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Cidadania e globalização

Resumo: O presente artigo analisa a relação entre cidadania e a globalização, para demonstrar a evolução da globalização no mundo e seus consequentes efeitos em nos diversos setores da sociedade civil global, além das tendências futuras. Serão trazidos os conceitos de globalização e cidadania ao longo do tempo, sob a perspectiva histórica da influência da globalização na sociedade mundial.

Palavras-chave. Cidadania. Globalização. Política Econômica. Relações Econômicas internacionais. Sociedade Civil Global.

Abstract: This article analyzes the relation between citizenship and globalization. It will be shown the evolution of globalization in the world, with its consequent effects on all sectors of global civil society, and future trends. Will be brought in the concepts of globalization and citizenship over time, after a history will be made on the influence of globalization on world society.

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Keywords. Citizenship. Globalization. Economic policy. International economic relations. Global Civil Society.

Sumário: 1. Introdução. 2. O que é cidadania. 3. A crise da cidadania moderna. 4. O que é globalização. 5. Uma globalização perversa. 6. Competitividade consumo confusão de espíritos e globalitarismo. 7. Considerações finais

1. Introdução

O conceito de cidadania surge na Grécia antiga e clássica que buscou redefinir o modo de pensar a sociedade. Ser cidadão na Grécia significava participar das discussões realizadas na praça pública (ágora) em prol do bem comum da cidade (pólis). A cidadania não existia porque as coisas, os fatos, as ideias, as crenças eram determinadas pelos deuses.

A passagem da consciência mítica para a filosófica determinou um novo pensar na sociedade. O homem cidadão determinou o surgimento da política e da democracia grega que possibilitou as condições necessárias para a formação de uma cidadania destinada aos chamados homens livres da pólis e negada às mulheres, crianças e escravos. A cidadania é uma condição micro e macro de toda a humanidade já afirmava Hannah Arendt (1973).

Quanto à globalização, a difusão deste termo ocorreu por meio da imprensa financeira internacional, em meados da década de 1980. Depois disso, muitos intelectuais dedicaram-se ao tema, associando-a à difusão de novas tecnologias na área de comunicação, como satélites artificiais, redes de fibra ótica que interligam pessoas por meio de computadores, entre outras, que permitiram acelerar a circulação de informações e de fluxos financeiros.

Globalização passou a ser sinônimo de aplicações financeiras e de investimentos pelo mundo afora. Além disso, ela foi definida como um sistema cultural que homogeneíza e afirma o mesmo a partir da introdução de identidades culturais diversas que se sobrepõem aos indivíduos. Por fim, houve quem afirmasse estarmos diante de um cidadão global, definido apenas como o que está inserido no universo do consumo, o que destoa completamente da ideia de cidadania. Porém, no debate sobre a globalização não temos encontrado análises que consideram os fragmentos que ele acarreta. Ao contrário, ressaltam-se as suas vantagens aparentes, porém sem configurá-la com maior precisão.

A globalização é discutida, segundo as categorias tempo/espaço, no âmbito do sistema-mundo, na pós-modernidade e à luz dos conceitos de nação, mercado mundial e lugar[1].

Porém, ao olhar para o lugar, onde as pessoas vivem seu cotidiano, identifica-se o lado perverso e excludente da globalização, em especial quando os lugares ficam nas áreas pobres do mundo.

A globalização econômica não consegue impedir que aflorem os outros, resultando em conflitos que muitos tentam dissimular como competitividade entre os Estados-nação e/ou corporações internacionais, sejam financeiras ou voltadas à produção. A globalização é fragmentação ao expressar no lugar os particularismos étnicos, nacionais, religiosos e os excluídos dos processos econômicos com objetivo de acumulação de riqueza ou de fomentar o conflito. O objeto deste trabalho, então, é o estudo do relacionamento entre a cidadania e a globalização nas suas diversas dimensões.

2. O que é cidadania?

A cidadania assumiu durante toda história inúmeras formas em decorrência dos diferentes contextos sociais. O conceito de cidadania, enquanto direito a ter direitos, tem prestado diversas intererpretações. Vale destacar a interpretação clássica de T.H. Marshall, que, analisando o caso inglês e sem pretensão da universalidade, generalizou a noção de cidadania e de seus elementos constitutivos (MARSHALL, 1967).

A cidadania seria composta dos direitos civis e políticos, direitos de primeira geração, e os direitos sociais, de segunda geração.

Os direitos civis, alcançados no século XVIII, correspondem aos direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade, de ir e vir, direito à vida, dentre outros.

Os direitos políticos, que surgiram no século XIX, e dizem respeito à liberdade de associação e reunião, de organização política e sindical, à participação política e eleitoral. São também chamados direitos individuais exercidos coletivamente.

