Resumo: O consumidor, de modo geral, é parte hipossuficiente nas relações de consumo. Com efeito, o crescimento da sociedade consumerista e a massificação das negociações tornaram o consumidor refém dos contratos unilateralmente confeccionados e impostos pelos fornecedores. Assim, o Código de Defesa do Consumidor visa proteger a parte mais fraca da relação contratual, assegurando-a contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços. Desse modo, pretende-se examinar as cláusulas contratuais abusivas nos contratos de consumo, bem como indicar qual a espécie de sanção indicada na legislação consumerista para combatê-las.
Palavras-chave: Consumidor. Cláusulas abusivas. Contratos de consumo. Nulidade de pleno direito.
Sumário: 1 Introdução. 2 Cláusulas contratuais abusivas. 2.1 Definição e características gerais. 3 Sanção às cláusulas abusivas: nulidade de pleno direito. 4 Considerações finais.
1 Introdução
O Código de Defesa do Consumidor, instituído por meio da Lei n. 8.078/1990, tem por premissa fundamental proteger o consumidor, geralmente parte hipossuficiente nas relações de consumo. De fato, com o crescimento da sociedade consumerista e a massificação das negociações, o consumidor passou a ocupar lugar desvantajoso na relação contratual firmada com o fornecedor, já que é este quem determina os regramentos do negócio, unilateralmente.
Com efeito, a larga utilização dos contratos de adesão[1], em que pese ter agilizado as negociações, desencadeou a ampla inclusão de cláusulas abusivas nos instrumentos firmados pelo consumidor, já que geralmente não lhe é dado chance de conhecer os termos do contrato, tampouco de modificar as cláusulas impostas no pacto. Em decorrência da constatação de que o consumidor ocupa posição desfavorável no mercado de consumo, o artigo 4º, inciso I[2], do diploma consumerista, expressamente reconhece a sua vulnerabilidade, criando normas que o protejam das ações abusivas efetivadas pelo fornecedor.
Dentre as regras protetivas no campo contratual, destaca-se a determinação de que o consumidor não está obrigado ao cumprimento do contrato, se o conteúdo do instrumento não lhe foi submetido para o prévio conhecimento ou se os pactos dificultarem a compreensão de seu sentido e alcance em razão da sua imprópria redação, bem como a disposição de que as cláusulas estipuladas na contratação serão interpretadas de forma mais favorável ao consumidor, conforme os artigos 46[3] e 47[4] da legislação pertinente.
Logo, a fim de garantir equilíbrio na relação contratual entabulada entre consumidor e fornecedor, o artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor prevê alguns direitos básicos do consumidor, dentre eles, no inciso IV[5], a sua proteção contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços. Nesse contexto, o estudo pretende analisar as cláusulas contratuais abusivas nos contratos de consumo, destacando-se a sua definição e as suas características gerais, bem como a sanção imposta pela legislação para o seu combate.
2. Cláusulas contratuais abusivas
A legislação consumerista, relativamente à relação de consumo, destaca dois momentos distintos para a proteção do consumidor. Primeiramente, ampara o consumidor na fase pré-contratual e no momento da formação do vínculo com o fornecedor, estabelecendo direitos àquele e deveres a este. Posteriormente, assegura ao consumidor o controle judicial da matéria vertida no contrato, criando, expressamente, normas que proíbem as cláusulas abusivas nos contratos de consumo[6]. A proteção do consumidor contra cláusulas abusivas, dessa maneira, ocorre em momento posterior ao da contratação, ou seja, por ocasião da execução do pacto firmado, quando o instrumento passa a gerar os efeitos declinados pelas partes nas cláusulas firmadas.
A propósito, depreende-se dos termos do artigo 1º[7] do Código de Defesa do Consumidor que as normas que objetivam a proteção e a defesa do consumidor são consideradas de ordem pública e de interesse social. Desse modo, para Marques[8], as normas são consideradas imperativas e inafastáveis pela vontade dos contratantes, consubstanciando-se em “instrumentos do direito para restabelecer o equilíbrio, para restabelecer a força da ‘vontade’, das expectativas legítimas, do consumidor, compensando, assim, sua vulnerabilidade fática”. Então, “a proibição das cláusulas abusivas é uma das formas de intervenção do Estado nos negócios privados para impedir o abuso na faculdade de predispor unilateralmente as cláusulas contratuais, antes deixadas sob o exclusivo domínio da autonomia da vontade”[9].
