Capacidade e legitimação nos negócios jurídicos

Sumário: Introdução; 1. Resumo; 2. Abrangências; 2.1. Começo e fim
da personalidade jurídica; 2.2. Os absoluta e relativamente incapazes; 2.2.1. o
menor de dezesseis anos; 2.2.2. o enfermo e deficiente mental; 2.2.3. o que,
ainda que transitoriamente, não pode exprimir sua vontade; 2.2.4. o maior de dezesseis e
menor de dezoito anos; 2.2.5. o ébrio habitual e o viciado em tóxicos; 2.2.6. o
que, por deficiência mental, tenha o discernimento reduzido; 2.2.7. o
excepcional, sem desenvolvimento mental completo; 2.2.8. o pródigo; 2.2.9. o silvícola;
2.3. Efeitos dos atos jurídicos e atos jurídicos; 1.4. Negócios jurídicos e
atos jurídicos. 3. Capacidade e legitimação para a prática de negócios
jurídicos; 4. Conclusão.

Introdução

Conquanto
tratar-se de texto especificamente somente explicitado no novo Código Civil, a
matéria versando sobre negócio jurídico já constava do revogado, sob a rubrica
de atos jurídicos — o que até estimulou alguma doutrina a veicular distinção
entre ambos os institutos. A essência, contudo, manteve-se incólume. Ademais,
houve algumas alterações quanto à capacidade e legitimação para a prática do
negócio jurídico no campo do direito civil, aplicáveis também ao direito
comercial, doravante unificados como Direito Privado. É o que observaremos.

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Ressoa
a capacidade de direito de todos os homens do comando insculpido no artigo 1º
do novo Código Civil (artigo 2º do antigo), ao consagrar que toda pessoa é
sujeito de direitos e deveres ma ordem civil. O dispositivo, contudo, não
outorgou a todos os homens a capacidade de fato, nem poderia, porque nem todos
os são, de vez que a sistematização legal do Direito Material arrola diversos
fatores para que o exercício do direito reconhecido seja realizado, como o faz
quanto à idade e ao estado de saúde da pessoa, ressaltando sempre a
pessoalidade na aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações.

E
a legitimação, não está, a menos no nosso sentir, claramente exposta no Direito
Positivo. Mas, impõe-se para saber se determinado indivíduo tem ou não capacidade
para vincular-se regularmente à determinada situação jurídica. Atrelam-se os
dois institutos, complementando-se a capacidade com a legitimação para a
prática de determinados negócios jurídicos.

Não
foi por outro motivo, certamente, que o mestre Silvio Venosa ressaltou: “Não se
confunde o conceito de capacidade com o de legitimação. A legitimação consiste
em se averiguar se uma pessoa, perante determinada situação jurídica, tem ou
não capacidade para estabelecê-la. A legitimação é uma forma específica de
capacidade para determinados atos da vida civil. O conceito é emprestado da
ciência processual. Está legitimado para agir em determinada situação jurídica
quem a lei determinar. Por exemplo, toda pessoa tem capacidade para comprar ou
vender”.

“Contudo
– prossegue o mestre –, o art. 1.1.32 do Código Civil estatui: ‘Os ascendentes
não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente
o consintam.’ Desse modo, o pai, que tem capacidade genérica para praticar, em
geral, todos os atos da vida civil, se pretender vender um bem a um filho tendo
outros filhos, não poderá fazê-lo se não conseguir a anuência dos demais
filhos. Não estará ele, sem tal anuência, ‘legitimado’ para tal alienação. Num
conceito bem aproximado da ciência do processo, legitimação é a pertinência
subjetiva de um titular de um direito com relação à determinada relação
jurídica. A legitimação é um plus que se agrega à capacidade em determinadas
situações”.[1]

Nesse
passo, fulcra-se o presente apenas em estudo dos institutos, de forma inclusive
comparativa entre o novel e no vetusto Código Civil. A matéria, embora de
relevante significado prático, será enfocada mais sob a ótica
cientifico-acadêmica. Elaboraremos algumas abrangências, apenas para delimitar
e rememorar alguns conceitos dantes estudados, como o começo e o fim da
personalidade jurídica, quem é absoluta e relativamente capaz, efeitos dos atos
praticados pelos incapazes, eventual distinção entre negócios e atos jurídicos
e, às evidências, legitimação e capacidade, estudadas apenas ao cabo do
trabalho, depois de ultrapassados os conceitos básicos, visando melhor
compreendê-las. Anote-se que, salvante a questão da legitimação e capacidade
para os negócios jurídicos, objeto do estudo, tudo o mais não terá a inteira
atenção que merece, porquanto, no nosso sentir, suplantaria em muito os
estreitos limites do presente.

Enfim, muito se poderia dizer a
respeito do tema posto para estudo e de todas as conseqüências que dele
resultam. Deixar-se-á de fazê-lo, contudo, por amor à brevidade, e porque a
picada originária, a esta altura, pelos próprios subsídios a seguir esboçados,
já se transformou em ampla avenida, restando-nos apenas vaticinar breves
pinceladas, sem a audaciosa pretensão de esgotar a matéria.

1. Resumo

As pessoas são essencialmente de
relações sociais, interpessoais. Desde o nascimento comportam-se com ações
recíprocas de dois ou mais corpos; estão interagindo com outras, fazendo-se
presentes nos acontecimentos da vida, no seu nascimento, nos seus progressos,
retrocessos, vicissitudes e extinção. E fazem, precipuamente, através dos atos
da vida civil; atos jurídicos na definição do vetusto Código Civil e, negócios
jurídicos no novel Diploma.

O Direito, atento a tudo isso, não
poderia deixá-lo passar desapercebido, ao léu. Fê-lo, portanto, para que se
garantisse a ordem, a tranqüilidade e a segurança jurídico-social. Mas não se
contentou o legislador em, simplesmente, reconhecer o início e o fim da
personalidade civil e, durante a sua permanência, com a capacidade das pessoas
para a prática de determinados atos da vida. Foi além: em certos casos, impôs
algo mais, tratou do que a doutrina denomina legitimação.

Os
estreitos limites do presente versarão, assim, sobre a capacidade e a
representação nos negócios jurídicos, considerados estes, como pensam juristas
de escol, equivalentes a atos jurídicos, nada havendo que os diferencie.