Os direitos de segunda geração, os direitos sociais, econômicos ou de crédito, foram conquistados no século XX a partir das lutas do movimento operário e sindical. São os direitos ao trabalho, saúde, educação, aposentadoria, seguro-desemprego, enfim, a garantia de acesso aos meios de vida e bem-estar social. Tais direitos tornam reais os direitos formais.

No que se refere à relação entre direitos de cidadania e o Estado, existiria uma tensão interna entre os diversos direitos que compõem o conceito de cidadania (liberdade x igualdade). Enquanto os direitos de primeira geração, civis e políticos exigiram, para sua plena realização, um Estado mínimo, os direitos de segunda geração, direitos sociais, demandariam uma presença mais forte do Estado para serem realizados.

Assim, a tese atual de Estado Mínimo, patrocinada pelo neoliberalismo, que parece haver predominado sobre a social democracia na década de 1990 corresponde a uma discussão meramente quantitativa, mas as estratégias diferenciadas dos diversos direitos que compõe o conceito de cidadania e dos atores sociais respectivos.

Na segunda metade do século XX, surgiram os chamados direitos de terceira geração. Trata-se de direitos que têm como titular não o indivíduo, mas grupos humanos como o povo, a nação, as coletividades étnicas ou a própria humanidade. É o caso do direito à autodeterminação dos povos, direito ao desenvolvimento, direito à paz e direito ao meio ambiente. Na perspectiva dos novos movimentos sociais, direitos de terceira geração seriam os relativos aos interesses difusos, como direito ao meio ambiente e direito ao consumidor, além dos direitos das mulheres, das crianças, das minorias étnicas, dos jovens, dos anciãos etc.

Atualmente, já falamos em direitos de quarta geração relativos à bioética para impedir a destruição da vida regular e criação de novas formas de vida em laboratório pela engenharia genética, tais direitos foram incluídos devido à globalização política[2].

3. A crise da cidadania moderna

A República Moderna não inventou o conceito de cidadania, que na verdade se origina na República antiga. A cidade de Roma, por exemplo, é um estado unitário pelo qual todos os cidadãos são iguais em direitos. Direito de estado civil, de residência, de sufrágio, de matrimônio de herança, de acesso à justiça, enfim todos os direitos individuais que permitem acesso ao direito civil. Ser cidadão é ser membro de pleno direito da cidade, seus direitos civis são plenamente direitos individuais.

Mas ser cidadão é também ter acesso à decisão política, ser um possível governante, um homem político. Ele tem direito não apenas a eleger representantes, mas de participar diretamente na condução dos negócios da cidade. É verdade que em Roma nunca houve um regime verdadeiramente democrático. Mas na Grécia, os cidadãos atenienses participavam das assembleias do povo, tinham plena liberdade de palavra e votavam as leis que governavam a ciadade, tomando decisões políticas.

É verdade também que estavam excluídos da cidadania os estrangeiros, as mulheres e os escravos. Estes últimos estavam fora da proteção do direito, não eram nada. Na Antiguidade, o homem era um ser sem direitos, por oposição ao cidadão. Na era moderna, o homem é sujeito de direitos não apenas como cidadão, mas também como homem[3].

O princípio da cidadania moderna fundado sobre a ideia de humanidade enfrentou muitas dificuldades de sua aplicação. A primeira se refere ao tamanho das repúblicas modernas, que impede o exercício direto do poder pelo cidadão. O Estado destaca-se da sociedade civil, o poder não pode mais ser exercido por todos. Para evitar o despotismo, o princípio republicano consagra a ideia do controle popular pelo sufrágio universal, inspirando-se na visão de soberania popular defendida por Rousseau.

Outra dificuldade na aplicação da cidadania moderna diz respeito ao conceito de homem e sua natureza. A república moderna custou muito a admitir que a pessoa humana possui natureza dupla, ou seja, compreende o homem e a mulher. De um modo geral, foi somente no século XX que o sufrágio se estendeu às mulheres.

Em relação à cidadania antiga, a cidadania moderna sofreu uma dupla transformação. Por baixo, ampliou-se e estendeu-se ao conjunto dos membros de uma mesma nação. Por cima, contudo, estreitou-se, pois a decisão política foi transferida aos eleitos e representantes.

4. O que é globalização?

O sociólogo Anthony Giddens (1990) define globalização como “a intensificação de relações sociais em escala mundial que ligam localidades distantes de tal maneira, que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa”.