Assim, considerando que as normas proibitivas de cláusulas abusivas são imperativas e visam o equilíbrio na relação de consumo, bem como ciente de que é na fase de execução do contrato que as cláusulas abusivas são percebidas, gerando efeitos desfavoráveis ao consumidor, importante abordar o conceito e as características gerais destas cláusulas.
2.1 Definição e características gerais
Preliminarmente, para que seja possível definir as cláusulas contratuais abusivas, é imprescindível analisar o significado do termo ‘abusividade’. Depreende-se da lição de Marques[10] que a atual tendência é “conectar a abusividade das cláusulas a um paradigma objetivo, em especial, ao princípio da boa-fé objetiva; observar mais seu efeito, seu resultado, e não tanto repreender uma situação maliciosa ou não subjetiva”. Dessa forma, para que seja caracterizada a abusividade de determinada cláusula, é necessário observá-la sob o ângulo da boa-fé objetiva, não havendo espaço para a sua acepção subjetiva, já que a sua caracterização “independe de análise subjetiva da conduta do fornecedor, se houve ou não malícia, intuito de obter vantagem indevida ou exagerada. Em nenhum momento a Lei 8.078/90 exige a má-fé, o dolo do fornecedor para caracterização da abusividade da cláusula”[11].
No mesmo sentido leciona Tonial[12], argumentando que a abusividade relaciona-se com a boa-fé objetiva: “infere-se que, com base na boa-fé objetiva, o abuso nas cláusulas contratuais é determinado pelo desequilíbrio entre a prestação e a contraprestação do contrato, capaz de gerar prejuízo ou onerosidade excessiva para o consumidor”. Assim, conclui Miragem[13]:
“este vínculo lógico entre o abuso do direito e a vulnerabilidade do consumidor no CDC é que resulta o caráter abusivo de determinadas condutas do fornecedor e, da mesma forma, cláusulas abusivas que – observada a desigualdade fática entre os sujeitos contratuais – coloquem o consumidor em situação de desvantagem exagerada em relação ao fornecedor.”
A abusividade, dessa forma, confunde-se com a boa-fé objetiva. Esta, por sua vez, encontra-se expressamente disciplinada no artigo 4º, inciso III[14], do Código de Defesa do Consumidor, como princípio norteador das relações de consumo, uma vez que “representa o padrão ético de confiança e lealdade indispensável para a convivência social. As partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas. Essa expectativa de um comportamento adequado por parte do outro é um componente indispensável na vida de relação”[15].
Desse modo, a boa-fé objetiva é princípio geral do direito, pressupondo, primeiramente, comportamento de confiança e lealdade entre os contratantes, bem como gerando deveres secundários de conduta, os quais “impõem às partes comportamentos necessários, ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avença”[16]. Assim, existe no sistema contratual da legislação consumerista “a obrigatoriedade da adoção pelas partes de uma cláusula geral de boa-fé, que se reputa existente em todo e qualquer contrato que verse sobre relação de consumo, mesmo que não inserida expressamente nos instrumentos contratuais respectivos”[17].
Então, as cláusulas são consideradas abusivas quando afrontam a boa-fé objetiva, princípio que permeia todas as relações de consumo e prima pelo comportamento leal e de confiança recíproca entre as partes contratantes. Nesse passo, ensina Aguiar Jr.[18]:
“são cláusulas abusivas as que caracterizam lesão enorme ou violação ao princípio da boa-fé objetiva, funcionando estes dois princípios como cláusulas gerais do Direito, a atingir situações não reguladas expressamente na lei ou no contrato. Norma de Direito Judicial impõe aos juízes torná-las operativas, fixando a cada caso a regra de conduta devida.”
Ademais, a fim de complementar a definição proposta, relevante destacar que as cláusulas abusivas são aquelas “concomitantes à formação do contrato, ou seja, no momento em que as partes o celebram já fica lançado o germe de algo que mais tarde, na fase de execução, vai gerar um problema”[19]. Logo, o contrato nasce com a abusividade, independentemente da ocorrência de fato posterior que possa modificar a cláusula e torná-la prejudicial ao consumidor, ou seja, a abusividade é intrínseca à cláusula quando da celebração do instrumento contratual.
No que tange à legislação consumerista, as cláusulas abusivas estão determinadas no seu artigo 51[20], que indica a relação de situações em que a cláusula imposta pelo fornecedor será considerada abusiva. Destaca-se como abusiva a cláusula que impossibilita, exonera ou atenua a responsabilidade do fornecedor; a que estabelece a inversão do ônus da prova em desfavor do consumidor; a que deixa ao fornecedor a opção de concluir ou não o pacto, mesmo obrigando o consumidor; a que permite ao fornecedor variar o preço unilateralmente; a que coloque o consumidor em desvantagem exagerada e a que esteja em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor.
