CID em atestados médicos e a administração pública

Resumo: O Trabalho trata da polêmica que se instaura entre servidores públicos que devem apresentar os atestados médicos nos departamentos de Recursos Humanos e outro setor equivalente e lá são recusados pela inexistência do Código Internacional de Doenças.

Sumário: 1. Introdução; 2. A Administração Pública, o Agente Público e o Princípio da Continuidade do Serviço Público; 3. Da interpretação da RESOLUÇÃO nº 1.819/2007 do Conselho Federal de Medicina; 4. Direito à intimidade X Interesse Público.

Introdução

A Constituição Federal consagra já na sua abertura, como seus fundamentos os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Princípios estes que, sem dúvida, na moderna dinâmica social tornam-se pilares para o desenvolvimento social e econômico, cujo sentido último é a erradicação da pobreza e da marginalização, reduzindo, por conseguinte, as desigualdades sociais e regionais.

Nesse processo, empregadores e empregados são protagonistas, pois materializam os objetivos nacionais. O trabalho cumpre função social. Ou seja, sua importância é tal no seio da sociedade que se irradia às relações, que em si não guardam aspectos puramente econômicos ou financeiros, como a satisfação proporcionada pelo cumprimento do dever. Assim não há como se olvidar sobre a contribuição prestada pelo trabalho à dignificação da pessoa humana.

O próprio Estado é empregador. Entretanto, muitas diferenças há entre a iniciativa do particular, com a atividade estatal, pois aquela objetiva o lucro, essa o bem comum[1]. Para citar mais a título de exemplo, o jargão patrão, comumente atribuído à atividade privada, designa aquele que detém os meios de produção numa concepção marxista. Já a atividade do estado se desenvolve através da Administração Pública, que nas lições de Seabra Fagundes e Rui Cerne Lima é a atividade de quem não é dono.

A atividade desenvolvida pelo empregado destina-se à produção de determinado bem ou serviço, que nada mais é que a atividade fim da empresa. Já no Estado, a atividade do servidor, ou em alguns casos, empregado, é o próprio serviço público dever do Estado e razão de sua existência.

O trabalhador privado é definido pela Consolidação das Leis do Trabalho como toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário. Já em direito administrativo o termo utilizado, em sentido lato, é agente público, que aceita a designação empregado para casos específicos. Ou seja, quando o contrato de trabalho com a Administração Pública for regido pela CLT. Porém, não se deve abandonar a idéia das prerrogativas que a Administração Pública possui em seus contratos.

Todavia, seja no setor público ou privado, alguns problemas são comuns no que se refere a prestação do serviço. Entre os pontos que se convergem, sem dúvida, um dos que mais causa prejuízo são as faltas. Dependendo de sua duração, elas atravancam a fluidez do serviço, exigindo em muitos casos readequações, que em não raras oportunidades ocasionam muitos prejuízos. Não se esquecendo de mencionar os custos provocados por contratações temporárias para preenchimento de lacunas por elas causadas.

Não menosprezando a importância do tema para o setor privado, a atenção desse escorço volta-se ao setor público. Posto que a atividade pública se desenvolve, em última ratio, essencialmente por pessoas. Estas independentemente do local onde, ou para quem, desenvolvam suas atividades, em um momento ou outro não irão comparecer ao serviço, e em muitas situações justificarão a ausência com base em atestados médicos.

Seja na iniciativa privada ou no serviço público uma das causas que excluem as penalidades aplicadas, ou os descontos pecuniários, em caso de ausência é a doença, provada por meio de atestado, emitido por médico, que exerça regularmente sua profissão.

É inegável que o agente público tenha o direito de cuidar de sua saúde, seria um impropério negar isso, pois antes de ser agente público, ele é pessoa. E como tal não escapa aos infortúnios de uma moléstia.

Todavia, é comum na iniciativa privada ou no serviço público em geral a exigência que dos atestados apresentados constem o, Código Internacional de Doenças, (CID). Este é uma classificação estatística proposta pela Organização Mundial de Saúde desde 1992, atualmente encontra-se na décima edição (CID-10), que identifica as doenças e problemas de saúde sob um código alfa numérico, de validade global. Desta maneira uma doença, embora tenha diferentes nomes no mundo, possui o mesmo código, o que facilita sua identificação e tratamento em qualquer local do globo.