A
legitimação, adiante-se desde já, não quer significar outra coisa que não a
específica competência da pessoa para a prática de determinado negócio
jurídico. Conquanto estejam presentes no negócio jurídico os requisitos
genéricos necessários para a sua validez e eficácia, alguns haverá que têm por
indispensável presença também a legitimação das partes para a sua validade,
mormente em casos de disponibilidade patrimonial.

Enfim,
ver-se-á, com maior acuidade, em situações práticas que bem espelharão o
sentido dos institutos jurídicos, que enquanto a capacidade refere-se à aptidão
para ser sujeito de direitos e obrigações e exercer, por si ou por outrem, atos
da vida civil, destinando-se, portanto às suas qualidades intrínsecas, a
legitimação consiste em saber se uma pessoa, em face de determinada relação
jurídica, tem ou não capacidade para estabelecê-la, num outro noutro sentido.

2. Abrangências

Abranger
é, segundo os léxicos, abraçar algo, limitar alguma coisa, compreender-se,
incluir-se, entender. Não será por outro motivo que, antes de efetivamente
estudarmos a legitimação e a capacidade nos negócios jurídicos, nós nos
conteremos em algumas linhas gerais de institutos que podem ser considerados
elementos do tema.

Logo,
objetivando a melhor observância e compreensão do tema em comento,
afiguram-se-nos necessárias algumas observações, às vezes até conceituais e de
cunho essencialmente acadêmico, contudo nunca demais relembrar.

2.1. Começo e fim da
personalidade civil

Duas são as pessoas
albergadas pelo manto da legalidade. De um lado, temos a pessoa natural, ente
físico e material, perceptível aos olhos, que sofre, manifesta-se e fisicamente
se extingue. De outro, são-nos apresentadas as pessoas jurídicas, entes
abstratos não sujeitos a padecimentos espirituais,
não sendo, pois um ser orgânico, vivo, dotado de um sistema nervoso, de uma
sensibilidade; subsistem apenas como simples criação ou ficção de direito e não
têm mais garantias do que aquelas que lhe são outorgadas pelo direito, como
fingimento da lei (“fictio iuris”). Tendo-se em mira os fins eminentemente
acadêmicos, nos ateremos apenas às pessoas naturais.

Para as
pessoas naturais, disse-o o artigo 4º do Código Civil de 1916 que sua
personalidade civil começa do nascimento com vida, pondo a salvo desde a
concepção os direitos do nascituro, que ficam condicionados ao seu nascimento
com vida, imperando a respeito condição suspensiva. Obviamente, o nascituro não
tem personalidade, porque está advém apenas com o nascimento com vida; tem
apenas uma expectativa de direito, uma proteção conferida pelo Direito.

No novo
Codex, a regra foi insculpida no artigo 2º, contendo redação idêntica. O relevo
desse estudo redunda no fato de que, dada a gênese da personalidade, torna-se o
homem sujeito de direitos e obrigações.

Findar-se-á
a existência da pessoa natural com a morte, mas muitos dos direitos que lhe
pertenciam quando em vida, ainda subsistirão, alguns por todo o sempre.

2.2. Os absoluta e
relativamente incapazes

O Código de 1916
arrolava quatro casos de pessoas absolutamente incapazes de exercer
pessoalmente os atos da vida civil. Eram eles: os menores de 16 anos; os loucos
de todo o gênero; os surdos‑mudos, que não puderem exprimir a sua
vontade; e, os ausentes, de domicílio ignorado, de existência duvidosa e cujos
bens foram deixados ao léu. Por serem absolutamente incapazes, estavam
inteiramente tolhidos da capacidade de exercer por si os atos da vida civil.
Diante da nova ordem legal, três são as hipóteses, de melhor técnica e
abrangência, de pessoas absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos
da vida civil (art. 3º), a saber: os
menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade ou deficiência mental, não
tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; os que, mesmo
por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

Relativamente
incapazes para certos atos, ou à maneira de os exercer, eram três no Código de
1916: os maiores de 16 e os menores de 21 anos; os pródigos; e, os silvícolas,
estes sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos
especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do
País. Agora serão quatro (art. 4º do novo CC): os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; os ébrios
habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o
discernimento reduzido; os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
os pródigos. Quanto aos silvícolas, a capacidade será regulada por legislação
especial.

Vejamos, brevemente, os novos casos de incapacidade
civil.

Quanto aos
absolutamente incapaz:

2.2.1. O
menor de dezesseis anos

A questão aqui é puramente biológica e não houve
qualquer modificação em relação ao vetusto Código Civil, tendo-se por menor
incapaz o que ainda não completou dezesseis anos de idade. Clóvis, citado por
Silvio Venosa, observa que nessa idade o indivíduo já recebeu, no seio
familiar, certas noções essenciais, que lhe dão o critério moral necessário
para orientar-se na vida, e a educação intelectual já lhe deu luzes suficientes
para dirigir a sua atividade jurídica, sob a vigilância ou assistência da
pessoa designada pelo direito para auxiliá-lo e protegê-lo.[2]

2.2.2. O
enfermo e o deficiente mental

Aqui fala a lei que a situação
mental exclui o necessário discernimento para a prática dos atos, como ocorre
na demência arteriosclerose.

Não andou bem o legislador,
redigindo dispositivos que, na prática, serão de difícil aplicação, conquanto
tenham efeitos jurídicos bem distintos. Isso porque, será considerado
relativamente incapaz o deficiente mental que tiver discernimento reduzido e o
excepcional sem desenvolvimento mental completo. Enquanto que, será
absolutamente incapaz quem não tiver necessário discernimento.

Ora, ambos estão tratando do
discernimento reduzido ou insuficiente. Melhor teria sido a disposição
legislativa se houvesse dito que relativamente incapaz é o que não tem completo
discernimento, embora tenha algum; e, absolutamente incapaz o que não tem
qualquer discernimento, nenhum resquício apenas. Ficará para o Magistrado, como
sempre, o poder de decidir, com base em prova técnica segura, se se trata de
absoluta ou relativamente incapaz.