Embora o Código expresse diversas circunstâncias, o rol possui caráter meramente exemplificativo, já que no ‘caput’ da norma verifica-se o termo ‘entre outras’, indicativo de que se trata de listagem aberta, não taxativa. Desse modo, a indicação das cláusulas “é chamada de lista-guia porque se presta a servir de guia para que o juiz possa identificar as cláusulas abusivas no caso concreto. Funciona como uma relação de tipos abertos, aos quais devem ser comparadas as cláusulas suspeitas de abusivas”[21].
Sendo assim, ensina Nery Jr.[22]: “esse rol não é exaustivo, podendo o juiz, diante das circunstâncias do caso concreto, entender ser abusiva e, portanto, nula determinada cláusula contratual. Está para tanto autorizado pelo caput do art. 51 do CDC, que diz serem nulas ‘entre outras’, as cláusulas que menciona”. Ademais, o caráter exemplificativo da norma é acentuado pelo teor dos incisos IV e XV do artigo 51, que oferecem critérios para a verificação da abusividade nas cláusulas contratuais[23]. Dessa maneira, o inciso IV é considerado norma aberta, já que traz conceitos indefinidos, tais como iniqüidade e incompatibilidade com a boa-fé, bem como é assim tratado o inciso XV, na medida em que envolve outras leis, além da legislação consumerista, mesmo que posteriores a ela[24].
Especificamente no que refere ao inciso IV, leciona Miragem[25] que se trata “de cláusula de abertura no sistema de reconhecimento das cláusulas abusivas no CDC, a partir da qual se dá o desenvolvimento jurisprudencial em relação à violação dos deveres decorrentes dos princípios da boa-fé, do equilíbrio ou da equidade”. Desse modo, afirma Aguiar Jr.[26]:
“[a norma] se dirige especificamente às relações interpartes, atuando como uma cláusula geral do Direito, utilizável sempre que, afora os casos especialmente enumerados na lei, a lealdade e a probidade são determinantes de deveres secundários (acessórios ou anexos) ou impedientes do exercício do direito contrariamente à boa-fé.”
Portanto, a cláusula abusiva é aquela imposta unilateralmente pelo fornecedor e que contraria a boa-fé objetiva, provocando o desequilíbrio contratual, onerando excessivamente o consumidor. As cláusulas abusivas encontram-se tipificadas no artigo 51 da legislação consumerista, cujo rol é exemplificativo, permitindo que outras circunstâncias sejam enquadradas como abusivas a um dos contratantes.
3 Sanção às cláusulas abusivas: nulidade de pleno direito
O ‘caput’ do mencionado artigo 51 do diploma consumerista prevê que as cláusulas consideradas abusivas são nulas de pleno direito. De acordo com a lição de Marques[27], “o Código é bastante claro ao definir as sanções das cláusulas abusivas: nulidade de pleno direito – ou nulidade absoluta, na terminologia do Código Civil -, o que significa negar qualquer efeito jurídico à disposição contratual”. Para Bonatto[28], “a nulidade de pleno direito é aquela cominada a vício descrito com precisão matemática pela lei, ou seja, de vício manifesto, visível pelo próprio instrumento ou por prova literal; por essa razão, ao juiz é admitido dela conhecer independentemente de provocação”. No mesmo sentido, Dall’Agnol[29] explica o significado da expressão ‘pleno direito’: “diz-se da nulidade derivada de vício manifesto, de defeito comprovado, visível pelo próprio instrumento ou prova literal; por isso, ao juiz é admitido dela conhecer – se absoluta […] – independentemente de provocação da parte”.
Sendo assim, tendo em vista que a sanção imposta à cláusula abusiva é a nulidade absoluta, “não há que falar em cláusula abusiva que se possa validar: ela sempre nasce nula, ou, melhor dizendo, foi escrita e posta no contrato, mas é nula desde sempre”[30].