Todavia, em nosso país encontramo-nos diante de um impasse envolvendo o CID; a relação médico-paciente e as relações de trabalho. A problemática reside nas situações em que o médico, por um motivo ou outro, não anota no atestado o CID, referente à consulta ou tratamento, fato este que faz com que muitos Departamentos de RH recusem o documento apresentado, aplicando-se, porventura, alguma medida disciplinar, ou desconto pecuniário, pela ausência. Ainda há os casos de servidores “doentes crônicos”, em sentido figurativo, sendo aqueles casos em que o servidor apresenta um atestado médico por semana, para justificar inúmeras faltas, dando aparência de licitude ao uma falta, no mínimo moral, de sua parte. Quando não o problema se instaura nas perícias realizadas por médicos do órgão tomador do serviço.

Engrossando a celeuma que o tema provoca, sindicatos de servidores sustentam a ilegalidade da exigência do CID nos atestados, bem como da conseqüente recusa destes. Condenando ainda os descontos nos vencimentos pelas faltas não justificadas.

As opiniões que sinalizam pela ilegalidade da exigência pautam-se na Resolução nº 1.819 de 22 de maio de 2007 do Conselho Federal de Medicina que proíbe a colocação da codificação internacional nos atestados em determinadas situações.

Longe de solução a problemática apenas aumenta, e a incerteza sobre o tema traz a insegurança nas relações sociais que se desenvolvem a partir desta situação. Ora a exigência do CID nos atestados é legal ou ilegal; ofende a intimidade do servidor; é direito da administração; para responder essas questões é que se faz necessário imergir na essência dos assuntos relacionados para poder, então, satisfatória e seguramente responder estas questões de ordem prática.

2. A Administração Pública, o Agente público e o Princípio da continuidade do serviço público.

A tarefa de definir com exatidão o termo Administração Pública é uma das mais espinhosas em direito administrativo. Muitos doutrinadores, clássicos e modernos, valeram-se de critérios para o fazê-lo, entre eles os mais comuns são: o da objetividade e da subjetividade. Deste modo, Carvalho Filho[2], ensina que em sentido objetivo administração pública é termo designativo de verbos como gerir, zelar, portanto grafada com letras minúsculas. Já em termos subjetivos, significa o conjunto de agentes, órgãos e pessoas jurídicas que tenham a incumbência de executar as atividades administrativas. Helly Lopes[3], com seu admirável magistério ensina que: “Administração Pública – Em sentido formal, é o conjunto de órgãos instituídos para a consecução dos objetivos do Governo; em sentido material, é o conjunto das funções necessárias aos serviços públicos em geral; em acepção operacional, é o conjunto perene e sistemático, legal e técnico, dos serviços próprios do Estado ou por ele assumidos em benefício da coletividade. Numa visão global, a Administração é, pois, todo o aparelhamento do Estado preordenado à realização de serviços, visando à satisfação das necessidades coletivas”.e todo o exposto se nota a impossibilidade de se atribuir à Administração um sentido unívoco. Por fim, sobre as premissas aqui expostas repousa a conclusão de Seabra Fagundes e Rui Cerne Lima, de que Administração Pública é a atividade de quem não é dono. Posto que seja no seu sentido material (objetivo) ou formal (subjetivo), a Administração é a materialização das políticas do Estado, na cumprimento do interesse público. Portanto, o que se administra não é propriedade do administrador público, e sim da coletividade que atribuiu ao Estado o dever de gerir, fiscalizar, prover aquilo que é de interesse geral.

Nesse sentido a função precípua da Administração é executar (não se afirmando com isso, que a atividade administrativa seja exclusiva do Poder Executivo). E para a realização desse fim, o Estado se vale, em última análise, de pessoas, abandonando-se por hora as teorias das pessoas jurídicas e dos órgãos públicos.

São as pessoas que por último personificam o serviço público, pois vejamos o médico, o enfermeiro o motorista da ambulância representam a saúde; o professor, o diretor, o inspetor, a educação; o soldado, o investigador, o delegado, o carcereiro, a segurança pública. Sendo que saúde, educação e segurança são deveres do Estado, serviços públicos por excelência.