Acresça-se, de nossa parte, que,
para a configuração da incapacidade em comento, exige-se a deficiência mental;
a incapacidade de entender a prática do ato civil que se lhe apresenta ou de
determinar-se de acordo com essa compreensão; e, que tais faltas de
discernimento sejam consentâneas à prática do ato. Se a deficiência for
anterior ao ato ou posterior, dês que aqui não lhe comprometa a validade e
eficácia, entendemos que não se amolda ao dispositivo.

Assim, a incapacidade absoluta das
pessoas que ostentam enfermidade ou deficiência mental, há de ser tal que lhes
retire o discernimento para a prática dos atos da vida civil, que inquine
totalmente o ato e, não obstante a redação do Código Civil, a falta de bem
avaliar a situação tem de ser absoluta.

2.2.3. O que,
ainda que transitoriamente, não pode exprimir sua vontade

É uma linha muito tênue a que separa a pessoa que
não pode exprimir sua vontade, por causa transitória, das demais hipóteses
aventadas pelo legislador. Ao que se percebe, este ficou mais para cláusula
aberta, abrindo um leque para o aplicador da lei, amoldando a este inciso todas
as demais hipóteses que não se adequarem aos demais dispositivos da Lei Civil.

Como tal pode-se imaginar a embriaguez total e de
pequena duração, o estado etílico eventual daquele que assim estava apenas no
momento que praticou o ato ou negócio jurídico, mas que não é ébrio habitual;
também o sonâmbulo e o epilético. De qualquer modo, a causa de redução da
capacidade de discernimento há de ser efêmera, breve. Haverá na prática o grave
inconveniente, notadamente quanto à embriaguez voluntária, mas não se poderá
admitir que uma pessoa freqüente um restaurante, ponha-se espontaneamente em
estado de embriaguez total e, consumindo muito mais do que poderia pagar, venha
ao depois levantar sua incapacidade eventual de discernimento como objeção ao
cumprimento da obrigação assumida.

Quanto aos
relativamente incapaz:

2.2.4. O maior de dezesseis e menor de dezoito anos

Houve inovação no Código Civil
quanto à capacidade relativa sub studio.
No Código de 1916, era relativamente incapaz o menor de 21 anos e maior de
dezesseis. Dos dezesseis anos completos a vinte e um incompletos, portanto, era
relativamente capaz. Agora a situação é nova: a maioridade civil iniciar-se-á
aos dezoito anos completos (e não mais vinte e um anos, como no vetusto
Código).

O avanço da civilização, a
proximidade dos meios de comunicação, cultura e aprendizado, permitem que uma
pessoa de dezoito anos tenha completa sapiência para a prática de atos e
negócios da vida civil.

2.2.5. O ébrio habitual, o viciado em tóxicos

O estado de intoxicação agudo ou
passageiro provocado pelo álcool, ou por qualquer substância estupefaciente que
reduz a capacidade de discernimento, agora, foi arrolado como hipótese que, se
presente, torna a pessoa relativamente capaz. Quanto à prova da ebriedade e da
toxicomania, temos que o exame clínico será de valor relativo, podendo ser
rechaçado por prova oral ampla, notadamente quanto ao exame de dosagem
alcoólica positivo. Há pessoas que, sem embargo de seu estágio reduzido de
embriaguez ou toxicomania, apresentam-se como se estivesse extremamente
embriagados ou alucinados, porém com total capacidade de discernimento; a
recíproca também é verdadeira, o que reduz o valor probante da prova técnica.

2.2.6. O que, por deficiência mental, tenha o discernimento reduzido

Valem aqui os comentários feitos
linhas acima, quando tratamos dos absolutamente incapazes[3],
de modo que, todas as situações que escaparem da vala daqueloutra incapacidade,
cairão nesta.

Por deficiência mental, deve-se
considerar toda e qualquer moléstia mental, inclusive psicose
maníaco-depressiva, esquizofrenia, paranóia, etc.

Ressalte-se, entretanto, que
diversamente daquele outro caso (que entendemos ser hipótese de total falta de
discernimento), aqui haverá um vestígio de capacidade de compreensão, porém
reduzido. É caso de meia capacidade, quando a pessoa não é inteiramente capaz
do entendimento, enquanto no inciso II do artigo 3º ele é inteiramente incapaz
de entender. Será o desenvolvimento mental incompleto, ou retardado, em razão
da moléstia mental de qualquer natureza.

Servem bem ao caso as hipóteses do
P. único do artigo 26 do Código Penal, que trata das pessoas de desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, cujos requisitos são: “1. Causas. Perturbação
de saúde mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado. 2.
Conseqüências. Falta de inteira capacidade de entender a ilicitude do fato ou
de orientar-se de acordo com esse entendimento. 3. tempo. Existência dos dois
requisitos anteriores no momento do crime.”[4]
Apenas leia-se atos civis onde se lê crime.

2.2.7. O excepcional, sem desenvolvimento mental completo

Excepcionais são as pessoas
(diz-se mais especialmente de crianças) portadoras de algum defeito físico ou enfermidade,
que os prejudica na aprendizagem ou diminui sua capacidade para atividades
físicas.

Interessou ao Código apenas a
questão mental, deixando de lado a situação física, conquanto haja pessoas que,
por serem excepcionais, não conseguem sequer firmar documentos ainda que por
datiloscopia.

Outra situação de difícil
distinção prática, pois, sendo daqueles casos em que há total prejuízo de
compreensão, o que não é raro, como será tratado o excepcional? Absoluta ou
relativamente incapaz? Por se tratar de situação específica, preferida pelo
legislador, o excepcional seria sempre relativamente incapaz, o que não se
mostra razoável, de modo que somente após a perícia poder-se-á dizer, com total
segurança, se é ou não relativamente capaz.

2.2.8. O pródigo

A preocupação com o perdulário não
é novidade no direito posto, uma vez que já constava do Código de 1916. A
prodigalidade decorre da desordenada assunção de obrigações, do ato ou efeito
de gastar ruinosamente, da profusão excessiva e da superabundância. Pessoas que
tais, além de dissipar o acervo necessário à sua sobrevivência, fá-lo ainda em
detrimento de todos aqueles que direta ou indiretamente dependem da sua
capacidade de gestão e organização.