Considerando que a sanção imposta pela legislação consumerista é de nulidade absoluta da cláusula declarada abusiva no contrato de consumo, bem como o fato de que a abusividade nela imposta contraria as normas protetivas do consumidor, que são de ordem pública e interesse social, ao magistrado cabe pronunciar a sua nulidade de ofício, independentemente da argüição do consumidor[31]. Dessa forma, a nulidade de pleno direito “pode ser decretada de ofício pelo juiz e alegada em ação ou defesa por qualquer interessado, sendo a sanção jurídica prevista para a violação de preceito estabelecido em lei de ordem pública e interesse social (art. 1º)” [32]. Assim, a declaração de nulidade da cláusula abusivas “podem e devem ser conhecidas de ofício (ex officio) pelo magistrado, portanto, independentemente da formulação de qualquer pedido na ação ajuizada pelo consumidor ou até mesmo quando o consumidor figurar como réu”[33]. Nesse passo, colhe-se a lição de Nery Jr.[34]:
“no regime jurídico do CDC, as cláusulas abusivas são nulas de pleno direito porque contrariam a ordem pública de proteção ao consumidor. Isso quer dizer que as nulidades podem ser reconhecidas a qualquer tempo e grau de jurisdição, devendo o juiz ou tribunal pronunciá-las ex officio, porque normas de ordem pública insuscetíveis de preclusão.”
Ademais, importante destacar que a legislação consumerista, no artigo 51, §2º[35], prevê que a decretação de cláusula abusiva não invalida o contrato na sua integralidade, mas tão somente a disposição contratual caracterizada como onerosa ao consumidor. Todavia, em exceção à regra geral, será nulificado todo o instrumento contratual se decorrer ônus excessivo a qualquer das partes em razão da ausência da cláusula. Logo, “a invalidação da cláusula não contaminará as demais, isentas de vício, permanecendo íntegro o contrato, a não ser que a ausência daquela, apesar dos esforços de integração realizados pelo juiz, acarrete ônus excessivo a qualquer das partes, ou seja, tanto ao consumidor quanto ao fornecedor” [36].
Nesse contexto, o termo ‘integração’ constante na regra é explicado por Marques[37]: “a integração aqui é a dos efeitos do negócio, agora não mais previstos expressamente em virtude da invalidade da cláusula, recorrendo o juiz a normas supletivas ou dispositivas do ordenamento jurídico brasileiro”. Resta evidente, assim, a intenção da legislação na manutenção do instrumento contratual firmado, o que, segundo Aguiar Jr.[38], “atende ao interesse econômico de não inviabilizar ou dificultar exageradamente as relações de consumo. […] Portanto, restabelecida a posição adequada às exigências da equidade e da boa-fé, não há razão para o reconhecimento da nulidade porque o vício já desapareceu”. Por fim, conclui Marques[39]:
“a sanção, portanto, é negar efeito unicamente para a cláusula abusiva, preservando-se, em princípio, o contrato, salvo se a ausência da cláusula desestruturar a relação contratual, gerando ônus excessivo a qualquer das partes. Cuida-se do princípio da conservação do contrato. O magistrado, portanto, após excluir o efeito da cláusula abusiva, deve verificar se o contrato mantém condições – sem a cláusula abusiva – de cumprir sua função socioeconômica ou, ao contrário, se a nulidade da cláusula irá contaminar o invalidar todo o negócio jurídico.”
Assim, a cláusula considerada abusiva pelo Juízo será decretada nula de pleno direito, não produzindo qualquer efeito no contrato em que incluída. O instrumento contratual, por sua vez, permanece hígido, desde que a nulidade não cause ônus excessivo aos contratantes, o que, uma vez verificado, invalidará a totalidade no negócio jurídico. Por se tratar de matéria de ordem pública, a nulidade pode decorrer de requerimento expresso da parte lesada ou ser decretada de ofício pelo julgador, esteja a parte figurando com autor ou réu na demanda.
4 Considerações finais
A legislação consumerista objetiva a proteção do consumidor em todas as fases da relação de consumo, expressamente garantindo a sua posição de vulnerabilidade perante o fornecedor. Nos contratos de consumo, a lei proíbe que ao consumidor sejam impostas cláusulas consideradas abusivas, que o coloquem em situação de desvantagem perante o fornecedor contratante. A abusividade decorre da afronta ao princípio da boa-fé objetiva, norma fundamental que permeia as relações firmadas entre consumidores e fornecedores.
Assim, decretada a abusividade de determinada cláusula, ela não produzirá qualquer efeito no contrato em que inclusa, já que a regra consumerista prevê que a sanção às cláusulas abusivas será a nulidade de pleno direito. Então, nulificada a cláusula, a regra geral é a de que o contrato permanecerá vigente, desde que não decorra ônus às partes em virtude da ausência da cláusula.
Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. – Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Meridional – IMED/RS, 2010. – Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo – UPF/RS, 2007. – Advogada integrante da banca Carles de Souza Advogados Associados
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