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Comentários sobre a Justiça Desportiva e sugestão para a efetivação de sua independência e autonomia

Resumo: Trata-se de artigo no qual há
comentários sobre Justiça Desportiva e proposta de adoção de uma medida para
torná-la verdadeiramente autônoma e independente, nos moldes da lei.

Sumário: I. Intróito; II. Balizamento Legal; III. Natureza
Jurídica; IV. Limitações Constitucionais; V. Impossibilidade de julgar lides trabalhistas; VI. Organização Interna no Brasil; VII.
Proposta para tornar a Justiça Desportiva verdadeiramente autônoma e
independente.

I. Intróito

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As linhas seguintes abordam questões atinentes à Justiça
Desportiva (JD) e propõem a adoção de algumas medidas para aperfeiçoá-la e
adequá-la aos ditames legais que apregoam sua autonomia.

De forma alguma pretende-se exaurir
a abordagem de assunto tão amplo e complexo como o funcionamento das instâncias
incumbidas de solucionar lides decorrentes de conflito de interesses em matéria
desportiva. Tenciona-se não mais que contribuir para a divulgação e
esclarecimento de diversos pontos relativos à JD e propor a discussão de um
pequeno grupo de propostas voltado para adaptar a Justiça Desportiva à moldura
para ela prevista na Carta Magna e na legislação infraconstitucional.

II. Balizamento legal

A Justiça Desportiva foi acolhida no seio da Constituição
Federal de 1988, (art. 217, §§ 1º e 2º). Posteriormente, da JD trataram a Lei nº 8.028, de 12/4/1990, em seu art. 33, a Lei nº
8.672, de 6/7/1993, mais conhecida como Lei Zico, do art. 33 ao
37 e seus §§, o Dec. nº 981, de 11/11/1993, do
art. 30 ao parágrafo único do art. 31 e a Lei 9.615/98.

A Lei nº 8.672/93 foi o diploma
infraconstitucional pioneiro em solo pátrio a regulamentar a disciplina e organização da Justiça Desportivas para todas as modalidades.
Noutrora, as linhas gerais da organização da JD
competiam ao código disciplinar de cada modalidade desportiva. Portanto, existe
a JD da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a da Confederação Brasileira
de Baquetebol (CBB), etc., mas todas obedecem às
mesmas diretrizes gerais.

III. Natureza jurídica

A Justiça Comum não é a instância mais adequada para lidar
com litígios de natureza desportiva porque, em geral, carece de conhecimentos
especializados e utiliza rituais e processos
incompatíveis com a premência exigida para a solução dos conflitos ligados à
prática desportiva. Por isso, fundamental o perfeito funcionamento da JD.

O art. 50 da Lei 9.615/98 (Lei Pelé) estabelece que a
organização, o funcionamento e as atribuições da JD devem ser definidos em
códigos de Justiça Desportiva e são limitados ao processo e julgamento das
infrações disciplinares e às competições desportivas.

De acordo com o emérito Sebastião Roque Júnior, “a Justiça
Desportiva é um sistema de julgamento que caminha de forma paralela à
jurisdição normal: objetiva dirimir as lides surgidas no campo esportivo.”

Segundo o nupermencionado professor
Roque Júnior, as lides tipicamente desportivas são “controvérsias que, por sua
natureza e pelas circunstâncias em que soem acontecer, não extrapolam os
limites e o terreno da competição desportiva tout court, sendo, por isso, desejável que
venham a ser dirimidas interna corporis.”

Controvérsias desportivas em sentido estrito são as
relacionadas às regras da pugna, entre elas: suspensão após expulsão do campo
de jogo, suspensão por dopagem, multa por infração a regra disciplinar (como
retirada do uniforme, por exemplo), etc.

Impende destacar que as lides desportivas stricto sensu vigoram em todas as confederações desportivas e,
conseqüentemente, para todas as entidades de prática futebolista do mundo. Não
estão exclusivamente à mercê do legislador de cada país, pois derivam de um
arcabouço legal comum a todas as nações. Valem urbi et orbi,
motivo pelo que não devem ser julgadas pelo magistrado comum,
conhecedor e/ou aplicador apenas de sua legislação pátria.