Importante ressaltarmos a distinção entre localismo globalizado e globalismo localizado:

Localismo globalizado: é a globalização bem sucedida de um fenômeno local, como a atividade mundial de empresas multinacionais, a transformação da língua inglesa em língua franca (que vai além dos países que tem essa língua como nativa), a globalização da música popular ou do fast food americano.

Globalismo localizado: é o impacto específico de práticas transnacionais sobre condições locais que se desestruturam ou se reestruturam para atender aos imperativos transnacionais. São exemplos: os territórios de livre comércio, desmatamento e destruição de recursos naturais para pagar dívida externa, uso turístico de sítios históricos e ecológicos.

Segundo o professor Otavio Ianni, o mundo vai se transformando em território de tudo e de todos, onde tudo (gente, coisas e ideias) se desterritorializa e reterritorializa, adquirindo novas modalidades de territorialização.

Já se disse que o desenvolvimento capitalista é caracterizado pelo aparente paradoxo de ser estreitamente ligado à formação dos Estados nacionais-territoriais, ao mesmo tempo, que os limitam, devido às suas características centrais. O processo de socialização global que daí resultou, acelerou-se consideravelmente nas últimas décadas, entretanto, cada vez mais em conflito com a forma de organização, predominantemente estado-territorial, da política.

O ponto de partida da globalização é o processo de internacionalização da economia, ininterrupta desde a Segunda Guerra Mundial. Por internacionalização da economia entende-se um crescimento do comércio e do investimento internacional mais rápido do que o da produção conjunta dos países, ampliando as bases internacionais do capitalismo (incorporação de mais áreas e nações) e unindo progressivamente o conjunto do mundo, num circuito único de reprodução das condições humanas de existência.

Observa-se através da globalização:

a)     crescente unificação dos mercados financeiros internacionais e nacionais num circuito único de mobilidade de capital;

b)     acelerada regionalização do espaço econômico mundial;

c)     generalização de associações entre as corporações transnacionais de diferente base nacional;

d)     necessidade de coordenação das principais políticas econômicas nacionais, traduzida na criação do G7. O resultado foi nova configuração espacial da economia mundial, que passou a nomear-se globalização.

O professor Richard Falk, da Universidade de Princeton, nos EUA, assinala a existência de duas vias de globalização. Uma via autoritária, por ele chamada de “globalização por cima”, conduzida pelos Estados dos países dominantes e pelas forças do mercado mundial. Exemplos: a expansão do GATT, a reforma da ONU concentrando poder no Conselho de Segurança e no FMI/Banco Mundial e a dependência das reuniões de cúpula dos países do G-7 para estabelecer a política econômica mundial, apesar da não-representação, nessas reuniões, de 80% da população mundial.

Já a “globalização por baixo”, seria conduzida pelas forças democráticas transnacionais dedicadas à criação de uma sociedade civil global, como alternativa à economia global que está sendo desenhada pelas forças transnacionais. As forças sociais transnacionais, enquanto agentes da sociedade global, seriam os únicos veículos para a promoção do “direito da humanidade”, inspirado numa concessão democrática e humanitária de desenvolvimento sustentável com proteção ambiental e social.

As esperanças da humanidade dependeriam da capacidade da globalização, por baixo, enfrentar com eficácia a dominação da globalização por cima numa série de arenas de chaves que poderiam ser identificadas, em termos gerais, como a ONU (e outras instituições internacionais, a mídia e a orientação dos Estados).

5. Uma globalização perversa

Os últimos anos do século XX testemunharam grandes mudanças. O mundo tornou-se unificado em virtude das novas condições técnicas, bases sólidas para uma ação humana mundializada. Esta, entretanto, impõe-se à maior parte da humanidade como uma globalização perversa.

Há que se considerar a emergência de uma dupla tirania, a do dinheiro e da informação, intimamente relacionadas. Ambas, juntas, fornecem as bases do sistema ideológico que legitima as ações mais características da época e, ao mesmo tempo, buscam conformar segundo um novo ethos as relações sociais e interpessoais, influenciando o caráter das pessoas. A competitividade, sugerida pela produção e pelo consumo é a fonte de novos totalitarismos, mais facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos que se instala. Possui as mesmas origens a produção, na mesma base da vida social, de uma violência estruturada, facilmente visível nas formas de agir dos Estados, das empresas e dos indivíduos[4].

Neste contexto, as pessoas sentem-se desemparadas, o que também constitui uma incitação a que adotem, em seus comportamentos ordinários, práticas que alguns decênios atrás eram moralmente condenáveis. Há um verdadeiro retrocesso quanto à noção de bem público e de solidariedade, do qual é emblemático o encolhimento das funções sociais e políticas do Estado com a ampliação da pobreza e os crescentes agravos à soberania, enquanto se amplia o papel político das empresas na regulação da vida social.

