Concurso público “difícil” e Akrasia

 “No te desanimes por nada ni en ocasión alguna; imita, por el contrario, a los maestros de pugilato, que cuando ven a un novato rodar por el suelo le obligan a levantarse y volver a la lucha. Pues del mismo modo debes hacer con tu espíritu; nada hay más dócil que el espíritu humano: no hay más que querer, lo demás se hace sólo. Pero si te acobardas, estás perdido, pues no volverás a levantarte en tu vida. Cuidado, pues, que tu pérdida o tu salvación están en tu mano”. (EPICTETO)


Imagina por um momento que um dia te despertas e te propões escolher entre duas alternativas. A primeira – considerando teu nível de formação e tempo de preparação – dedicar-te a fazer concursos públicos “mais fáceis” que,  com maior probabilidade, te facilitará um emprego mais imediato, embora este não corresponda exatamente aquilo que desejas e com o qual sempre sonhastes. A segunda – também considerando teu nível de formação e tempo de preparação – dedicar-te a fazer concursos “mais difíceis” cujas possibilidades de aprovação imediata são bem mais remotas, mas que logo, pouco a pouco, com uma crença profunda no trabalho duro, na tua determinação e capacidade de esforço, reunirás os recursos e os conhecimentos necessários para tua aprovação e a consequente (e tão almejada) conquista de um sonho que alimentas durante muito tempo[1].


Este tipo de eleição descarnada acaso pareça um tanto absurda, mas inconscientemente é a eleição que muitos candidatos fazem e que, em última instância, não somente implica um salto intelectual, senão também um salto moral, psicológico e espiritual[2]. É evidente que cada indivíduo decide qual é sua meta vital, mas, como seria não ter esperança, não crer que as ações do presente podem produzir resultados positivos no futuro, desistir de um objetivo desejado, esperar o fracasso e antecipar a derrota?


O certo é que esse tipo de atitude parece gerar uma espécie de impotência aprendida que nos impede de controlar nosso presente e a renunciar ao desejo de possibilidades futuras. E uma vez que não estamos limitados aos desejos que nos impulsam a atuar, senão que, ademais, possuímos a capacidade reflexiva para configurar desejos com relação a nossos próprios desejos, quer dizer, com relação ao que queremos querer e ao que queremos não querer, o resultado final da luta entre as duas alternativas antes mencionadas pode supor para um indivíduo uma vitória ou uma derrota a nível pessoal, profissional e emocional. Vejamos por parte.


Uma das melhores contribuições das neurociências consiste em haver descoberto que a plasticidade é uma das características essenciais do cérebro. Os seres humanos podem cultivar seu cérebro, gozam da capacidade de adaptar-se a novas circunstâncias, de adquirir informação e de cambiar (para o bem ou para o mal) até a etapa final da vida. E mais: a plasticidade do cérebro depende, ao menos em parte, de quanto se usa e em que sentido, com o qual trabalhar para aperfeiçoá-lo (e aperfeiçoar-nos) não somente é possível, senão também recomendável. E uma vez que toda e qualquer idéia que formulamos sobre nós mesmos não são mais que crenças, um estado psicologicamente construído que não passa de meras invenções da mente humana, esta (a mente) também pode cambiar-se. Dito de outro modo, podemos eleger interpretar o mundo da forma que nos seja mais útil, positiva e produtiva; somente nós podemos fazer com que nosso presente tenha sentido e que nossos verdadeiros objetivos tenham absoluta prioridade. Nossa tarefa, portanto, consiste unicamente em encontrar e levar a cabo o processo que produza o melhor indivíduo possível.


Por essa razão, a mais insidiosa de todas as concessões é a que o indivíduo pacta consigo mesmo quando suas ambições e esperanças começam a decair, quando começa a aceitar passivamente suas próprias limitações, etapa em que na maioria das vezes denota uma retirada e esgotamento frente ao medo de um futuro imaginado e não uma justa apreciação de suas próprias forças e potencialidades. Este tipo de atitude subverte nossa confiança, interfere em nossos atos, mutila nossa determinação. Também distorce nossa percepção, criando obstáculos e monstros donde não há nada.


O problema é que se há algo que valha a pena temer neste mundo, é viver de tal modo que, ao final de nossa jornada, tenhamos motivos para lamentar-nos de não haver intentado alcançar o que realmente desejamos. Só é necessário coragem, ou sentido comum, para ver que as melhores conquistas costumam ser sempre as mais difíceis; e que a derrota costuma encontrar-se entre estas últimas. Na verdade, tudo aquilo que requer esforço, determinação e perseverança é, neste sentido, difícil; e, portanto, é algo que nos faz melhores pessoas.