Corrobora essa visão, em Les Sports et Le Droit, o emérito professor Jean Loup,
advogado na Corte de Toulouse: “Há também nas instituições de esportes
autoridades judiciais encarregadas de fazer valer e respeitar as leis e julgar
os litígios. As decisões das jurisdições esportivas são universalmente
respeitadas”.

Não figuram no rol de lides tipicamente desportivas as
relações trabalhistas entre atletas e entidades de prática de desportiva;
contratos de licença de uso de imagem de atletas profissionais; controvérsias
oriundas da relação de consumo entre torcedor e organizador de evento
esportivo, etc.

Outrossim, são estranhos à JD atos praticados
em atividades desportivas não oficial ou não oficializada (jogos de campeonato
amistosos) e jogos não promovidos pela respectiva federação (caso de um
atleta que participa de uma “pelada” com amigos, por exemplo).

Ademais, a celeridade com que se desenvolvem as competições
demanda um pronto atendimento por parte da JD, de modo a evitar a inocuidade
dos processos. Não haveria sentido em julgar na Justiça Comum um caso de
suspensão pelo recebimento de um cartão vermelho (expulsão) em um campo de
futebol, pois os trâmites processuais seriam assaz longos, o que inviabilizaria
a punição do atleta para as próximas partidas, por exemplo.

IV. Limitações constitucionais

O art. 5º, XXXV, da Carta Magna afirma peremptoriamente que
nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Poder
Judiciário. Em razão disso, também são admitidas perante a Justiça Comum as
ações relativas à disciplina e às competições desportivas.

Todavia, a busca da solução por intermédio do Poder Público
deve ser precedida pelo haurimento das instâncias da
JD. Caso contrário, o processo será extinto por ausência de pressuposto de
constituição e de desenvolvimento válido e regular.

Parte da doutrina entende que o § 1o do artigo 217
restringe o acesso à prestação jurisdicional estatal.

Outra parcela, no entanto, entende que o parágrafo em tela
somente determina o preenchimento de condições específicas para o acesso ao Judiciário.
Além das condições da ação (legitimidade ad causum, interesse processual e
possibilidade jurídica do pedido), o § 1o do artigo 217 estabeleceu
ser necessário o esgotamento das instâncias de Justiça Desportiva para que seja
possível ingressar no Judiciário.

E isto não constitui violação constitucional, já que para que
seja impetrado mandado de segurança, por exemplo, a Lei 1533/51 obriga a
comprovação da matéria de fato tratada na exordial.
Assim, não há que se falar em vedação; apenas em limitação.

Ressalte-se, por fim, que a Justiça Comum deve interferir no
âmbito desportivo apenas quando, nas palavras de Bruno Zauli,
“o desporto degenera em atos prejudiciais ao bem-estar moral e social dos
cidadãos”.

V. Impossibilidade de julgar lides trabalhistas

Até meados da última década do século XX, persistia uma
arenga doutrinária a respeito de um possível enquadramento, no âmbito da
Justiça Desportiva, de questões trabalhistas.

Alguns estudiosos defendiam a competência da JD para tratar
de todo e qualquer litígio advindo da relação entre atletas e entidades de
prática desportiva, inclusive os de natureza laboral.

Todavia, outros jurisconsultos afirmavam não ser razoável
essa interpretação, sob a alegação de que o espírito da lei erguia-se,
claramente, no sentido de ser aplicado apenas às questões estritamente
relacionadas ao jogo, aquelas relativas às competições.

Parte dessa confusão decorre da publicação de normatizações claramente inconstitucionais, entre elas a
Lei 6.354/76, que estabelecia:

Art. 29. Somente serão admitidas
reclamações à Justiça do Trabalho depois de esgotadas as instâncias da Justiça
Desportiva, a que se refere o item III do art. 42 da Lei n. 6.251, de 8 de
outubro de 1975, que proferirá decisão final no prazo máximo de 60 (sessenta)
dias contados da instauração do processo.