Entre os fatores constitutivos da globalização em seu caráter perverso atual, encontra-se a forma como a informação é oferecida à humanidade e a emergência do dinheiro em estado puro, como motor da vida econômica social. São duas violências centrais, alicerces do sistema ideológico que justifica as ações hegemônicas e leva ao império das fabulações, a percepções fragmentadas e ao discurso único do mundo, base dos novos totalitarismos, isto é o globaritarismo a que estamos assistindo.

Quanto às informações, o que é transmitido à maioria da humanidade é de fato, uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer, confunde. Isso tem tamanha gravidade que nas condições atuais da vida econômica e social, a informação constitui um dado essencial e imprescindível. Mas na medida em que chega às pessoas, como também às empresas e instituições hegemonizadas, é, já, o resultado de uma manipulação, tal informação se apresenta como ideologia.

O fato de que, no mundo de hoje, o discurso antecede quase obrigatoriamente uma parte das ações humanas, sejam elas, a técnica, a produção, o consumo, o poder, explica o porquê da presença generalizada do ideológico em todos esses pontos. Não é de se estranhar, pois, que realidade e ideologia se confundam na apreciação do homem comum, sobretudo, porque a ideologia insere-se nos objetos e apresenta-se como coisa.

Existe hoje uma relação carnal entre o mundo da produção da notícia e o da produção das coisas e normas. A publicidade tem, hoje, uma penetração muito grande em todas as atividades. Antes, havia uma incompatibilidade ética entre anunciar e exercer certas atividades, como na profissão médica, ou na educação. Atualmente propaga-se tudo, e a própria política é, em grande parte, subordinada às suas regras.

As mídias nacionais se globalizam, não só pela chatice e mesmice das fotografias e dos títulos, mas pelos protagonistas mais presentes. Falsificam-se os eventos, já que não é propriamente o fato de que a mídia nos dá, mas uma interpretação, isto é, a notícia. Numa sociedade complexa como a nossa, somente vamos saber o que houve na rua do lado dois dias depois, mediante, uma interpretação marcada pelos humores, visões, preconceitos e interesses das agências. O evento já é entregue maquiado ao leitor, ao ouvinte, ao telespectador, e é também por isso que se produzem no mundo de hoje, simultaneamente, fábulas e mitos.

Dentro dessas fábulas e mitos podemos elencar:

– repetida ideia de aldeia global de Octávio Ianni, (Teorias da globalização, 1996). O fato de que a comunicação se tornou possível à escala do planeta, deixando saber instantaneamente o que se passa em qualquer lugar, permitiu que fosse cunhada essa expressão, quando, na verdade, ao contrário do que se dá nas verdadeiras aldeias, é frequentemente mais fácil comunicar com quem está longe do que com o vizinho. Quando essa comunicação se faz, na realidade, ela se dá com a intermediação de objetos. A informação sobre o que acontece não vem da interação entre as pessoas, mas do que é veiculado pela mídia, uma interpretação interessada, senão interesseira, dos fatos.

– outro mito que merece ser citado é do espaço-tempo contraído graças aos prodígios da velocidade. Só que a velocidade apenas está ao alcance de um número limitado de pessoas, de tal forma que, segundo as possibilidades de cada um, as distâncias têm significações e efeitos diversos e o uso do mesmo relógio não permite igual economia do tempo.

Afirma-se também, que a “morte do Estado” melhoraria a vida dos homens e a saúde das empresas, na medida em que permitiria a ampliação da liberdade de produzir, de consumir e de viver.

Tal neoliberalismo seria o fundamento da democracia. Observando o funcionamento concreto da sociedade econômica e da sociedade civil, não é difícil constatar que são cada vez em menor número as empresas que se beneficiam desse desmaio do Estado, enquanto a desigualdade entre os indivíduos aumenta.

No que tange ao capital financeiro, nesta era de globalização, este se amplia por várias razões. Na fase histórica atual, as megafirmas devem, obrigatoriamente, preocupar-se com o uso financeiro do dinheiro que obtêm. As grandes empresas são quase compulsoriamente ladeadas por grandes empresas financeiras.

As empresas financeiras das multinacionais utilizam em grande parte a poupança dos países em que se encontrar. Quando uma firma de qualquer outro país se instala num país C ou D, as poupanças internas passam a participar da lógica financeira e do trabalho financeiro dessa multinacional. Quando expatriado, esse dinheiro pode regressar ao país de origem na forma de crédito e dívida, quer dizer, por intermédio das grandes empresas globais.

