Resumo: Este artigo aborda as medidas antitabaco estabelecidas pelo governo da Austrália, notadamente a imposição de embalagens padronizadas a produtos de fumo, sob o ponto de vista de normas de direito internacional e de propriedade intelectual. Conforme notícia veiculada pelo site Bloomberg no primeiro semestre de 2017, o órgão de resolução de conflitos da Organização Mundial do Comércio está na iminência de corroborar as normas australianas, em uma disputa que perdura por anos. Tal decisão representa um marco histórico para o comércio internacional e possibilita a diversos países a adoção de regras congêneres contra o tabagismo. Além da Nova Zelândia, Reino Unido e União Europeia, o Brasil também é interessado na disputa, tanto por ser forte exportador de fumo e pela pressão que a bancada do tabaco exerce no Congresso, quanto pelas recomendações pela Organização Mundial da Saúde para adoção das embalagens padronizadas. Em contrapartida, a decisão da OMC representa possíveis violações às normas domésticas e transnacionais de propriedade intelectual, especialmente o Acordo TRIPS e a Convenção de Paris. Avalia-se, portanto, os argumentos dos defensores das medidas antifumo e os fundamentos da indústria do tabaco, concluindo-se pela ineficiência da norma australiana para redução do fumo.
Palavras Chaves: Comércio Exterior. Saúde Pública. Tabaco. Propriedade Intelectual. Organização Mundial do Comércio.
Abstract: This article addresses the anti-smoking measures established by the Australian Government, notably the imposition of standardised packaging on tobacco products, from the point of view of rules of international law and intellectual property law. According to a report published by Bloomberg in the first semester of 2017, the World Trade Organisation's conflict resolution body is on the verge of corroborating the Australian rule in a dispute that lasts for years. This decision represents a historic milestone for trade and allows countries to adopt similar standards against smoking. In addition to New Zealand, the United Kingdom and the European Union, Brazil is also interested in the dispute for being a strong exporter of tobacco, for the pressure exerted by the tobacco lobby in Congress, and for the World Health Organisation's recommendations for the adoption of standardised packaging. By contrast, the WTO ruling represents possible breaches of domestic and transnational intellectual property norms, especially the TRIPS Agreement and the Paris Convention. This article assesses, therefore, the arguments by proponents of anti-smoking measures and the foundations of the tobacco industry, concluding by the ineffectiveness of the Australian measure for smoking reduction.
Key Words: Trade. Public health. Tobacco. Intellectual Property. World Trade Organisation.
Sumário: Introdução. 1.Desenvolvimento das normas incidentes. 2.A OMC. 2.1.O Caso Australia – Embalagem Padronizada (WT/DS435/441/458/467). 2.1.1.Reprimendas à medida australiana. 2.1.2.Aprovação da medida australiana. 3.Análise pela autora quanto à eficácia da medida australiana. Conclusão.
Introdução
A globalização e a liberalização do comércio proporcionam há dezenas de anos incontáveis benefícios à população mundial. Em virtude da facilitação das exportações e importações, indivíduos que antes não tinham acesso a produtos – ou a uma variedade significativa deles – adquiriram poder de escolha, não se sujeitando tão facilmente ao monopólio e preços exorbitantes. Atualmente, mercadorias atravessam o globo para suprir a necessidade dos consumidores, assegurando concorrência, aumento da oferta e redução dos preços.
Conforme afirmou o premiado jornalista do The New York Times, Thomas Friedman, a globalização é “(…) the inexorable integration of markets, nation-states and technologies to a degree never witnessed before – in a way that is enabling individuals, corporations and nation-states to reach around the world farther, faster, deeper, and cheaper than ever before, and in a way that is enabling the world to reach into individuals, corporations and nation-states farther, faster, deeper and cheaper than ever before.”[i]
A liberalização comercial internacional facilita o acesso tanto para artigos essenciais (como medicamentos, alimentos, automóveis, gás natural e peças para maquinário), quanto para produtos nocivos à saúde, como o cigarro. Logo, juntamente com as vantagens vieram as preocupações, notadamente nas últimas décadas, em que se intensificou o debate quanto aos malefícios do liberalismo econômico. Críticos da globalização desenfreada ressaltam consequências do fenômeno a longo prazo: promoção de fatores de consumo insustentáveis, que prejudicam o meio ambiente a nível regional e global; danos às economias dos países em desenvolvimento, que são pressionados a liberalizar seus mercados abruptamente para importações sem a devida atenção para as exportações; mitigação excessiva dos padrões de proteção ao trabalho, segurança, e – mais importante para este artigo – à saúde humana.