Por isso, na órbita administrativa, essas pessoas são designadas, em sentido amplo, agentes públicos. São os agentes públicos que atuam nos interesse primário ou secundário[4] do Estado, materializando suas ações e efetivando as políticas públicas. Partindo-se da idéia de interesse primário e secundário do Estado, tem-se que a atividade das pessoas (agentes públicos), podem ser mais diretamente relacionadas ao interesse primário, ou ao secundário. Originando-se daí os gêneros de agentes públicos, elencados pela norma e pela doutrina. A saber: agentes políticos, servidores públicos, empregados públicos. Por oportuno, devido a grande divergência que se nota sobre o tema, convém tratar do tema como mais superficialidade, haja vista não ser objetivo do presente trabalho, adentrar nos meandros da discussão doutrinaria ou jurisprudencial acerca do tema, com isto não se quer diminuir a relevância do mesmo. Por hora, são suficientes idéias básicas a respeito.

Dito isto, em linhas gerais, pode-se dizer que agentes políticos, como ensina Carvalho Filho[5], são aqueles que “desenham os destinos fundamentais do Estado e que criam as estratégias políticas por eles consideradas necessárias e convenientes para que o Estado atinja seus fins”. São exemplos desses agentes, chefes do poder executivo, bem como seus auxiliares, e os membros do poder legislativo, para alguns doutrinadores, como Hely Lopes Meirelles[6], incluem-se nessa categoria os magistrados, membros do parquet, dos tribunais de contas e representantes consulares.

Já o servidor público é a espécie dentro do gênero agente público, que possui o maior número de representantes, e podem ser designados como “os agentes que, exercendo com caráter de permanência uma função pública em decorrência de relação de trabalho, integram o quadro funcional das pessoas federativas, das autarquias e das fundações públicas de natureza autárquica”. O conceito exposto é trazido por Carvalho Filho[7]. Hely Lopes Meirelles[8] a eles se refere como “agentes administrativos que se vinculam ao Estado ou a suas entidades autárquicas ou fundacionais por relações profissionais, sujeitos a hierarquia funcional e ao regime jurídico determinado pela entidade estatal a que servem”.

Guardadas as divergências doutrinárias entre os autores, concordam eles no sentido de que a essa categoria compete a execução das linhas traçadas pelos agentes políticos. Por isso o campo de atuação destes é delineado de acordo com a própria atuação do Estado.

E por último, os empregados públicos, estes, em nosso modesto ponto de vista, integram os servidores públicos, todavia contratados pelo regime da CLT.

Como dito em linhas pretéritas são pessoas que corporificam, dão forma, agem no mundo fenomênico, produzindo atos. Todavia não é qualquer espécie de ato, e sim ato público, pois sendo agentes públicos, seus atos perdem a característica da particularidade e se revestem das prerrogativas do Estado. Por exemplo, na construção de escola, o que faz surgir o prédio não é a ação incorpórea do Estado, antes é a ação física do sujeito, que por intelecção jurídica foi revestida pelo poder do Estado. Assim, qualquer problema que ocorra na construção, o responsável imediato é o Estado e não o trabalhador.

Sob esse enfoque ganha destaque o princípio da Continuidade do Serviço Público. Princípio este atrelado as prestações positivas do Estado, ou seja, os Serviços Públicos. Em linhas gerais estabelece o referido princípio que os Serviços Públicos não devem ser interrompidos. Isso é o que se subtrai da lição de DI PIETRO, que afirma: “Por esse princípio entende-se que o serviço público, sendo a forma pela qual o Estado desempenha funções essenciais ou necessárias à coletividade, não pode parar”.(2002:74).

De forma implícita encontramos na legislação a presença de tal princípio, a exemplo das normas que disciplinam a greve do servidor, ou nos contratos administrativos que não reconhecem a exceptio non adimpleti contractus como motivo de interrupção do serviço, permitindo somente em caso específico disciplinado em lei.