Anote-se que, não raro, a
prodigalidade decorre de doença mental e, em assim sendo, o pródigo deverá ser
tratado como pessoa sem o necessário discernimento para praticar atos da vida
civil, o que na prática terá efeitos distintos, sendo nesse passo tratado como
absolutamente incapaz.

2.2.9. O silvícola

A
situação do silvícola é tratada pela Lei n. 6.001, de 1973, colocando o índio,
e as comunidades indígenas, sob proteção tutelar enquanto não estiverem
inteiramente adaptados à sociedade. Quem representa e assiste juridicamente aos
índios é a Fundação Nacional do Índio – FUNAI (Lei n. 5.371/67)

Estes,
portanto, os casos de capacidade relativa e absoluta tratados no novo Código
Civil. Na vereda exposta, ao relativamente capaz não há vedação da prática de
atos civis, mas sim a necessidade de que seja assistido por quem detém este
ofício; delimita o campo de atuação deles. Protege-se, assim, a segurança
jurídica na prática de determinados atos, não apenas para o relativamente
incapaz, mas também para o contratante, tanto o é que o Código aboliu o
instituto da restituição “in integrum”, por meio do qual o menor lesado em seus
interesses poderia ver-se ressarcido do que pagou, quando válido fosse o ato
lesivo.

Aos
18 anos completos acaba a menoridade (art. 5º do novo Código), ficando
habilitado o indivíduo para todos os atos da vida civil. Simplificou o Estatuto
Civil recém-publicado, portanto, deixando o mais para capítulos específicos.

O que nos interessa, para
efeitos de estudo, é a capacidade negocial do agente, porque imprescindível à
validade do negócio jurídico (art. 104 do novo CC). Sua aptidão para a prática
em negócios jurídicos como declarante ou declaratário (emprestando, com a
devida licença, as palavras de Silvio Venosa).

2.3. Efeitos dos
atos praticados por incapazes

Para a
validade do negócio jurídico, reclama a Lei haja presença, entre outros
elementos essenciais genéricos, de agente capaz. Pressupõe-se ao agente, assim,
a capacidade e, caminhando junto, a legitimação. Nesse passo: “Os detentores da
incapacidade de exercício só podem praticar os atos da vida civil mediante o
instituo da representação, como regra geral. Supre-se a incapacidade dos
absolutamente incapazes pela representação, enquanto a incapacidade relativa,
dos maiores de dezesseis anos e menores de vinte e um, principalmente, pelo
instituto da assistência”.[5]

É anulável o ato jurídico,
dispõe o Código de 1916, por incapacidade relativa do agente. As obrigações
contraídas por menores, entre 16 e 21 anos, são anuláveis, quando resultem de
atos por eles praticados sem autorização de seus legítimos representantes; sem
assistência do curador, que neles houvesse de intervir. No novo Diploma, a
regra vem esposada no inciso I do artigo 171,
determinando que, além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o
negócio jurídico por incapacidade relativa do agente.

O
menor, entre 16 e 21 anos, não pode, para se eximir de uma obrigação, invocar a
sua idade, se dolosamente a ocultou, inquirido pela outra parte, ou se, no ato
de se obrigar, espontaneamente se declarou maior. E, equipara‑se ao maior
quanto às obrigações resultantes de atos ilícitos, em que for culpado.

Enfim, são nulos
os negócios jurídicos celebrados por pessoa absolutamente incapaz, verbera o
inciso I do artigo 166 do novo Código. Manteve-se, assim, a previsão havida no
artigo 145, inciso I do revogando Código, apenas se observado que, agora, as
regras de quais pessoas são absolutamente incapazes foram alteradas. E, não se
fala mais em ato jurídico, mas em negócio jurídico.

2.4. Negócios
jurídicos e atos jurídicos

A
expressão “ato jurídico”, sistema adotado no vetusto Código Civil em prestígio
ao Código francês, foi sempre tratada como sinonímia de “negócio jurídico”,
conquanto houvesse objeção dos pandectistas alemães e quem afirmasse existir,
de forma nítida e inescondível, diferença entre os conceitos[6].
Pretensão de diferenciação esta que não passou desapercebida aos olhos sempre
atentos do jurista Nelson Godoy Bassil Dower, prescrevendo o mestre que se
costuma distinguir ato jurídico, de negócio jurídico, entendendo que, neste último,
há o propósito da vontade de obter um efeito jurídico imediato, ou seja, a
vontade do agente é dirigida a determinado fim lícito, ao passo quem, naquele,
o seu autor adquire o direito independente da vontade.[7]

De
certo modo, não se pode negar que para os negócios jurídicos haverá, sempre, a
livre manifestação de vontade das partes, ao menos de uma, ocorrendo a
obrigação porque alguém a contraiu espontaneamente, donde se pode concluir que
apenas as pessoas capazes estão aptas para os negócios jurídicos. Enquanto que,
para os atos jurídicos em geral, nem sempre imprescindirá tal elemento
volitivo: há direitos que a parte ostenta independente de sua aquiescência ou
manifestação, porque deriva invariavelmente de prévia disposição legal, daí
dispensar-se, em tese, até mesmo a capacidade do agente. Algo parecido ocorre
no campo da responsabilidade civil, quando se compara a aquiliana com a
contratual.

Contudo,
a priori, ousamos, sempre com a
reiterada vênia, discordar da douta opinião. De efeito, os atos jurídicos visam
sempre a adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos.

De
modo que, a singela observação de que os negócios jurídicos cingem-se apenas a
uma declaração privada de vontade que visa a produzir determinados efeitos
jurídicos, daí distinguirem-se dos atos jurídicos em geral, não nos convence.
Ora, não seriam exatamente os atos jurídicos os objetivados num negócio
jurídico? Não é através da manifestação particular de vontades que se
adquirirá, modificará, resguardará, transferirá ou se extinguirá direito? Em
todas as ações humanas que tenham por fim obter efeito jurídico imediato, o ato
volitivo não está presente? Cremos que sim, embora reconhecendo que o negócio
jurídico vai além ao gerar não apenas direitos, mas também obrigações. A
prática, a todo instante, nos comprova isso. Um distrato, por exemplo, não raro
abrange todos os verbos definidores do ato jurídico.