A fim de proteger valores sociais frente à aceleração das trocas comerciais, convenções e tratados foram sendo elaborados, além de cláusulas que foram inseridas em acordos pré-existentes. E diante do desenvolvimento cada vez mais frequente de novos ramos do direito, garantias pré-existentes vieram a colidir com encargos noviços. Se anteriormente os Estados possuíam maior liberdade para instituir regulações a fim de proteger diversos interesses domésticos, atualmente eles têm o dever de observância aos acordos ratificados, sob pena de incorrerem em responsabilidade internacional. Mais precisamente para este estudo, o direito de um Estado de regular e proibir sinais distintivos em embalagens de produtos de fumo colide diretamente com a propriedade intelectual das detentoras das marcas afetadas.
O presente artigo visa analisar a razoabilidade e proporcionalidade da medida instituída pela Austrália, que foi pioneira em determinar a padronização de embalagens de fumo e demais derivados do tabaco. O impasse reside no descumprimento pelo país de normas universais de propriedade industrial, notadamente o acordo TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) e a Convenção de Paris.
1. Desenvolvimento das normas incidentes
Afirma-se que a competitividade e a redução dos preços de produtos maléficos à saúde propalam o seu consumo, aumentando os níveis de mortalidade.[ii] Estudos apontaram que a liberalização do comércio em determinados países estimulou a demanda por derivados do tabaco. A análise foi feita no Japão, na Coreia do Sul, em Taiwan e na Tailândia, onde foi constatado o aumento em 20% do consumo de cigarro com as importações advindas dos Estados Unidos em 1987.[iii] Diante dessas circunstâncias, surgiu a necessidade de harmonizar as regras do comércio internacional de forma que não prejudicassem as políticas públicas dos países.
Em 1995 foi criada a mais importante organização para regulamentação das relações comerciais entre os países: a Organização Mundial do Comércio (OMC), que será avaliada com mais detalhes no capítulo 2 deste artigo. Posteriormente, em 2007, os Ministros das Relações Exteriores do Brasil, da França, da Indonésia, da Noruega, do Senegal, da África do Sul e da Tailândia emitiram a Declaração Ministerial de Oslo, em que se afirmou a necessidade de conectar o comércio com questões de saúde pública na formulação dos acordos internacionais.[iv]
Além da preocupação com políticas públicas, os países também se atentaram à proteção de outros direitos no âmbito internacional, como a propriedade intelectual. O primeiro importante acordo assegurando o resguardo à propriedade industrial foi a Convenção de Paris de 1883. Todavia, tal instrumento apresentava deficiências, tendo sido objeto de diversas modificações ao longo dos anos.[v] Posteriormente, os países desenvolvidos Membros da OMC uniram esforços para a criação do acordo TRIPS, que acabou sendo aderido por outros Membros ao longo dos anos.
2. A OMC
Em 1994 foi instituído o Acordo de Marraquexe estabelecendo a OMC. As regras da organização tratam-se de um compilado de acordos que foram sendo criados e aderidos pelos Estados Membros ao longo dos anos. As normas frequentemente invocadas pelos países signatários podem ser distinguidas através dos seguintes grupos: a) proibição de discriminação entre a indústria doméstica e a estrangeira, evitando medidas protecionistas; b) dever de assegurar o acesso ao mercado; c) proibição de comércio desleal; d) resolução de conflitos entre liberalização do comércio e outros valores sociais; e) regras procedimentais e institucionais.