O que seria poupança interna transforma-se em poupança externa, pela qual os países recipiendários devem pagar juros extorsivos. O que sai do país como royalties, inteligência comprada, pagamento de serviços ou remessa de lucros volta como crédito e dívida. Essa é a lógica atual da internacionalização do crédito e da dívida. A aceitação de um modelo econômico em que o pagamento da dívida é prioritário, implica na aceitação lógica desse dinheiro.

6. Competitividade, consumo, confusão de espíritos e globalitarismo

No mundo globalizado, a competitividade, o consumo, a confusão dos espíritos constituem o presente estado de coisas. A competitividade comanda nossas formas de ação. O consumo comanda nossas formas de inação. E a confusão dos espíritos impede o nosso entendimento do mundo, do país, do lugar, da sociedade e de cada um de nós mesmos.

Com a expansão geográfica do capitalismo a concorrência se estabelece como regra[5]. A competitividade tem a guerra como norma. Há a todo custo, que vencer o outro, esmagando-o para tomar seu lugar. Os últimos anos do século XX foram emblemáticos, porque neles se realizaram grandes concentrações, grandes fusões, tanto na órbita de produção como na das finanças e da informação. Esse movimento marca um ápice do sistema capitalista, mas é também indicador do seu paroxismo, já que a identidade dos atores, até então mais ou menos visível, e agora finalmente aparece nos olhos de todos.

Essa guerra, como norma, justifica toda forma de apelo à força, a que assistimos em diversos países, um apelo não dissimulado, utilizado para dirimir os conflitos e consequências dessa ética da competitividade que caracteriza nosso tempo. Ora, é isso também que justifica os individualismos arrebatadores e possessivos: individualismos na vida econômica; individualismos na ordem política; individualismos na ordem do território. Também na ordem social e individual são individualismos arrebatadores e possessivos, que acabam por constituir o outro como coisa.

Comportamentos que justificam todo desrespeito às pessoas, são, afinal, uma das bases da sociabilidade atual. Aliás, a maneira como as classes médias no Brasil, se constituíram estabelece a lógica dos instrumentos em lugar da lógica das finalidades, e convoca os pragmatismos a que se tornem triunfantes.

Quanto ao consumo, observam-se mudanças no decorrer do tempo, antes, de autonomia da produção, para significar que uma empresa, ao assegurar uma produção, buscava também manipular a opinião pela via da publicidade. Nesse caso, o fato gerador do consumo seria a produção. Mas, atualmente, as empresas hegemônicas produzem o consumidor antes mesmo de produzir os produtos. Um dado essencial do entendimento do consumo é que a produção do consumidor, hoje, precede à produção dos bens e dos serviços. Então, na cadeia causal, a chamada autonomia da produção cede lugar ao despotismo do consumo.

Daí, o império da informação e da publicidade. Tal remédio teria 1% de medicina e 99% de publicidade, mas todas as coisas no comércio acabam por ter essa composição: publicidade + materialidade; publicidade + serviços, e esse é o caso de tantas mercadorias cuja circulação é fundada numa propaganda insistente e frequentemente enganosa. Há toda essa maneira de organizar o consumo para permitir, em seguida, a organização da produção.

Tais operações podem tornar-se simultâneas diante do tempo do relógio, mas, do ponto de vista da lógica, é a produção da informação e da publicidade que precede. Desse modo, vivemos cercados, por todos os lados, por esse sistema ideológico tecido ao redor do consumo e da informação ideologizados. Esse consumo ideologizado e essa transformação ideologizada acabam por ser o motor de ações públicas e privadas. Esse par é, ao mesmo tempo, fortíssimo e fragilíssimo. De um lado é muito forte, pela sua eficácia atual sobre a produção e o consumo[6].

O consumo é o grande emoliente, produtor ou encorajador de imobilismos. Ele é, também, um veículo de narcisismos, por meio dos estímulos estéticos, morais, sociais; e aparece como o grande fundamentalismo do nosso tempo, porque alcança e envolve toda gente. Por isso, o entendimento do que é o mundo passa pelo consumo e pela competitividade, ambos fundados no mesmo sistema da ideologia.

O consumismo e competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão do mundo, convidando também, a esquecer a oposição fundamental entre a figura do consumidor e a figura do cidadão. É certo que no Brasil tal oposição é menos sentida porque em nosso país jamais houve a figura do cidadão. As classes chamadas superiores, incluindo as classes médias jamais quiseram ser cidadãs, no tocante aos pobres, estes jamais puderam ser cidadãos.