Parágrafo único. O ajuizamento da
reclamação trabalhista, após o prazo a que se refere este artigo, tornará
preclusa a instância disciplinar desportiva no que se refere ao litígio
trabalhista.

Mas essa controvérsia foi solucionada nos últimos anos,
quando a doutrina e a jurisprudência adotaram clara e amplamente o entendimento
de ser a Justiça do Trabalho especializada na solução de controvérsias
decorrentes de qualquer relação laboral, incluindo as
da seara esportiva. Determina essa interpretação o artigo 114 da Carta Magna:

Art. 114. Compete
à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos
entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público
externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do
Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da Lei, outras
controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que
tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.

Ademais, o artigo 29 da Lei 6.354/76 foi revogado pelo § 1o
do artigo 53 Decreto 2.574/98 (que regulamentou a Lei Pelé), que determina:

Art. 53 (…)

§ 1.º.
Ficam excluídas da apreciação do Tribunal de Justiça Desportiva as questões de
natureza e matéria trabalhista, entre atletas e entidades de prática
desportiva, na forma do disposto no § 1.º do art. 217 da Constituição federal e
no caput desse artigo.

Por conseguinte, límpido o entendimento de que cabe à Justiça
do Trabalho apreciar lides de natureza laboral entre
atletas e clubes. À JD diz respeito tão somente o litígio concernente às
competições desportivas. É nesse sentido que aponta o artigo 217, § 1o CF
(“…desde que esgotadas as instâncias da Justiça
Desportiva”). Essa limitação restringe a interferência do Judiciário nas
atividades desportivas quando – e somente quando – a lide não tiver extrapolado
o âmbito meramente desportivo, i.e., quando não versar sobre a competição. A
interferência do Judiciário Comum, aí, seria extremamente prejudicial, pois
desautorizaria o judiciário desportivo.

VI. Organização interna no brasil

De acordo com a Lei Pelé, a JD é uma instituição de direito
privado, dotada de interesse público, razão pela qual considera-se
de relevante interesse público a função de auditor (juiz) da Justiça
Desportiva.

Os membros dos Tribunais de Justiça Desportiva devem ter
conduta ilibada e ser bacharéis em Direito ou
pessoas de notório saber jurídico. O mandato dos membros dos Tribunais de
Justiça Desportiva é de 4 anos, e é permitida apenas uma recondução.

O art. 55 da Lei Pelé afirma que os TJDs serão compostos por, no mínimo, sete e, no
máximo, onze auditores, assim indicados:
três pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); um pela entidade de
administração do desporto, i.e., federação/confederação; um pelos clubes da
divisão principal; um pelos árbitros; um pelos atletas. Inafastável
a paridade entre todos os representantes acima, exceto os da OAB.

Sempre
segundo a lei, são órgãos da JD:

·
Superior
Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que funciona junto às confederações e
trata de lides atinentes a competições interestaduais e nacionais;

· os
Tribunais de Justiça Desportiva (TJDs), que funcionam
junto às federações estaduais e distrital; e

· as
Comissões Disciplinares, encarregadas de aplicar as sanções em procedimento
sumário.

A composição das comissões disciplinares é determinada pelas
instâncias superiores a elas vinculadas, – seja o TJD ou o STJD – e a
quantidade de comissões disciplinares será definida pela necessidade do bom
funcionamento dos TJDs e do
STJD.

É proibido dirigente de confederação, federação ou clube
ocupar algum cargo em órgão da JD, com exceção feita aos membros dos conselhos
deliberativos das entidades de prática desportiva.

Assim como na Justiça Comum, em que o juiz monocrático não
pode pertencer aos tribunais recursais, veda-se a participação concomitante de
um mesmo auditor nas comissões disciplinares e nas instâncias superiores da
Justiça Desportiva.