Os acordos prevêem, ainda, exceções às regras, que são circunstâncias que autorizam os países a adotarem medidas restritivas ao comércio para garantia de políticas públicas. Por exemplo, um país signatário da OMC – visando a proteção da saúde pública – pode banir a importação de determinado produto nocivo, cumpridos certos requisitos (que serão abordados oportunamente neste artigo). Caso a medida não seja justificada à luz das exceções previstas, ou caso o país descumpra com as obrigações contraídas de qualquer outra forma, o Estado membro prejudicado pode acionar aquele junto ao Órgão de Solução de Disputas da OMC (DSB – Dispute Settlement Body). O DSB então emitirá recomendações para solução do conflito, sob pena de sanções e retaliações comerciais por outros signatários. Frise-se que entes privados não possuem competência para iniciar disputas junto à OMC. Contudo, os países são, na grande maioria das vezes, movidos pelo lobby das empresas prejudicadas, e acabam iniciando as disputas em favor delas.
2.1. O Caso Australia – Embalagem Padronizada (WT/DS435/441/458/467)
A Indonésia iniciou disputa na OMC contra a Austrália[vi] em razão de lei australiana determinando a adoção de embalagens padronizadas e outras especificações para cigarros e demais produtos de fumo. Cuba, República Dominicana e Honduras aderiram ao conflito a favor da Indonésia. O Brasil também anunciou seu interesse na disputa, mormente por ser o segundo maior exportador de tabaco do mundo.[vii]
A medida instituída pelo governo da Austrália visa a adoção de regras uniformes quanto à embalagem de cigarros e outros produtos originados do tabaco, produzidos no país ou importados em seu território. A regra inclui a subtração de detalhes figurativos nas embalagens, como logos comerciais, gráficos e cores distintivas. Ademais, a norma determina que as denominações da marca situem-se à frente da embalagem com letras padronizadas, permitindo-se além desses detalhes somente as compulsórias advertências à saúde. Ainda, impõe a adoção da cor fosca Pantone 448-C, um tom da cor marrom que já foi considerado o mais feio do mundo.[viii] Por derradeiro, a norma estipula regras para cigarros individuais, como por exemplo a proibição de indicações geográficas, o que afeta os interesses comerciais de Cuba dentre outros exportadores de charutos.
O Governo da Indonésia alegou preliminarmente – durante o requerimento de Consulta junto à OMC – que a Australia infringiu os artigos 2.1[ix] e 2.2[x] do Acordo sobre Barreiras Técnicas (TBT – Technical Barriers to Trade), os artigos 2.1,[xi] 3.1,[xii] 15.4,[xiii] 16.1[xiv] 16.3,[xv] 20,[xvi] 22.2[xvii] e 24.3[xviii] do Acordo TRIPS, e o artigo III:4[xix] do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT – General Agreement on Tariffs and Trade). Dentre outros argumentos, a Indonésia alegou tratamento desfavorecido aos seus exportadores em relação aos fabricantes australianos (tratamento nacional); argumentou que as medidas são mais restritivas do que o necessário para alcançar o objetivo almejado, criando obstáculos indevidos; e que elas prejudicam a propriedade intelectual das fabricantes.
Não havendo resolução através do procedimento de Consulta junto ao DSB, a Indonésia solicitou o estabelecimento de painel para análise do conflito.
2.1.1. Reprimendas à medida australiana
Os países prejudicados pela medida do governo da Austrália alegam que esta desrespeitou normas internacionais de comércio e de propriedade intelectual. Em uma reunião do Conselho do TRIPS realizada em junho de 2011, a República Dominicana afirmou que o posicionamento da Austrália é contrário à Convenção de Paris e ao artigo 20 do acordo TRIPS.[xx] Esse dispositivo preconiza que marcas comerciais não poderão ser oneradas de forma que prejudique a capacidade de se distinguir bens e serviços de uma empresa em relação aos produtos de fabricantes concorrentes.