Nesse sentido é preciosa a lição de Carvalho Filho[9] ao afirmar que: “Na verdade, o princípio em foco guarda estreita pertinência com o princípio da supremacia do interesse público. Em ambos se pretende que a coletividade não sofra prejuízos em razão de eventual realce a interesses particulares”.

Todavia, é equivocado o entendimento que atribuir validade a tal princípio somente quando se tratar de serviços essenciais. Em nossa humilde opinião, todo serviço do Estado deve ser encarado sob o enfoque da essencialidade, pois caso contrário estar-se-ia atribuindo ao Administra Pública uma discricionaridade na sua realização. O que se deve ter em mente é uma ideia de emergencialidade.  A emergencialidade que aqui reputamos não reside na perspectiva da Administração e sim na do administrado. Pois vejamos, o que é mais urgente para população, o jardim varrido, capinado, ou o hospital funcionando adequadamente. Para poder-se então aceitar a idéia de discricionariedade para o momento da realização da obra. Não aceitamos a idéia da essencialidade por uma impropriedade do termo em direito público. Toda a atribuição trazida na Lei Maior ao Estado é considerada essencial pela comunidade a qual pertence, pois se o contrário o fosse não haveria necessidade de estar ali escrito. Portanto, não há discricionariedade do Administrador Público no que tange a realiza-lo ou não. Se o contrário fosse não haveria o princípio da indisponibilidade do interesse público que impõe a administração a obrigação de cumprir todas as aspirações sociais codificadas na Lei Maior do Estado.

Por outro lado admitindo-se a idéia da emergencialidade, a discricionariedade habitaria no momento de realização do serviço, de acordo com as dotações orçamentárias, e a realidade financeira de cada ente federado. Em termos práticos, observemos a situação: a pavimentação de via é serviço público, essencial, todavia, nem tão emergencial, posto que em relação a uma obra de saúde, pode ser preterida.

Deste modo o princípio deve atingir todos os serviços públicos, do mais singelo aos mais emergenciais. Assim, a limpeza de vias públicas com serviço de varrição é um serviço essencial do Estado, a sua interrupção caracteriza ofensa ao princípio da Continuidade do Serviço Público, e a indisponibilidade do interesse público.

E aqui temos a base para afirmar que as faltas dos servidores públicos em certa medida pode caracterizar interrupção do serviço público. Ofendendo ao princípio da continuidade do serviço público.

3, Da interpretação da RESOLUÇÃO nº 1.819/2007 do Conselho Federal de Medicina.

Os Conselhos Profissionais são entidade sui generis na ordem constitucional, posto que se constituem em autarquias, mas com especificidades em relações as demais espécies. São constituídos por lei, e possuem poder de editar resoluções que regulamente o exercício da profissão que fiscalizam. Cumprindo suas atribuições o Conselho Federal de Medicina editou a famigerada Resolução nº 1.819 em 2007. Pela sua importância, e pelas distorções que provocou é pertinente a sua análise para o deslinde do trabalho.

Nas considerações iniciais, que lhe servem de fundamento, em suma, afirma a dita resolução cumprir diversos outros dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que preservam a intimidade do paciente. Os mais importantes desses dispositivos já foram analisados em linhas anteriores, portanto, nos concentraremos na parte dispositiva da referida regulamentação.

No seu primeiro artigo estabelece a resolução: “Art. 1º Vedar ao médico o preenchimento, nas guias de consulta e solicitação de exames das operadoras de planos de saúde, dos campos referentes à Classificação Internacional de Doenças (CID) e tempo de doença concomitantemente com qualquer outro tipo de identificação do paciente ou qualquer outra informação sobre diagnóstico, haja vista que o sigilo na relação médico-paciente é um direito inalienável do paciente, cabendo ao médico a sua proteção e guarda”. E no seu parágrafo: “ Excetuam-se desta proibição os casos previstos em lei”.

A ordem emanada do primeiro artigo é uma abstenção dirigida ao médico, para que este não oponha o CID, juntamente com qualquer identificação do paciente a fim de não expô-lo. Todavia, compete a leitura detalhada do dispositivo para entender quais situações o médico deve se abster de tal prática. O artigo afirma que não deve existir a anotação nas: guias de consulta e solicitação de exames das operadoras de plano de saúde.

