, mas também sopesá-la com o princípio da saisine, jamais se olvidando que nessas situações temos especial forma de transmissão de propriedade, em que os vivos sucedem com o status do morto.
Informações Sobre o Autor
Marcos Alberto Pereira Santos
Titular do Cartório Santos – Ofício Único de Pacajá/PA