As classes médias foram condicionadas a apenas querer privilégios e não direitos. E isso é um dado essencial do entendimento do Brasil: de como os partidos se organizam e funcionam; de como a política se dá, de como a sociedade se move. E aí também, as camadas intelectuais tem responsabilidade, porque trasladaram, sem maior imaginação e originalidade, à condição da classe média europeia, lutando pela ampliação dos direitos políticos, econômicos e sociais, para o caso brasileiro e atribuindo, assim, por equívoco, à classe média brasileira um papel de modernização e de progresso que, pela sua própria constituição, ela não poderia ter.

O capitalismo concorrencial buscou a unificação do planeta, mas apenas obteve uma unificação relativa, aprofundada sob o capitalismo monopolista graças aos progressos técnicos alcançados nos últimos dois séculos e possibilitando uma transição para a situação atual de neoliberalismo. Agora pode-se, de alguma forma, falar numa vontade de unificação absoluta alicerçada na tirania do dinheiro e da informação produzindo em toda parte situações nas quais tudo, isto é, coisas, homens, ideias, comportamentos, relações, lugares, é atingido.

Em cada um desses momentos, são diferentes as relações entre o indivíduo e a sociedade, entre o mercado e a solidariedade. Até recentemente, havia a busca de um relativo reforço mútuo das ideias e da realidade de autonomia individual e da ideia da realidade de uma sociedade solidária. As situações eram diferentes segundo os continentes e países e, se o quadro acima referido não constituía uma realidade completa, essa era uma aspiração generalizada.

Ao longo da história passada do capitalismo, paralelamente à evolução das técnicas, ideias morais e filosóficas se difundem, assim como a sua realização política e jurídica, de modo que os costumes, as leis, os regulamentos, as instituições jurídicas e estatais buscavam realizar, ao mesmo tempo, mais controle social e, também, mais controle sobre ações individuais, limitando ação daqueles vetores que, deixados sozinhos, levariam à eclosão de egoísmos, ao exercício da força bruta e a desníveis sociais cada vez mais agudos.

Na fase atual da globalização, o uso das técnicas conhece uma importante mudança qualitativa e quantitativa. Passamos de um uso “imperialista”, que era, também, um uso desigual e combinatório em todos os países dos sistemas técnicos hegemônicos, graças ao papel unificador das técnicas de informação.

O uso imperialista das técnicas permitia, pela via da política, a convivência de níveis diferentes de formas técnicas e de formas organizacionais nos diversos impérios.

Como as técnicas hegemônicas atuais são todas elas filhas da ciência e como sua utilização se dá a serviço do mercado, esse amálgama produz um ideário da técnica e do mercado que é santificado pela ciência, considerada, ele a própria infalível. Essa, aliás, é uma das fontes do poder do pensamento único[7].

Nessas condições atuais, a ideologia é reforçada de uma forma que seria impossível ainda há um quarto do século, já que, primeiro as ideias e, sobretudo, as ideologias se transformam em situações, enquanto as situações se tornaram em si mesmas ideias, ideias do que fazer, ideologias, e impregnam de volta, a ciência, uma ciência cada vez mais redutora e reduzida, mais distante da busca da verdade[8].

Em tais condições, instam-se a competitividade, o salve-se-quem-puder, a volta ao canibalismo, a supressão a solidariedade, acumulando dificuldades para um convívio social saudável e para o exercício da democracia. Enquanto esta é reduzida a uma democracia de mercado e amesquinhada como eleitoralismo, isto é, consumo de eleições, as pesquisas perfilam-se como um aferidor quantitativo da opinião, da qual acaba por ser uma das formadoras, levando tudo isso ao empobrecimento do debate de ideias e à própria morte da política.

Na esfera da sociabilidade, levantam-se utilitarismos como regra de vida mediante a exacerbação do consumo, dos narcisismos, do imediatismo, do egoísmo, do abandono da solidariedade, com a implantação galopante, de uma ética pragmática individualista. É dessa forma que a sociedade e os indivíduos aceitam dar adeus à generosidade, à solidariedade e à emoção com a entronização do reino do cálculo e da competitividade.

São todas essas condições para a difusão de um pensamento e de uma prática totalitária. Esses totalitarismos se dão na esfera do trabalho como, por exemplo, num mundo agrícola modernizado onde os atores subalternizados convivem como num exército, submetidos a uma disciplina militar.

O totalitarismo não é, porém, limitado à esfera do trabalho, escorrendo para a esfera política e das relações interpessoais e invadindo o próprio mundo da pesquisa e do ensino universitários, mediante um cerco às ideias cada vem menos dissimulado. Cabe-nos, mesmo, indagar diante dessas novas realidades sobre a pertinência da presente utilização de concepções já ultrapassadas de democracia, opinião pública, cidadania, conceitos que necessitam urgente revisão, sobretudo nos lugares onde essas categorias nunca foram claramente definidas, nem totalmente exercitadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de ainda ser vista por alguns como mera ideologia, a globalização é um processo real, de caráter multifacetado e contraditório. O prof. Roland Robertson dos EUA, definiu como “a concretização do mundo inteiro em um só lugar” e como surgimento de uma condição humana global. A globalização como conceito “se refere tanto à compreensão do mundo quanto à intensificação da consciência do mundo como um todo”.