Em reunião posterior, ocorrida em Fevereiro de 2015, a República Dominicana afirmou que a padronização de embalagens prejudica aspectos básicos das marcas comerciais e indicações geográficas previstos no acordo TRIPS. Na ocasião, o país reafirmou sua obrigação com políticas de saúde pública, contudo, alegou que dados empíricos demonstraram que a padronização de embalagens é ineficiente na diminuição de índices de fumo, especialmente entre os mais jovens.[xxi] A República Dominicana declarou, ainda, que tais embalagens mitigam a competitividade entre as marcas, deixando a escolha do consumidor dependente basicamente do preço do produto. Tal fator, segundo o representante do país, resulta em consumidores buscando cada vez mais produtos baratos e ilícitos, como já vem acontecendo na Austrália. Todavia, o agente delegado pelo país não citou fontes dos dados alegados.
A firma de advocacia suíça Lalive, solicitada pela Philip Morris International SA, exarou um relatório elencando motivos pelos quais as medidas da Austrália são incompatíveis com o TRIPS e com legislações domésticas sobre propriedade intelectual. Segundo os advogados, a norma constitui uma violação severa contra o direito dos proprietários das marcas comerciais devidamente registradas de utilizarem-nas. Afirmaram, ainda, que as normas de proteção da propriedade intelectual são regras mandatórias de direito internacional. Consequentemente, se os países deixarem de cumprir com tais obrigações, disputas serão iniciadas pelas empresas afetadas, tanto a nível doméstico quanto internacional. Alegaram, por fim, que a norma australiana cria uma regra de dois níveis: restringe o registro e o uso de marcas comerciais apenas para produtos derivados do tabaco, e não para demais artigos nocivos à saúde, garantindo a proteção mínima somente aos últimos. Isso, segundo os advogados, resulta em tratamento discriminatório proibido pelo acordo TRIPS, que preceitua que todas as marcas devem ser protegidas pelos mesmos padrões, independentemente do produto a que se relacionam.[xxii] O doutrinador Daniel Gervais também emitiu um parecer, a pedido da Japan Tobacco International, em que se concluiu que a padronização das embalagens fere o artigo 20 do Acordo TRIPS.[xxiii]
Além de argumentos jurídicos, a indústria do tabaco cita circunstâncias fáticas para provar a ilegitimidade da iniciativa australiana. Uma delas é de que o marketing das marcas não funciona como instrumento para aumentar vendas, mas sim como mecanismo de fidelização, facilitando que o consumidor adquira o produto usual.[xxiv] Outrossim, a indústria afirma que embalagens diferenciadas resultam na variação de preços, o que limita o consumo, pois pacotes homogêneos diminuem o custo final do produto, tornando-o mais acessível e atraente aos usuários.[xxv]
2.1.2. Aprovação da medida australiana.
A Organização Mundial da Saúde manifestou-se sobre o impasse e afirmou que a implementação da medida australiana é legítima e harmônica com a obrigação dos países de controlarem o consumo de tabaco. Alegou, ainda, que tal norma complementa outras medidas que visam diminuir o fumo, como restrições à propagandas e advertências quanto aos riscos à saúde.[xxvi]
Parte da doutrina afirma que a embalagem padronizada pode, de fato, reduzir o consumo de tabaco. Segundo tais autores, a embalagem, como instrumento de marketing, tem como objetivo conectar o produto às emoções do consumidor, influenciando suas decisões de compra.[xxvii] Logo, é através dela que as empresas conseguem atrair os compradores de maneira mais eficaz, mormente na Austrália, onde a propaganda de produtos com tabaco é proibida.[xxviii]
Em uma pesquisa realizada pelo banco de investimentos Morgan Stanley, observou-se que: "The other two regulatory environment changes that concern the industry the most are homogenous packaging and below-the-counter sales. Both would significantly restrict the industry's ability to promote their products."[xxix]