A práxis médica observa a lavratura de diversos documentos, cujo interesse também é jurídico, são os denominados documentos médicos-legais, na lição do criminalista José Jorge Zazuela. Dentre esses documentos podemos elencar: o atestado, o boletim médico, guias de consulta e solicitação de exames, laudos periciais. O que tem relevância para o tema são os atestados e as guias de consulta e solicitação de exames.

Em breves linhas o atestado médico é a afirmação pura e simples, por escrito, de um fato médico e suas consequências, na lição de Souza Lima, criador do ensino prático de medicina. Já as guias e solicitações de exame são documentos de interesse, primordialmente médico, posto que através delas são feitos requerimentos de exames, internações, e outros infindáveis procedimentos clínicos. São dirigidas normalmente a outros médicos para que esses realizem exame, ou tratamento ali solicitado, ou no caso a planos de saúde para que custeiem o que ali esta estabelecido. Em sumo, é um documento procedimental, de cunho administrativo.

Os atestados por exprimirem uma situação fática, presumem juridicamente a verdade, e por tal ganham muita relevância no seara jurídica. Sendo até tipificada a sua falsificação na seara penal. Curiosa situação ocorre com eles, quando emitidos por médicos ligados ao setor público de saúde, esses atestados são documentos públicos. Porém quando emitidos por particulares, são documentos particulares, mas com relevância pública.

Essa distinção é importante para se alcançar o objetivo da resolução, observe que em momento algum se refere ela ao atestado, apenas às guias e isto porque não são modernas as batalhas judiciais travadas entre planos de saúde e usuários desses quanto à cobertura ou não de determinada patologia. Em muitas ocasiões a operadora, depois de muito lucrar com o usuário, se recusa a prestar determinado procedimento médico alegando a falta de previsão no contrato. Remetendo em não poucas situações os casos mais complexos ao sistema público de saúde. Ora essa situação perfaz verdadeira violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado e da sociedade brasileira.

Deste modo, para evitar-se a exclusão de pacientes do sistema privado de saúde, devido ao seu diagnóstico, e que por bem se editou a referida resolução. O escopo é fazer com que não haja uma seletividade através do CID. Pois, imagine-se a situação em que o médico requer determinado exame ao seu paciente, indique, na guia de solicitação o CID, correspondente, o paciente de posse da guia procura seu plano de saúde para custear o exame. Nesta oportunidade, presumindo pelo CID, ali exposto um tratamento caro e custoso, invoca a falta de cobertura do plano para eximir-se de sua responsabilidade.

Cabe por bem observar que a proibição atinge sobremaneira a entidades privadas que exploram o serviço de saúde, não surtindo efeito quando o procedimento acontece no âmbito do Sistema Único de Saúde, vez nele independente o quadro clínico do paciente, importa o dever do Estado em zelar pela saúde.

Nesse sentido tal resolução tem aspecto restritivo ao vedar a exigência. Isto porque, embora seja mal utilizado pelas operadoras de plano de saúde, o CID, em outras oportunidades é extremamente útil quando posto no atestado médico (que goza de presunção de veracidade). Um exemplo do uso adequado do CID é para verificar-se o nexo causal entre a patologia do paciente e seu trabalho, para caracterização de uma doença o trabalho, em casos de indenização.

Por tal, não há que se pretender ampliar o alcance da resolução. Para extirpá-lo de todo e qualquer documento emitido pelo médico, em especial aos atestados. Data venia, tampouco se preta ela de alicerce ao argumento de ser abusiva e ilegal a exigência de que conste nos atestados apresentados para justificar faltas é abusiva.

Ao contrário, entendemos ser devido o apontamento, sobremaneira em caso de servidor público. E mais, deve ser efetiva sua exigência por parte dos setores responsáveis, pelos motivos que doravante delineamos.

4. Direito à intimidade X Interesse Público

De antemão já se adianta, que por tratar-se de princípios normativos constitucionais, garantidores de direitos, não há que se falar em exclusão de um pelo outro, ou uma aparente antinomia. Antes como ensina José Afonso da Silva, ambos devem ter convivência harmoniosa no sistema constitucional, pois são a efetivação de direitos de toda coletividade.