Assim que uma boa maneira de afrontar as alternativas descritas anteriormente e de decidir por uma delas, é aceitar a evidência de que é praticamente inconcebível e frustrante desejar algo de todo coração, pensar, sentir e saber que existe uma oportunidade de consegui-lo, e logo não fazer nada a respeito. Quando isso sucede, o sentimento de “Eu devia ter…” resulta desconcertante e “sem sentido”, não um consolo. Outra forma é manter-se firme na busca de nossos objetivos e aceitar o fato de que o verdadeiro êxito não é produto de nenhum ato mágico ou milagroso, senão o resultado de muito, muito trabalho e esforço, estóica resistência e entusiasmada determinação.


Estas pequenas atitudes diárias, igual que qualquer prática virtuosa, se acumulam com o tempo e acabam provocando grandes diferenças. Pequenas intenções que nos ajudarão a desenvolver mecanismos que eliminem nossa tendência a sobrevalorar nossas debilidades presentes e a exagerar os obstáculos e as dificuldades do futuro. O primeiro passo, portanto, é aprender a acreditar em si mesmo, a conservar a auto-estima, a determinação e a esperança. Ter claro que nossos objetivos importam mais que qualquer outra coisa, sem se preocupar com o difícil que possa parecer as circunstâncias às quais nos enfrentaremos. Assumir o sempre necessário esforço e a incansável determinação como uma força positiva e construtiva, e não como uma enorme e pesada carga. A verdadeira determinação é uma virtude que modela e enobrece nosso caráter, um valor intrínseco que independe de imaginárias (e temorosas) previsões do futuro.


De fato, a lição mais importante que se pode aprender daqueles que já triunfaram não é o quão inteligentes parecem ser ou o quão “fácil” conseguiram o que queriam, senão o quão indomáveis e resistentes foram. Há que querer o que se deseja, querer com tantas ganas que a renúncia não seja uma alternativa possível, querer com tantas ganas que não se tema, sob nenhuma circunstância, tentar alcançá-lo, querer com tantas ganas que para consegui-lo esteja disposto a sacrificar todo o tempo e esforço que seja necessário, querer com tantas ganas que não só esteja preparado para fracassar senão que também esteja disposto a aprender dos próprios fracassos. E, acima de tudo,  há que crer que se conseguirá, porque quanto mais uma pessoa crê que pode conseguir algo, maior será o esforço empregado e mais gratificante o êxito que disfrutará chegado o momento. Os logros poucos comuns requerem um nível nada comum de motivação pessoal e uma quantidade ingente de fé, determinação, confiança e esperança.


Mas não somente isso: a busca de um sonho sempre tem algo de absurdo desde um ponto de vista lógico, e não é uma questão de mero sentido comum. Qualquer logro possível se encontra anos por diante, está longe de ser seguro e com frequência resulta difícil inclusive de vislumbrar. É impossível dizer durante quanto tempo teremos que resistir e jamais poderemos conhecer os resultados por adiantado. A distância prática entre nossas habilidades atuais e o objetivo desejado pode ser tão enorme que nos leve a ver a meta como algo inalcançável.


E essa é exatamente a questão. A conquista de um objetivo não está somente um passo mais além do que parece “improvável”; a conquista  transcende o improvável, e o faz indo um passo mais além e logo outro passo mais além e logo outro, outro, outro, isto é, muitos pequenos passos até que a distância entre o que parecia improvável e a conquista finalmente desapareça. E uma vez que esse caminhar exige um esforço em se reflete o objetivo buscado, a única forma de alcançá-lo é seguir adiante sem medo ou receio de fracassar, mas com força, coragem e confiança, isto é, com a inabalável disposição de insistir muito mais além do que pareceria lógico ou racional. Se parece possível ou inclusive alcançável, então mais cedo se chegará ao destino desejado. Este o motivo pelo qual os que conseguem triunfar são também sonhadores. Têm que ter uma parte de suas cabeças nas nuvens com o fim de imaginar o inimiginável. Têm que ignorar as dificuldades óbvias e o que com frequência podem parecer obstáculos formidáveis. Ceder às dificuldades ou aos abstáculos equivale a uma derrota precipitada e insensata.