A globalização de modo algum significa a homogeinização, devendo ser entendida mais propriamente como uma nova estrutura de diferenciação. Isto, contudo, não elimina, evidentemente, a possibilidade de processos ou patamares de homogeneização parcial, provocados, sobretudo pela dominação cultural do Ocidente.

O pluralismo cultural, a heterogeneidade e a variedade num mundo cada vez mais globalizado é essencial à teoria da globalização. É necessário incluir os indivíduos, as sociedades nacionais, as relações entre as sociedades (relações internacionais) e a humanidade “como os principais componentes contemporâneos ou as dimensões da condição humana global”.

Nessa perspectiva o processo de globalização teria um impacto diferenciador que poderia levar à valorização das identidades particulares da comunidade à nação. A diferenciação nacional, isto é, a diversidade cultural entre as nações, seria a outra face da constituição de uma sociedade mundial.

Não é o poder do Estado que precede o aparecimento das relações econômicas e políticas internacionais. Ao contrário, para a grande maioria dos Estados no mundo, foi o sistema internacional que precedeu e tornou possível a sua existência. Assim, não é o Estado-Nação no comércio, na diplomacia ou na guerra que estabelece um sistema mundial, mas, ao contrário, é o sistema mundial que explica o comércio, a diplomacia ou a guerra entre os Estados.

A perspectiva das Relações Internacionais, como sua visão tradicional do mundo como relação entre nações, já não consegue explicar o sistema mundial que vem sendo plasmado no bojo do processo de globalização. Começa surgir uma Sociologia da Globalização, ou Globologia, que confere grande importância a fenômenos culturais e à emergência de novos atores da sociedade civil com presença no sistema global.

Assim ao lado de uma sociedade global, entendida como sociedade internacional, haveria hoje uma sociedade global emergente, como comunidade planetária em processo de formação. Trata-se da emergente sociedade civil global, cujos atores muitas vezes tem mais poder de influencia no cenário internacional do que a maioria das nações pobres do mundo.

Os representantes da sociedade civil global nas instancias internacionais não tem se limitado a apontar as injustiças provocadas pela globalização econômica. As relações de dominação do poder público, as injustiças sociais, a violação dos direitos humanos, a degradação ambiental e a destruição cultural fazem parte da agenda de grande número de entidades da sociedade civil atuando nas instancias e organismos internacionais.

Já houve quem profetizasse que a principal fonte de conflito no futuro não será maios a ordem ideológica ou econômica, mas sim de ordem cultural, na forma de choques das civilizações. Isto porque o relativo enfraquecimento do Estado Nacional, fruto da globalização, e a integração dos mercados levam ao surgimento de outras fontes de identidade coletiva fora da ideia de nação.

Esta visão de choque de civilizações coloca em segundo plano os aspectos econômicos dos conflitos, considerados hoje como predominantes, e ataca a concepção de um paradigma de mundo único onde a democracia ocidental constituiria uma civilização universal.

Segundo esta perspectiva, a interação das civilizações existentes – a ocidental, a chinesa, a japonesa, a islâmica, a hindu, a eslava, a latino-americana, a africana – é que moldará o século XXI. Os conflitos do futuro serão condicionados pelas linhas culturais que separam essas civilizações, principalmente pelo confronto entre o Ocidente e as civilizações não-ocidentais.

Esta concepção não leva muito em conta os elementos de integração que acompanham o processo de globalização, mas tem o mérito de colocar no centro de debate os aspectos culturais e políticos, frequentemente desprezados pela análise econômica predominante, que muitas vezes concebe a globalização como fatalidade histórica.

Uma visão diferente foi apresentada no relatório “Lutando pela Sobrevivência”, do Instituto Worldwatch, de Washington. O meio ambiente, e não diferenças étnicas seria a verdadeira causa de muitas guerras travadas no mundo atualmente. As divergências étnicas, segundo o relatório, ocultariam disputas mais profundas envolvendo recursos naturais básicos. Quando estes entram em colapso, as pessoas tendem a buscar proteção em suas identidades étnicas, religiosas ou outras. Entre as mais importantes causas potenciais de conflitos, figuram a escassez de água e o aquicimento global, que pode provocar inundações.