E não é só. Há ato jurídico sem
que haja exteriorização da vontade? Provavelmente não, difícil mostra-se-nos
identificá-los. Dir-se-ia que, no direito sucessório, o nascituro tem direito
independente de sua vontade. Entrementes, o seu direito é condicional,
condicionado a um fato jurídico: o nascimento com vida. Ademais, a confirmação
de seus direitos hereditários dependerá de aceitação, ainda que se pudesse
falar em presumida ou tácita. E o nascimento, como a morte, é fato jurídico e
não ato jurídico. Então, conceituar-se negócio jurídico pela presença do
elemento volitivo, daí distinguir-se do ato jurídico, não vinga. Outrossim, a
subordinação da vontade expressada aos limites da lei também há no ato
jurídico. Se se falasse que o negócio jurídico é gênero, do qual o ato jurídico
é espécie, maior razão haveria, pois aquele, pela doutrina, exige mais
pressupostos que este.

Com uma situação, porém, devemos
concordar: que os negócios jurídicos têm suas conseqüências controladas pela
vontade das partes e os atos jurídicos pelo primado da lei. Para os negócios
jurídicos, a vontade das partes vai apenas até a sua exteriorização, quando
então impera a lei; o que não se vê no ato jurídico. É o que se pode inferir,
apenas exemplificativamente, quando se compara o casamento (ato jurídico) e
contrato de compra e venda (negócio jurídico).

Observe-se, enfim, que o Código de
1916 já veiculava artigos sobre atos jurídicos nulos, anuláveis e ineficazes (e
a doutrina em atos inexistentes), tendo em conta, preponderantemente, casos
nitidamente de manifestação de vontade viciada e incapacidade da pessoa. Se o
fez, fê-lo por referir-se a negócios jurídicos também, pois tanto estes como
aqueles reclamam a volição livre. O mesmo se vislumbra no Código Civil em
vacância.

Calham bem as palavras do sempre
lembrado Orlando Gomes: “No comércio jurídico, os principais fatos
constitutivos das obrigações consistem no intercâmbio de bens, na dação de
coisas ou na prestação de serviços. É, principalmente, sob a forma de negócios
jurídicos que tais fatos entram no campo do Direito. Na formação das relações
obrigacionais, os negócios jurídicos mais freqüentes e fecundos são os
contratos”.[8]

A função mais característica do
negócio jurídico é, porém, servir de meio de atuação das pessoas na esfera de
sua autonomia, lembrou-o bem o acadêmico Luiz Wanderley dos Santos. E
acrescenta o jovial jurista: “É através dos negócios jurídicos que os
particulares auto-regulam seus interesses estatuindo as regras a que
voluntariamente quiseram subordinar o próprio comportamento. Domina atualmente
o pensamento de que o negócio jurídico exprime o poder de autodeterminação dos
sujeitos de direito, notadamente no campo das relações patrimoniais. Encarado
esse poder na sua Junção de auto-disciplina das próprias pessoas interessadas
na constituição, modificação ou extinção de uma relação jurídica, apresenta-se
como expressão da autonomia privada. Salienta-se a correlação entre negócio
jurídico e autonomia privada, dizendo-se que se a autonomia privada é o poder
de autodeterminação, o negócio jurídico é o instrumento através do qual o poder
de autodeterminação se concretiza. Para Santoro Passarelli , ‘Negócio Jurídico
é o ato de autonomia privada com o qual o particular regula por si os próprios
interesses.’”

Logo, certamente não se há falar em distinção,
embora o “novel” Código Civil tentou pôr fim à celeuma, porém preferindo rotular
os atos jurídicos em título distinto dos negócios jurídicos – tratando estes
como tratou aqueles atos da lei anterior –, apenas para assentar que aos atos
jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber,
as disposições inerentes a estes (art. 185). Seguiu-se, ademais, a posição
doutrinária de seu principal mentor, Miguel Reale. De um jeito ou de outro,
toda a matéria tratada no Código de 2002 refere-se a negócios jurídicos, e não
mais a atos jurídicos, ficando para estes subsidiariamente as regras daqueles,
reforçando a já vaticinada idéia de serem espécie do gênero.

3. Capacidade e
legitimação para a prática de Negócios Jurídicos

São capazes, por amparo do
ordenamento jurídico, as pessoas que têm aptidão para, por si ou por quem de
direito as represente, exercer atos da vida civil. E, capacidade de fato,
inserir-se-á na faculdade outorgada às pessoas de fazer valer os direitos, de
exercê-los, dependendo duma prévia disposição volitiva do titular do direito,
de modo que lhe poderá ser retirada tal faculdade.

A legitimação, de seu turno,
condiciona o exercício de certos direitos (capacidade), à possibilidade da
pessoa estabelecê-lo ou não.

Esta a relevante distinção é foco do presente estudo, considerando-se a
capacidade como aptidão intrínseca da parte que dará à luz ao negócio jurídico.
E legitimação, sentencia Emilio Betti: “é uma posição de competência,
caracterizada quer pelo poder de realizar atos jurídicos que tenham um dado
objetivo, quer pela aptidão para lhes sentir os efeitos, em virtude de uma
relação em que a parte está, ou se coloca, com o objeto do ato”.[9]

“Personalidade
todos os homens têm, desde o nascimento”, posiciona-se o insigne Miguel Reale,
acrescendo que: “Para se reconhecer a personalidade não é mister indagar do
sexo, da idade ou do discernimento mental. Recém-nascidos ou dementes, todos
são pessoas, todos possuem personalidade. Nem todos, porém, dispõem de igual
capacidade jurídica, isto é, têm igual possibilidade de exercer certos atos e
por eles serem responsáveis. A capacidade pressupõe certas condições de fato
que possibilitam o exercício de direitos. Assim, por exemplo, a criança não é
capaz, e o demente também carece de capacidade”.[10]

Ou,
mais sucintamente, a capacidade de direito é a aptidão para ser sujeito de
direitos e obrigações, e exercer, por si ou por outrem, atos da vida civil;
enquanto a legitimação consiste em saber se uma pessoa, em face de determinada
relação jurídica, tem ou não capacidade para estabelecê-la, num outro noutro
sentido. Enquanto a capacidade de gozo é pressuposto meramente subjetivo do
negócio jurídico, a legitimação é pressuposto subjetivo-objetivo[11].