Nesta situação, como bem ensina Hesse[10], tem-se o campo da aplicação do princípio da concordância prática ou da harmonização, que, segundo o doutrinador alemão, visa harmonizar no caso concreto os direitos fundamentais e valores constitucionais em xeque, por meio de um juízo de ponderação, ou em outras palavras pelo uso do meta princípio da proporcionalidade e razoabilidade sanar a antinomia, visando, sobremaneira, a efetividade máxima de cada princípio conflituoso.

Nesse mesmo sentido é a lição do mestre nacional, José Afonso da Silva[11] que sobre o tema escreveu: “Essa é uma questão importante da interpretação constitucional que não podemos senão suscitar aqui de passagem. Há casos concretos em que mais de um valor constitucionalmente protegidos podem estar em colidência. Ora, essa colidência tem que resolver-se sem que um valor ou princípio derrogue o outro. Aqui é que a jurisprudência dos valores se mostra mais fértil pela regra da ponderação dos valores e princípios constitucionais. Esse sopesamento entre os valores ou princípios constitucionais é que vai decidir qual deles deve ser aplicado ao caso concreto”.

Então, a partir da técnica do sopesamento constitucional é que devemos orientar a interpretação, para que possamos enfrentar com certa segurança a questão de qual desses valores constitucionais deve prevalecer no caso em tela.

O primeiro deles, o da intimidade, vem descrito na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso X da seguinte forma: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”.

O outro, o interesse público, próprio Estado Democrático é um corolário dele, encontrado em diversas passagens do texto constitucional, em especial nos casos em que se permite uma ação ao Estado, que importe em limitação, ou na mínima supressão de liberdades individuais.

Situados ambos os valores constitucionais, cumpre-nos discorrer, mesmo que brevemente sobre cada um deles. O primeiro, a inviolabilidade da intimidade, é descrita por Alexandre de Moraes[12] da seguinte forma: “Os direitos à intimidade e à própria imagem formam a proteção constitucional à vida privada, salvaguardando um espaço intransponível por intromissões ilícitas externas.[…] Assim, intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa, suas relações familiares e de amizade…[…]”

Todavia, como deve ocorrer a todo valor constitucional, o princípio da inviolabilidade da intimidade não permaneceu estanque no texto da magna carta brasileira. Ele irradiou-se por todo o ordenamento pátrio. Uma amostra desse efeito é o sigilo imposto a certas profissões que pela sua natureza obtém conhecimento de passagens íntimas da vida pessoa. Assim, é que vemos as proibições estampadas na letra do Código Civil[13], em seu Artigo 229: “Art. 229. Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo; II – a que não possa responder sem desonra própria, de seu cônjuge, parente em grau sucessível, ou amigo íntimo;”.

 Encontra-se previsão similar no Código Penal[14]: “Divulgação de segredo: Art. 153 – Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa”.

Prossegue o Código Codex Repressivo: “Violação do segredo profissional: Art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Parágrafo único – Somente se procede mediante representação. Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa”.

Destarte vemos que a intimidade, é premissa da qual não se pode afastar a organização social brasileira. Pois, apesar da sociedade, cada indivíduo guarda em si um número de sentimentos e informações que somente compete ao interesse dos que lhe são mais próximos e a ele mesmo.

Noutra via temos a justificativa da ação do Estado, ou seja, o princípio do interesse público. Como dito em linhas pretéritas, esse princípio justifica a existência do próprio Estado Democrático. Pois encontra suas raízes não no ordenamento infraconstitucional, em leis administrativas, ou na constituição. Sua origem está no grupo que se organizou socialmente para conviver. No instante em que cada indivíduo abriu mão de partes de sua autonomia para cedê-la a esta organização, denominada por Hobbes de Leviatã, para que ela agisse naquilo que fosse interesse de todos, e bem do grupo.

Então não é a lei ou a constituição que diz que o Estado deve agir com fundamento do interesse público e sim, o grupo social preexistente à lei ou a própria constituição.