Atua junto à JD a Procuradoria Desportiva, que,
semelhantemente ao Ministério Público em relação ao Poder Judiciário, não
pertence à estrutura do órgão judiciário. A competência e a organização da
Procuradoria são regulamentadas pelos códigos de Justiça Desportiva específicos
de cada modalidade e, também, nos estatutos das entidades de administração
esportiva.

Reza o art. 52 da Lei 9.615/98 que
os Tribunais de Justiça Desportiva – e, por extensão, também podemos
interpretar a PJD – são “unidades autônomas e independentes das entidades de
administração do desporto de cada sistema”.

No entanto, essa previsão de
autonomia e independência não tem sido cumprida porque (i) cabe às nupermencionadas entidades de administração do desporto
custear o funcionamento da Justiça Desportiva e (ii)
os auditores são indicados pelas
entidades de classe.

Em razão disso, os TJDs,
o STJD e, em menor grau, a PJD, amiúde são tratados como repartições das
federações/confederação, isso porque os auditores e procuradores ficam
encabrestados por quem os indicou aos cargos. Levando-se em conta o histórico peleguismo dos clubes da divisão principal e a debilidade
da autonomia das entidades representativas dos árbitros e dos atletas, a
federação/confederação possui, na prática, maioria de votos na JD, pois somente
os representantes da OAB, ao menos em tese, ficam mais distantes da influência
das entidades de administração do desporto.

A verdadeira autonomia ocorrerá somente quando a JD conseguir
manter-se financeiramente sem as benesses concedidas pelas entidades de
administração do desporto e com um corpo funcional cuja escalada rumo à JD
tenha sido realizada de maneira independente, sem a necessidade de ter de
suplicar por indicação política.

Portanto, premente uma ação reparadora para fazer valer a
lei. Para atingir a salutar e legalmente indicada independência prevista nos
ditames legais, imprescindível a libertação dos
grilhões funcionais aos quais a Justiça Desportiva encontra-se submetida.

VII. Proposta para tornar a Justiça
Desportiva verdadeiramente autônoma e independente

A realização de concurso de provas
e títulos (seguida de uma pesquisa de credenciamento sobre a idoneidade e vida
pregressa do candidato), analogamente ao que ocorre para o preenchimento de
vagas no Judiciário e Ministério Público, garantiria a essencial independência
funcional para auditores e procuradores desportivos.

As provas seriam realizadas por
uma instituição idônea e de reconhecida competência na elaboração de processos
de seleção. Os candidatos concorreriam pelas vagas destinadas às associações
citadas no art. 55 da Lei 9.615/98.

A escolha da empresa responsável
pela seleção e a análise da vida pregressa dos candidatos poderia ser realizada
pela próprio TJD/STJD ou pelas
federações/confederação, para que não seja sequer aventada a argumentação de
que a realização de concurso poderia ferir a autonomia e independência das
federações/confederação e/ou dos TJDS/STJD.

O mandato dos procuradores desportivos e dos auditores
continuaria com a duração atual, mas seria vedada a possibilidade de obter dois
mandatos consecutivos. A recondução somente seria permitida aos que
concorressem pela entidade cujo número de vagas não tivesse sido preenchido
(OAB ou federação/confederação, por exemplo). Nas demais, assumiriam os
aprovados no (lembrando-se, logicamente, que os procuradores não são indicados
de acordo com a entidade de classe).

O estabelecimento de critérios meritocráticos para o provimento de cargos nos TJDs, STJD e PJD libertaria
auditores e procuradores das pressões e dos constrangimentos aos quais estão expostos
todos os que ocupam determinado cargo em razão de indicação política e, via de
conseqüência, propiciaria melhores condições para que pudessem atuar de forma
independente, isenta, idônea e escorreita.

O que seria do mecanismo de
tripartição de poderes, e do próprio Estado Democrático de Direito, se todos os
magistrados e membros do MP fossem indicados pelo presidente da República?

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Luiz César Cunha Lima

 

advogado em Brasília/DF, membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD), do Centro de Estudos em Direito Internacional (CEDI) e da London Court of International Arbitration´s Young International Arbitration Group (LCIA/YIAG).

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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