Oportunos
são os exemplos citados por Silvio Venosa acerca da falta de legitimação para a
prática de certos atos, comparando os institutos. Verbera o Mestre: “marido e
mulher, para a prática dos atos enumerados nos arts. 235 e 242 necessitam do
assentimento recíproco, ou na falta, de autorização judicial; o condômino de
coisa indivisível, para vender sua quota-parte a estranhos ao condomínio, salvo
se houver previamente oferecido preferência aos demais condôminos (art. 1.139);
as pessoas indicadas nos incisos I a VIII do art. 183, que, apesar de
genericamente capazes, não podem casar devido a laços de parentesco de sangue
ou civil, ou à preexistência de outro vínculo matrimonial não extinto, ou à
circunstância de haverem sido condenadas pela prática de certos atos
qualificados como crime; o cônjuge adúltero para fazer doações a seu cúmplice
(art. 1.177 do Código Civil)”.[12]

E,
mais claramente, os exemplos ministrados por Serpa Lopes: “o proprietário tem
direito de alienar livremente seus bens (capacidade de gozo), mas, para
vendê-los a um dos descendentes, carecerá do prévio consentimento dos demais –
art. 1.132 (legitimação)”.[13]
Repercutindo-se sobre o proprietário ascendente o disposto no artigo 1.132 do
Código de 1916, resulta o não prevalecimento da capacidade volitiva dos
contratantes, onde os descendentes do vendedor não foram consultados,
importando em que o negócio jurídico não tem a mínima repercussão no mundo
jurídico.

Semelhante
redação lê-se no artigo 496 do Código de 2002, onde foi considerada anulável a
venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge
do alienante expressamente houverem consentido, dispensando-se o consentimento
do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória (p. único).[14]

Não
se afeta o patrimônio dos descendentes e do cônjuge que, assim, mantêm seus
respectivos acervos intocados. Neste sentido, têm sido os julgados mais
hodiernos do E. Tribunal de Justiça paulista, tal como já decidiu em sua
Colenda Segunda Câmara, onde se preconizou que o fundamento do artigo 1.132 se
destina a evitar doações inoficiosas, ou, como largamente queriam as Ordenações
Manoelinas, visando neutralizar “enganos e demandas entre os
descendentes”.

Desnecessário,
outrossim, vasculhar todo o acervo doutrinário já espostejado sobre a espécie,
tal como manifestado nos autos da Apelação Cível n. 119.556-2, mas onde restou
ponderada a sempre prestigiosa opinião de CLÓVIS, pontificando que “as
vendas realizadas contra esta proibição são nulas”, e tal, com respaldo na
própria opinião peninsular de MESSINEO, ou seja, in pratica, è come se il
contratto in frode nom sia venuto in essere (in “Il Contratto in
Genere”, t. II/283, Editora Giuffrè, Milão, 1972)[15].

Nestas
condições, comprometida a validade dos negócios, em razão do reconhecimento de
suas nulidades, atingidas em seu âmago a liceidade dos objetos de que ora se
cuida[16],
não há como se possa recusar a inescondível contaminação do conteúdo do negócio
jurídico assim entabulado, resultando, daí, inclusive, a irrelevância das
contratações entabuladas sucessivamente.

Outro
caso de confronto entre legitimação e capacidade se encontra no direito sucessório.
Este definiu com precisão no seu artigo 1.577 que a capacidade para suceder é a
do tempo da abertura da sucessão, que se regulará conforme a lei então em vigor. Ou, modernamente:
“Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da
abertura da sucessão” (CC de 2002, Art. 1.798). Posto que, em verdade, esse
dispositivo legal cuide mais tecnicamente da legitimidade para suceder, eis que
esta é um requisito subjetivo-objetivo de eficácia do ato jurídico, específica,
pois, e não genérica como a capacidade, restou estatuído ser disciplinada a
sucessão pela lei então em vigor na data de sua abertura.

Situação
deste jaez foi enfrentada pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
no julgamento do Agravo de instrumento tirado de respeitável decisão que, nos
autos de arrecadação de herança jacente, reconheceu como destinatário dos bens
deixados pela “de cujus” a Universidade de São Paulo, rejeitando a pretensão da
Municipalidade de São Paulo, porque havia entendido o ilustre prolator da
respeitável decisão que, tendo a autora da herança falecido antes do advento da
Lei n. 8.049, de 21.6.90, e ocorrendo a transmissão da herança por ocasião do
óbito, não incidia na espécie esse diploma legal[17].

Entendeu
a Corte, obviamente, que no caso o artigo 1.603, inciso V, do Código Civil não
havia sido alterado pela Lei n. 8.049, de 1990, quando do óbito da autora da
herança.

Logo,
não estava a agravante legitimada a figurar como sua sucessora, pois quem se
situava como tal, ocupando a última posição na ordem da vocação hereditária
estabelecida no artigo 1.603 do Código Civil era o Estado e, ex vi do Decreto
Estadual n. 27.219 – A de 1957, com observância do Decreto Federal n. 8.207, de
1945, a agravada como destinatária dos bens arrecadados.

E
a razão acompanha a Corte. Com argúcia que lhe é peculiar, o conspícuo
desembargador Donaldo Armelin, em seu esmerado voto condutor, deixou bem claro
ser matéria objeto de confronto de legitimação e capacidade. Conseqüentemente,
não havia como se admitir a Municipalidade como beneficiária dos bens
arrecadados, já que a sua legitimidade decorrente do advento da Lei n. 8.049,
de 1990, restou arredada pelo direito do Estado.

E
outro exemplo prático nos oferece a mesma Seleta Casa da Justiça paulista.
Casado em segundas núpcias pelo regime da separação legal de bens, por força do
que estabelece o artigo 258, parágrafo único, inciso II, do Código Civil, o pai
e sogro dos autores, com a anuência destes, doou à consorte o único bem imóvel
que à época possuía, com cláusula de impenhorabilidade e inalienabilidade e com
reserva de usufruto vitalício. Com o falecimento da donatária, pretenderam os
autores a declaração de nulidade daquela doação, bem como a exclusão dos bens
descritos no inventário da falecida e que, segundo os autores, pertencem ao
viúvo. A insurgência recursal mereceu acolhida, conquanto parcial, para o fim
de ser declarada a nulidade da doação[18].