O conceito de interesse público não é pacífico, e muitos escritores na doutrina administrativa dizem os seus efeitos, mas não a sua definição, nesse sentido Carvalho Filho[15] escreve: “A despeito de não ser um conceito exato, aspecto que leva a doutrina em geral a configura-lo como conceito jurídico indeterminado, a verdade é que, dentro da análise específica das situações administrativas, é possível ao intérprete, á luz de todos os elementos do fato, identificar o que é e o que não é interesse público. Ou seja, é possível encontrar as balizas do que seja interesse público dentro de suas zonas de certeza negativa e de certeza positiva. Portanto, cuida-se de conceito determinável. (grifos do autor)”.

Destarte a lição acima transcrita percebe-se a dificuldade de definição do que seja realmente o interesse público, mas tal dificuldade não lhe retira a importância, obrigando todo e qualquer agente público a somente agir sob o manto de sua proteção.

O grande impasse na questão da colocação da CID, ou não nos Atestados Médicos gravita em saber se: há interesse público na exigência da colocação, ou noutro sentido, prevalece a intimidade do agente público sobre esse interesse público.

Repartamos o mérito para chegar-se a conclusão, dado o antagonismo aparente do tema. Primeiro, o imperativo na Administração Pública é o Interesse Público, ou seja, a responsabilidade de todos no serviço público é zelar por aquilo de não lhes pertence, e sim à coletividade. Esse dever de zelo é imperativo a todo agente público, independente de sua função. O zelo imposto pelo interesse público, extravasa o mero cuidado de objetos, ou presteza na consecução dos serviços. Em certos aspectos ele adquire ares de vigilância.

O dever de vigilância visa zelar pela moralidade administrativa, sendo, inclusive estabelecido em lei, como se apercebe na norma[16] que disciplina os servidores públicos, observe:Art. 116.  São deveres do servidor: I – exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo; VI – levar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao conhecimento da autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente para apuração; VII – zelar pela economia do material e a conservação do patrimônio público; XII – representar contra ilegalidade, omissão ou abuso de poder. Parágrafo único.  A representação de que trata o inciso XII será encaminhada pela via hierárquica e apreciada pela autoridade superior àquela contra a qual é formulada, assegurando-se ao representando ampla defesa.”

Tal dever de vigilância e zelo não se limita à esfera administrativa, ela se assenta como bem jurídico protegido penalmente no tipo de condescendência criminosa: “Condescendência criminosa; Art. 320 – Deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar subordinado que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente: Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.”

Não obstante ao dever de zelo e vigilância pesa sobre os servidores, outro princípio mestre da administração, qual seja o da publicidade. Em linhas gerais afirma tal princípio que na administração pública não deve haver segredos. E tal princípio encontra sua razão de ser no fato de que os assuntos, acontecimentos, que ocorrem em uma repartição pública não se limitam ao círculo de interesse dos que ali atuam, e sim de toda uma coletividade.

Assim como visto acima, as normas exposta impõe o dever de vigilância ao servidor público, e um aspecto que atormenta o serviço público, é como dito antes as faltas, muitas delas vêm seguidas de atestados, mas que pela periodicidade e freqüência que ocorrem conotam uma situação inverídica.

Claro, que pensar assim, é juízo negativo. Todavia a práxis, infelizmente, corrobora a assertiva de Rousseau que nem todos os homens são bons, embora assim o nasçam. Não é recente os desvios de condutas de determinados servidores públicos no exercício de sua função. Negar essa existência é uma hipocrisia que beneficia o malfeitor, maculando a imagem de todo serviço público.

Diante dessa realidade, não são recentes, os funcionários “Doentes Periódicos”, que de tempos em tempos, apresentam vários atestados de diferentes médicos para justificar ausências. Infelizmente muito desse problema se verifica em cargos, preenchidos por servidores que detenham maior poder aquisitivo, arcando com a custa de médicos particulares.

Em não rara situações ocorrem pelos menos dois crime, sem mencionar as condutas totalmente abjetas. Crime por parte do médico que atesta falsamente, e do funcionário que usa documento ideologicamente falso.

Portanto, para coibir essa atitude é que a exigência do CID nos atestados se mostra importante. Através do CID, é possível se aferir pelo departamento responsável a repetição de consultas a médicos diferentes para diagnósticos de doenças similares, por exemplo, dois atestados de conjuntivite, no mesmo olho, e no mesmo mês. Estranho mas acontece no serviço público.