A cada dia que passa, cresce a importância estratégica do posicionamento dos Estados em Comunidades Internacionais, rumo a uma sócio-economia global. Com o quase absoluto acesso aos mais diversos tipos de informação, estamos vivenciando neste início de milênio uma revolução mais profunda que a revolução industrial em vários aspectos.

Trata-se da Revolução da Informação, pela qual os cidadãos de todo o mundo se comunicam instantaneamente, bens e serviços são trocados a todo instante entre os mais extremos pontos do planeta, tornando o conceito de consumo global uma realidade e neste contexto, países menos desenvolvidos econômica e socialmente correm risco considerável de perderem a identidade no cenário que se desenvolve.

A aglutinação dos países do Mercosul e sua implementação é fundamental para o correto posicionamento destes países no mundo atual. O desenvolvimento econômico é parte integrante de diversos outros desenvolvimentos inerentes a este tipo de movimentação global. E no tocante ao consumidor brasileiro, a criação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90 com o prévio amparo constitucional dos artigos 5º XXXII e 170, V, somados ao Sistema da Plítica Nacional das Relações de Consumo, foi fruto de conquistas sociais e da atuação estatal, numa parceria de esforços com a finalidade de adequar o mercado nacional às exigências e paradrões internacionais de consumo, ainda mais distante da realidade brasileira, já decorridos 20 anos da promulgação da lei.

Atualmente, apesar de possuirmos uma das mais avançadas legislações do mundo, em matéria de Direito do Consumidor, ainda nos falta o essencial: a conscientização do consumidor e do fornecedor brasileiros, quanto ao papel que a cada um cabe desempenhar.

A tendência atual anárquica atual da globalização econômica não pode ser considerada, como querem muitos, uma fatalidade histórica, Ela não é historicamente inevitável. Contra ela, opõe-se a ação política das forças democráticas. Um bom exemplo, entre outros, é o Fórum Internacional sobre Globalização, uma aliança que ao ser criada em janeiro de 1995, representava 40 organizações em 19 países. Sua Declaração de princípios postula que a criação de uma ordem econômica internacional mais justa – baseada na democracia, na diversidade cultural e na sustentabilidade ecológica – exige novos acordos internacionais que coloque as necessidades dos povos, das economias locais e do meio ambiente acima dos interesses das corporações multinacionais. E conclui afirmando que “é possível, necessário e, a longo prazo, muito mais viável buscar tais caminhos do que um sistema econômico globalizado condenado ao fracasso.

A globalização, como se mostra atualmente, não vem tomando um bom caminho, pois prega à falsa ideia de que todos os estados devem ter o mesmo tratamento, o que é impossível tendo em vista as enormes diferenças entre eles.

O ideal é que se difundam ideias e políticas que preservem a identidade cultural e regional de cada nação, para que possam usufruir da melhor forma seus pontos positivos.

Entende-se que a globalização é um fenômeno inevitável que tende a aumentar cada vez mais, porém deverá ser dirigido de uma maneira correta para cuidar de problemas mundiais de interesse global, e não causando tais problemas, para que não haja consequencias catastróficas no mundo como um todo ao longo do tempo.

 

Referência bibliográficas
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VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1997.
Notas:
[1] Tornada paradigma para a ação, a globalização reflete nos Estados-Nação, exigindo um protecionismo que em tese se contradiz com a demanda "livre e global" apregoada pelos liberais de plantão.
[2] Hoje é mais usual na doutrina e jurisprudência encontrarmos dimensões dos direitos, ao invés de gerações dos direitos.
[3] Os elementos, igualdade dos cidadãos e acesso ao poder, são os que fundam a cidadania antiga e a diferenciam da cidadania moderna.
[4] A perversidade sistêmica é um dos seus corolários.
[5] Agora a competitividade toma o lugar da competição. A concorrência atual não é mais a velha concorrência, sobretudo porque chega eliminando toda forma de compaixão.
[6] Mas, de outro lado, ele é muito fraco, muito débil, desde que encontremos a maneira de definí-lo como um dado de um sistema mais amplo.
[7]Tudo que é feito pela mão dos vetores fundamentais da globalização parte de ideias científicas, indispensáveis à produção, aliás, acelerada, de novas realidades, de tal modo que as ações, assim criadas, se impõe como soluções únicas.
[8] Desse conjunto de variáveis decorrem, também, outras condições da vida contemporânea, fundadas na matematização da existência, carregando consigo, uma crescente sedução pelos números, um mágico das estatísticas.

Informações Sobre o Autor

Jaime Gonçalves Filho

Advogado graduado pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), especialista em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), e em Direito Público pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus, mestrando em Direito Político e Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie


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Equipe Âmbito Jurídico

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