Deveras,
permitem-se doações entre cônjuges, antes ou após o casamento. Mas tal há de
ser adequado ao regime matrimonial. Se o regime for o de separação obrigatória,
nula será a liberalidade. É o comando dos artigos 226, 230 e 312, do Código
Civil de 1916.

Doutrina
Washington de Barros Monteiro, saudoso Professor Emérito das Arcadas, que
“O código fala apenas em doações antenupciais; mas são também permitidas
doações entre cônjuges, depois do casamento, desde que a isso não se oponha o
regime matrimonial (artigo 226). Assim, não pode haver doação entre
consorciados pelo regime de comunhão universal de bens; também no regime de
separação legal, inadmissíveis serão tais doações que burlariam o preceito
determinador da obrigatória separação”. Douta posição da qual não discrepava
Clóvis Beviláqua: “Também não podem, como, em geral, todos aqueles a quem
a lei impõe o regime da separação, fazer doações inter vivos, um ao outro. De
outro modo, a lei seria, facilmente, burlada. É esta uma proposição que
dispensa qualquer esclarecimento. É uma inferência que se impõe”.[19]

Também
não vinga o argumento de a anuência daqueles autores servir de óbice ao
aforamento da pretensão, pautada em alegância de nulidade do negócio, por
violador da lei. Isso por simples razão: a incapacidade para a prática do ato,
na hipótese, não poderia ser suprida pela autorização de outrem e nem esta conferia
legitimação ao doador, posto que a incapacidade instituída por lei a benefício
de quem dela é portador, e não de seus descendentes. Conforme preleciona Caio
Mário da Silva Pereira, “o requisito subjetivo de validade dos negócios
jurídicos, envolve, pois, além da capacidade geral para a vida civil, a
ausência de impedimento ou restrição para o negócio em foco: é necessário,
portanto, que o agente, além de capaz, não sofra ainda diminuição instituída
especificamente para o caso”. E acrescenta: “quando a lei define as
incapacidades, tem em vista proteger os seus portadores”.[20]

Daí
por que, impedido que estava de doar, porque também o estava para celebrar
pacto antenupcial, aquela era mesmo vedada. Aceitá-la transmudar-se-ia o regime
legal e obrigatório que se lhe impunha.

Débora
Gozzo bem adverte sobre isso: “Convém chamar a atenção, todavia, para as
hipóteses normativas previstas nos incisos I a IV do parágrafo único do artigo
258 da lei civil. Nelas se encontram arroladas as pessoas que não podem celebrar
pacto antenupcial. A elas impõe-se necessária e obrigatoriamente o regime de
separação de bens. Elas não têm legitimidade – embora possam ter a chamada
capacidade de fato – para pactuarem regime diverso daquele que por lei lhes é
imposto. O objetivo desta proibição é simplesmente o de evitar que qualquer uma
delas ali elencadas possa vir a ser vítima de pessoa inescrupulosa”.

Por
isso que, encontrando na infração da lei intransponível obstáculo, a declaração
de vontade do doador, desprovida de legitimidade, ainda que com a anuência
referida, não prevalece e tampouco alcança o resultado almejado, porque o
impedem disposições normativas de ordem pública, que vedam a prática do ato e
proíbem a alteração do regime de bens, impedimentos que a anuência dos herdeiros
não poderia obviar.

Além
da capacidade geral, exige-se a capacidade especial, observa o maior intérprete
daquele Diploma Congressual, Clóvis Beviláqua: “Assim, o maior casado é
plenamente capaz, porém, no direito pátrio, não tem capacidade para alienar
imóvel senão mediante autorização uxória ou suprimento desta pelo juiz. O
indigno de suceder, nenhuma diminuição sofre na sua capacidade civil, mas não
tem nada para herdar da pessoa, em relação a qual é considerada indigna, pelo
que não tem eficácia jurídica a declaração que acaso tenha feito de aceitar a
herança”.[21]

Em
face desses exemplos, vê-se que legitimação nada mais representa que não a
competência específica da pessoa para a prática de determinado negócio
jurídico. Não basta, portanto, ser capaz plenamente para que o ato seja
perfeito. É imprescindível que haja também legitimação das partes para a
validade do negócio jurídico.

Negócios
jurídicos haverá que, além de a pessoa estar no pleno gozo de seus direitos,
estar inteiramente capaz de exercê-los, de ser o objeto lícito, possível
determinado ou determinável e não ofender forma prescrita ou não defesa em lei
deverá ainda ser previamente observado o que determinada a Lei Civil, como uma
prévia ouvida e manifestação de outrem, a impossibilidade de se fazer
determinado negócio e a observância de certa gradação legal.

4. Conclusão

E assim chegamos ao
fim. Certamente não alcançamos a solidez do pensamento dos mais célebres
escritores, dos arautos da literatura jurídica e dos agraciados pelo dom da
exteriorização ao papel, dos pensamentos filosóficos, jurídicos e científicos
humanos, nem jamais sonharíamos com esplendor que tal.

Demonstrou-se apenas
que, sem embargos das doutas e respeitáveis posições contrárias e da
sistemática do Código Civil a vigorar, negócios jurídicos e atos jurídicos se
equivalem, nada havendo que os diferencie, tanto que o novo Código Civil deixou
de lado o de outrora tratamento dispensado a atos jurídicos preferindo negócios
jurídicos, remanescendo para aqueles regras de subsidiariedade.

As pessoas são essencialmente de
relações sociais, interpessoais. Desde o nascimento comportam-se com ações
recíprocas de dois ou mais corpos, uns nos outros; estão interagindo com
outras, fazendo-se presentes nos acontecimentos da vida, no seu nascimento, nos
seus progressos, retrocessos, vicissitudes e extinção. E fazem, precipuamente,
através dos atos da vida civil; atos jurídicos na definição do vetusto Código
Civil e, negócios jurídicos no novel Diploma.

O Direito, atento a tudo isso, não
poderia deixá-lo passar desapercebido, ao léu. Fê-lo, portanto, para que se
garantisse a ordem, a tranqüilidade e a segurança jurídico-social. Mas não se
contentou o legislador em, simplesmente, reconhecer o início e o fim da
personalidade civil e, durante a sua permanência, com a capacidade das pessoas
para a prática de determinados atos da vida. Foi além: em certos casos, impôs
algo mais, tratou do que a doutrina denomina legitimação.