Todavia, não é intenção usar o CID em atestados apenas com um caráter investigativo, longe disso. Em muitos casos, a repetição de afastamentos pela mesma patologia, sinaliza uma prudente readequação desse servidor, nas situações em que a doença seja oriunda ou agravada pela função exercida. Tal situação preventiva, além de zelar pela saúde do servidor, prevê a administração de muitos processos judiciais que certamente oneraram os cofres públicos.

Assim a exigência deve sim prevalecer em todo e qualquer atestado médico levado ao setor de RH ou Departamento Pessoal. Por motivo de prevenção e também para eventual apuração de irregularidade.

Como dito em linhas anteriores, sopesando os princípios, da intimidade e do interesse público, temos que o primeiro deva ser mitigado em face do segundo. Não queremos dizer com isso que o servidor não tenha intimidade em problemas que lhe sejam afetos. Ao contrário.

O fato de constar a CID, no atestado não retira totalmente a intimidade do servidor, isto porque esta informação permanece guardada na repartição, e seu mau uso acarreta responsabilidade para quem o fizer. Por exemplo, uma divulgação jocosa da enfermidade. Assim como mitigada a intimidade, a publicidade também o é. Não é o tipo de informação que deve ser liberada a qualquer pessoa e a qualquer momento. Somente nos casos em que houver conveniência do interesse público em aferir eventual lesão ao dever de servidor, ou em casos para justificar uma readaptação, ou uma alocação preventiva.

Pelos argumentos aqui tratados não se verifica abusividade ou ilegalidade por parte dos Departamentos De Recursos Humanos em exigir o CID nos atestados médicos. Antes insistimos na sua necessidade, posto que nenhum direito é absoluto, e o interesse público na moralidade, e eficiência administrativa devem ser observados em todas as situações que envolvam o funcionalismo público.

 

Referências
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SILVA, José Afonso. I Seminário de Direito Constitucional Administrativo. Interpretação da Constituição. Disponível em:< www.tcm.sp.gov.br> Consultado em: 16-05-2012.

Notas:
[1]Carta Encíclica de João XXIII. MATER ET MAGISTRA. Evolução da questão social à luz da doutrina cristã. 417.n.65 “…uma concepção exata do bem comum; este compreende o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nos homens o desenvolvimento integral da personalidade.” Disponível em:< http://www.clerus.org/bibliaclerusonline/pt/iu1.html> Consultado em:03/05/2012.
[2]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 25.ed.rev.,ampl.e atual. até a Lei nº 12.587, de 3-1-2012. São Paulo Atlas, 2012.p.11.
[3]MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.26.ed.atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo. Malheiros.2001.p.59.
[4]BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo.24.ed.rev.atual.até a Emenda Constitucional 55, de 20.09.2007.Malheiros.São Paulo,2007.p.60-67.
[5]Op.Cit.p.584-585
[6]Ob.cit.p.73
[7]Ob.cit.p.588
[8]Ob.cit. 74
[9]Ob.cit.p.35
[10]Apud: FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão de Direitos. Sérgio Antônio Fabris Editor, Brasília, 1996.p.98
[11]SILVA, José Afonso. I Seminário de Direito Constitucional Administrativo. Interpretação da Constituição. Disponível em:< www.tcm.sp.gov.br> Consultado em: 16-05-2012.
[12]MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24.ed. atual. até a EC57/08.São Paulo.Atlas.2009.
[13]BRASIL.Código Civil. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>.Consultado em:14-05-2012
[14]BRASIL.Código Penal. Decreto – Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.Disponível em:< http://www.planalto.gov.br> Consultado em: 14-05-2012.
[15]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo.25 ed.rev.ampl.e atual. até a Lei nº 12. 587 de 3/01/2012. São Paulo. Atlas S.A. – 2012.
[16]BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de Dezembro de 1990. Dispões sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das Autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br>Consultado em: 18-05-2012.

Informações Sobre o Autor

Amós Amaro

Pós-Graduando em Direito Administrativo e Advogado do Município de Rancharia-SP


Equipe Âmbito Jurídico

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