No que diz respeito à suposta violação do acordo TRIPS pelo governo da Austrália, essa justifica que embalagens padronizadas ajudam a diminuir o consumo de cigarros, conforme literatura científica apresentado pela Índia por ocasião da reunião do TRIPS em 2015. Aliás, a Índia mencionou a exceção prevista no artigo 8 do TRIPS[xxx] para proteção à saúde pública e o caso Asbestos, decidido pelo DSB da OMC anteriormente, que será mencionado oportunamente neste artigo. Denota-se, portanto, o comprometimento da Índia em balancear o direito da propriedade intelectual com normas de saúde pública, corroborando os esforços da Austrália.[xxxi]
3. Análise pela autora quanto à eficácia da medida australiana
Sabe-se que a própria OMC permite que seus Membros adotem regras necessárias para a proteção da saúde pública e consecução de demais políticas de interesse social. Tanto no acordo TRIPS (art. 8º) quanto no GATT (art. XX) são previstas exceções que autorizam os países a implementar medidas restritivas ao mercado, desde que justificadas:
Art. 8, TRIPS: "Members may, in formulating or amending their laws and regulations, adopt measures necessary to protect public health and nutrition, and to promote the public interest in sectors of vital importance to their socio-economic and technological development, provided that such measures are consistent with the provisions of this Agreement." [xxxii]
Art. XX, GATT: "Subject to the requirement that such measures are not applied in a manner which would constitute a means of arbitrary or unjustifiable discrimination between countries where the same conditions prevail, or a disguised restriction on international trade, nothing in this Agreement shall be construed to prevent the adoption or enforcement by any contracting party of measures: (…)
(b) necessary to protect human, animal or plant life or health;
(…)."[xxxiii]
São dois os principais requisitos para que as normas restritivas ao comércio possam ser consideradas compatíveis com os acordos da OMC: elas devem ser imprescindíveis para alcançar o objetivo almejado; e elas não podem restringir o comércio além do necessário. Exige-se, portanto, razoabilidade e proporcionalidade entre o direito de um membro ao invocar tais exceções e as obrigações dele com parceiros comerciais.
No caso Tailândia-Cigarros – o primeiro grande conflito comercial envolvendo o tabaco e saúde pública – o DSB da OMC considerou a redução do consumo de cigarros e demais artigos de fumo como um objetivo legítimo. Na ocasião o painel afirmou que os países deveriam priorizar políticas de saúde em detrimento da liberalização comercial. Contudo, conforme afirmado no caso Estados Unidos-Gasolina, não é o objetivo da medida que se deve questionar – até por que os países têm autonomia e soberania para implementar suas políticas – mas sim se a medida em questão é necessária para alcançar o propósito aspirado. Trata-se de uma análise de meios ao invés de fins. Portanto, a norma será considerada necessária caso não exista alternativas viáveis e compatíveis com as regras da OMC para produzir aquele mesmo resultado. Analisa-se, outrossim, se a medida alternativa contribui da mesma forma para o alcance do objetivo, bem como a dificuldade para implementá-la. No caso Comunidade Europeia-Asbesto, o DSB concluiu após extensos estudos que não havia modelos alternativos capazes de extinguir o uso de artigos produzidos com amianto senão a proibição total das importações de tais produtos.
O caso envolvendo a Austrália enfrenta questões importantes e inéditas, pois o DSB ainda não lidou com uma demanda envolvendo debates similares. Além disso, apesar de a Austrália e a República Dominicana citarem estudos corroborando seus argumentos, a eficácia da padronização das embalagens na prática ainda é incerta. Aliás, um documento emitido pelo departamento de saúde do Reino Unido relacionado à consulta sobre o futuro do tabaco relata que as evidências a favor da padronização de embalagens são meramente especulativas.[xxxiv] Portanto, o tema ainda requer provas e estudos empíricos.