Os
estreitos limites do presente versarão, assim, sobre a capacidade e a
legitimação nos negócios jurídicos, considerados estes, como pensam juristas de
escol, equivalentes a atos jurídicos, nada havendo que os diferencie.

A
legitimação não quer significar outra coisa que não a específica competência da
pessoa para a prática de determinado negócio jurídico. Conquanto estejam
presentes no negócio jurídico os requisitos genéricos necessários para a sua
validez e eficácia, alguns haverá que têm por indispensável presença também a
legitimação das partes para a sua validade, mormente em casos de
disponibilidade patrimonial.

Negócios
jurídicos haverá que, além de a pessoa estar no pleno gozo de seus direitos,
ser inteiramente capaz de exercê-los, de ser o objeto lícito, possível,
determinado ou determinável e não ofender forma prescrita ou não defesa em lei
deverá ainda ser previamente observado o que determinada a Lei Civil, como, por
exemplo, uma prévia ouvida e manifestação de outrem, a impossibilidade de se
fazer determinado negócio e a observância de certa gradação legal.

Viu-se,
com acuidade, em situações práticas que bem espelharam o sentido dos institutos
jurídicos, que enquanto a capacidade refere-se à aptidão para ser sujeito de
direitos e obrigações e exercer, por si ou por outrem, atos da vida civil,
destinando-se, portanto às suas qualidades intrínsecas, a legitimação consiste
em saber se uma pessoa, em face de determinada relação jurídica, tem ou não
capacidade para estabelecê-la, num ou noutro sentido.

A capacidade,
significando a aptidão que a pessoa tem para, por si ou por quem de direito a
represente, praticar negócios jurídicos, no novo Direito Material Civil, a terá
plenamente os maiores de 18 anos, salvo se, por enfermidade ou deficiência
mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses negócios,
ou, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

Podem praticar alguns
negócios jurídicos também, os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos,
os ébrios habituais, os viciados em substância estupefaciente e os que, por
deficiência mental, tenham discernimento reduzido; os excepcionais, sem
desenvolvimento mental completo e os pródigos. Mas para estes a lei exige a
presença de outrem, tipologicamente descrita, apenas para acompanhar e assistir
à prática do negócio, que será realizado pelo próprio incapaz, porém escoltado
por quem de direito.

Por
derradeiro, alguns dos negócios jurídicos, não obstante a presença da
capacidade, impõem ainda uma condição: a possibilidade da pessoa estabelecê-los
ou não. Tem-se aqui a legitimação, que perquirirá se uma pessoa, em face de
determinado negócio jurídico, tem ou não possibilidade de estabelecê-la.

 

Bibliografia

BARROS MONTEIRO, Washington de. Curso de direito civil.
23ª ed. São Paulo: Saraiva, 1984, vol. I.

______ . Curso de
Direito Civil
. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, v. 2

BEVILÁCQUA. Clóvis. Código
Civil Comentado.
10ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, vol. II.

BETTI, Emilio. Teoria
geral do negócio jurídico
. Coimbra: Coimbra, 1969, t. 2.

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 3ª ed. São Paulo:
Renovar, 1991

DOWER, Nelson Godoy Bassil. Curso moderno de direito civil. 2ª ed. São Paulo: Nelpa, 1996, 1º
vol.

GOMES, Orlando. Obrigações.
8ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 1992.

GOZZO. Débora. Pacto Antenupcial. São Paulo: Saraiva,
1992.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 11ª ed. São
Paulo: Saraiva. 1984.

SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de direito
civil. Rio de Janeiro: Forense, 1962, v. 1.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil – parte geral. São Paulo: Atlas, 2001.

Notas:

[1] VENOSA,
Silvio de Salvo. Direito civil – parte
geral
, p. 139.

[2] Silvio
de Salvo Venosa, ob. cit. pp. 122/123

[3] v. item
2.2.2. retro

[4]
DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. p. 48

[5] Silvio
Venosa, ob. cit. p. 332

[6] CÉSAR, José Augusto. Ensaio
sobre os atos jurídicos
. pág. 29. In. Washington de Barros Monteiro, ob.
cit. p. 176

[7] DOWER, Nelson
Godoy Bassil. Curso moderno de direito civil. pág. 179

[8] GOMES,
Orlando. Obrigações, págs. 25/26

[9] BETTI,
Emilio. Teoria geral do negócio jurídico,
pág. 11

[10] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p.
229

[11] BARROS MONTEIRO, Washington de. Curso de direito civil, p.
60.

[12] ob. cit. pág.
333. Os artigos citados pelo mestre referem-se ao Código Civil de 1916.

[13] apud
Washington de Barros Monteiro, ob. cit., p. 60

[14] Aqui cabe uma
observação: sempre tivemos, como posição esmagadora, a situação de nulidade
pela venda de ascendente ao descendente sem aquiescência deste, por ser afronta
à formalidade legal; mas o novo Código tratou-o como causa de anulabilidade.
Faltou tecnia ao legislador, mas o texto é claro é dispensa comentários.

[15] v.
RJTJESP, ed. LEX, vol. 111/278-280

[16] “Dez Anos
de Jurisprudência”, Plenário da Seção Civil, ed. LEX, vol. 2/1.032-1.036

[17] JTJ – Volume
160 – Página 237

[18] JTJ – Volume
163 – Página 51

[19] BEVILÁCQUA.
Clóvis. Código Civil Comentado. vol.
II/132, 10ª ed.

[20] SILVA
PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de direito civil, p.287.

[21] BEVILÁCQUA,
Clóvis. Teoria geral do direito civil. 1929, p. 274, apud: Nelson Godoy, ob. cit., p. 180

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Alex Sandro Ribeiro

 

Advogado, Escritor e Consultor.
Pós-Graduado em Direito Civil pelo uniFMU.
Membro do IV Tribunal de Ética da OAB/SP.
Autor dos livros Ofensa à Honra da Pessoa Jurídica e
Arrematação e Adjudicação de Imóvel: Efeitos Materiais.
Autor de dezenas de artigos e trabalhos publicados.
Consultor especializado em ME e EPP.

 


 

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