A maior controvérsia do caso reside na forte restrição aos direitos de propriedade intelectual das empresas, o que requer uma justificativa mais contundente comparando-se com os casos já julgados pelo DSB. Conforme elucidou tal órgão em uma disputa envolvendo a União Europeia (na época Comunidade Europeia) – Proteção de marcas industriais e indicações geográficas para produtos agrícolas e alimentos – a função das marcas comerciais "(…) can be understood by reference to Article 15.1 as distinguishing goods and services of undertakings in the course of trade. Every trademark owner has a legitimate interest in preserving the distinctiveness, or capacity to distinguish, of its trademark so that it can perform that function. This includes its interest in using its own trademark in connection with the relevant goods and services of its own and authorised undertakings. Taking account of that legitimate interest will also take account of the trademark owner´s interest in the economic value of its mark arising from the reputation that it enjoys and the quality that it denotes."[xxxv]
Sabe-se que as regras da OMC são interpretadas de acordo com princípios universais do direito internacional. Utiliza-se frequentemente os dispositivos da Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados (CVLT) para a interpretação dos acordos internacionais. O artigo 26 da CVLT prevê a regra pacta sunt servanda (acordos devem ser cumpridos), inferindo-se que um país não pode contrair obrigações que prejudiquem compromissos firmados anteriormente. Logo, países Membros do acordo TRIPS devem abster-se de implementar medidas que resultem em irresponsabilidade internacional. Outrossim, o artigo 31 da CVLT preconiza que as convenções devem ser interpretadas de acordo com o objeto e propósito delas. O preâmbulo do acordo TRIPS menciona "(…)the need to promote effective and adequate protection of intellectual property rights."[xxxvi] Afirma Simon Klopschinski[xxxvii] que não se trata de assegurar os padrões mínimos do TRIPS, mas sim promover uma forte proteção à propriedade intelectual que transcende seus preceitos básicos.
Avalia-se o tema, também, sob o ponto de vista dos parâmetros de proteção garantidos em tratados de investimento, mormente os princípios das expectativas legítimas (legitimate expectations) e do tratamento justo e equitativo (fair and equitable treatment). Não se adentra à questão da compatibilidade das normas de proteção ao investidor com as regras da OMC, isto é, se aquelas podem ser alegadas subsidiariamente caso o descumprimento com os acordos da OMC não seja suficiente em um caso específico. Contudo, o respeito aos princípios básicos de tratados de investimento pelo país receptor é utilizado para medir o nível de confiança que o investidor pode depositar no Estado. Por exemplo, caso um fabricante de charutos decida estabelecer uma fábrica na Austrália por julgar que o ambiente regulatório é compatível com suas atividades, e após o início da produção forem instituídas normas que prejudiquem o investimento realizado – incluindo a restrição aos direitos de propriedade intelectual – o investidor poderá alegar violação às suas legítimas expectativas e ao tratamento justo e equitativo que lhe foi outorgado quando da celebração do tratado de investimento.
Em consonância com o parecer da firma Lalive, a medida australiana cria um tratamento discriminatório aos produtos com tabaco, que não se justifica pela nocividade deles, já que não foram estabelecidas embalagens padronizadas para produtos alcoólicos e outras mercadorias maléficas à saúde. Conforme preconiza o artigo 15.4 do Acordo TRIPS, já mencionado neste estudo, a natureza do produto não pode se tornar um obstáculo ao registro da marca comercial. Assim, as medidas antitabaco acabam prejudicando apenas artigos de fumo, garantindo o direito à propriedade intelectual à produtos de natureza diversa, ainda que prejudiciais à saúde.
Normas sobre embalagens e rotulação devem ter como objetivo informar o consumidor e não suprimir dados. Ao contrário das propagandas, o objetivo das marcas nas embalagens é que o consumidor facilmente selecione o produto visado. Além disso, consumidores de produtos derivados do tabaco geralmente não são atraídos pela embalagem, mas sim pelo desejo de consumir o artigo, seja cigarro, charuto, fumo, etc. A adoção de embalagens padronizadas acaba prejudicando o comprador, que terá maior dificuldade em diferenciar o produto de consumo usual dos demais, já que os pacotes serão praticamente similares. Aliás, em uma pesquisa realizada, constatou-se que um a cada dois fumantes não conseguiram distinguir produtos equivalentes sem a embalagem de origem.[xxxviii]
Com a adoção de embalagens padronizadas, consumidores ficam, ainda, mais vulneráveis à aquisição de produtos de marcas com menor nível qualitativo ou até mesmo falsificados e de origem ilícita. Por consequência, tais embalagens abrem portas para contrabandistas e falsificadores em detrimento da boa fé do comprador e de empreendedores legítimos. Além disso, os fabricantes de produtos com tabaco investem valores consideráveis no design das embalagens e nas marcas, o que é computado no preço final do produto. Logo, a embalagem padronizada exclui a necessidade de tais despesas, o que diminuiu o custo final do artigo, que fica mais acessível ao consumidor.
Saliente-se que governos não apenas têm competência para emitir medidas de proteção à saúde, como também devem fazê-lo. Aliás, um dos motivos comuns para a adoção de leis ou regulamentos que restringem o comércio é a proteção a valores sociais, como a moral pública, direitos humanos, proteção ao consumidor, saúde pública, etc. No que diz respeito à última, a forte oposição contra produtos de fumo pela comunidade internacional sugere que normas de proteção à saúde pública prevalecem sobre medidas de interesse econômico, até mesmo as mais consagradas.[xxxix] Em muitos casos, tais regras são legítimas e devem ser adotadas. Contudo, Estados possuem inúmeros motivos para restringir o comércio exterior e proteger a indústria doméstica, e em algumas ocasiões emitem normas protecionistas disfarçadas de salvaguardas a valores sociais. Afinal, o protecionismo dificilmente é explícito, contando com disfarces sutis.
Muito embora a decisão do DSB ainda não tenha sido publicada, o site de notícias Bloomberg anunciou em Maio-2017 que a medida australiana foi legitimada pela OMC, segundo pessoas próximas à organização. A decisão formal, entretanto, está prevista para ser publicada até Agosto-2017. Outrossim, a Corte Permanente de Arbitragem determinou recentemente à Philip Morris que compensasse a Australia, após aquela perder um caso referente às embalagens padronizadas contra essa.[xl] Logo, denota-se a tendência atual à legitimação das medidas de proteção à saúde pública a qualquer custo, incluindo a mitigação à propriedade intelectual.
Conclusão
A decisão do DSB abre um precedente importantíssimo para países que desejam adotar medidas similares, como a Noruega, que solicitou sua inclusão como interessada na disputa por estar na iminência de emitir regulação similar à da Austrália. Além disso, o Canadá emitiu um comunicado mencionando o interesse na adoção de medidas impondo embalagens padronizadas aos produtos de fumo, após estudos empíricos comprovarem a eficácia de tais normas.[xli] Outrossim, o Reino Unido e a União Europeia têm intenção de implementar normas congêneres. Em resposta, a República Dominicana rogou ao Reino Unido e à UE que adotem medidas alternativas e menos restritivas ao comércio, como aumento nas alíquotas dos impostos incidentes nos produtos de tabaco e aumento na faixa etária permitida para aquisição deles.[xlii]
Dezenas de disputas surgirão nos próximos anos, referentes à violações de normas de propriedade intelectual como consequência da restrição à embalagem dos produtos de fumo. O tempo irá dizer se tais medidas serão revertidas oportunamente. Mas o provável aval da OMC para instituição de normas rigorosas para proteção à saúde simboliza uma nova era para as relações comerciais e o liberalismo econômico.
THAIS CRISTINA GADOTTI é advogada e mestre em Direito Internacional e Europeu pela Vrije Universidade de Bruxelas; treinada em arbitragem internacional pela Academia Diplomática de Bruxelas e em Direito Societário pela Fundação Getúlio Vargas; professora visitante da UNIPAR – Universidade Paranaense.
advogada e mestre em Direito Internacional e Europeu pela Vrije Universidade de Bruxelas; treinada em arbitragem internacional pela Academia Diplomática de Bruxelas e em Direito Societário pela Fundação Getúlio Vargas; professora visitante da UNIPAR – Universidade Paranaense
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