Daí que tanto essa determinação como a esperança dependem de uma virtude crucial: a perseverança, a verdadeira diferença entre o fracasso e o êxito. A capacidade de seguir adiante em circunstâncias adversas e com a firme convicção  de que se pode conseguir a maior parte do que desejamos depende unicamente de encontramos o modo correto de fazê-lo. Sempre haverá uma forma correta  e uma forma equivocada de dirigir nossos esforços para conseguir o que  desejamos. Convencer-nos de que não somos capazes ou que (sempre, ainda, talvez…) não estamos “à altura” é, sem dúvida, a equivocada; ter grandes expectativas e demonstrar perseverança, obstinação e resistência diante dos retos da vida é a correta. Um tipo de hábito que se pode cultivar, uma prática que não aceita um não por resposta, uma prática que persevera e que sabe que o cérebro se adapta física e emocionalmente a qualquer exigência intelectual que seu propietário lhe imponha.


O ponto de partida para não render-se, para não buscar atalhos ou deixar de lado as ambições é a simples confiança em que temos um potencial enorme e que nos corresponde reunir todos os recursos de que dispomos para aproveitar esse potencial, não ceder, persistir e superar-nos. Em lugar de imaginar que não estamos preparados, não temos talento ou que a “aprovação está distante“, o que deveríamos fazer é acreditar a fundo em nosso potencial extraordinário, uma vez que não sabemos nem podemos saber quais são nossos próprios limites a menos que, precisamente, os busquemos com a suficiente tenacidade. Sem essa quantidade infinita de fé em si mesmo, é muito improvável que consigamos logros significativos.


Ademais, o que aspiramos a ser é o que modela nosso caráter, e é nosso esforço e determinação, não somente nosso êxito, o que o enobrece, porque o melhor do que somos está precisamente no que esperamos chegar a ser. Daí que a busca de nossos objetivos mais desejados, por muito difícil que pareça, cria sentido quando nos dedicamos a ela dando o melhor de nós mesmos. E é nesse momento, quando experimentamos o sentido desta maneira, que estaremos preparados para suportar e superar todas as dificuldades. 


Somente as pessoas que estão tão decididas a alcançar seus objetivos e que são capazes de afrontar as dificuldades e obstáculos com essa implicação, contumácia e entusiasmo, logram desenvolver uma verdadeira personalidade enkrática, quer dizer, de um indivíduo (enkrático) que conhece muito bem a si mesmo, que entende o que quer e quer o que faz, que tem objetivos que considerar como próprios e aos que poder dedicar-se por si mesmos e não somente por seu valor instrumental[3]. De um indivíduo que, afrontando de forma determinada as adversidades que perturbam a realização de suas firmes convicções, desejos e objetivos, não ceda ante nenhuma outra coisa senão somente ante a força da virtude moral, da integridade pessoal e da sensata e insubornável firmeza do espírito[4].


 E embora esse tipo de personalidade não garanta que tudo sairá bem, seguramente servirá para aprender a deleitar-se do processo, a não cultivar o esforço como um apego romântico ao “sofrimento”, a não encarar a determinação como um “sacrifício” pessoal, a não centrar-se no abismo que separa as habilidades atuais do ideal distante, e, o mais importante, a não perder o controle sobre nossos sonhos e a não deixar de lutar para mantê-los vivos. Devemos recordar que o único fracasso verdadeiro é render-se, é não resistir, e que, com humildade, com esforço, com esperança e com extraordinária determinação, a grandeza é algo a que qualquer um pode aspirar.


Mas nada disso é novo. Como já nos ensinaram nossos pais (e mães),  todo sonho é digno de ser abrigado e que é impossível prever tudo o que podemos fazer e conseguir quando nos entregamos a ele. A única diferença entre a minha geração e a atual é que nossos pais falavam desde a intuição, a fé e a experiência. Agora podemos falar desde a intuição, a fé, a experiência e a ciência (D. Shenk, 2010).   


Notas:

[1] A diferença aqui utilizada entre concursos públicos “fáceis” e “difíceis” é meramente ilustrativa, adotada e avaliada sobre a base de informação (e/ou desinformação) gerada pela chamada psicologia popular (ou de “sentido comum”). Para uma excelente análise sobre o sentido do que seria um concurso público difícil, sugerimos a leitura do artigo de Rogerio Neiva, “O Super Homem dos Concursos Públicos” (http://www.concursospublicos.pro.br/duvida-do-candidato/concurso-publico-procurador-republica-mpf-super-homem).

[2] Evidentemente que não cairemos na hipocresia de negar que, com demasiada frequência, a limitação de recursos e oportunidades impede, restrige e/ou condiciona este tipo de eleição; de que determinadas circunstâncias da vida limitam nossa autonomia, isto é, nossa capacidade de sermos ativos e não passivos em nossos motivos e eleições: de se, com independência do esforço e determinação com que nos entregamos a eles, nossos motivos, nossas eleições e nossos objetivos são realmente o que queremos e que, portanto, não nos são alheios. ( H. Frankfurt, 2004)

[3] Na versão aristotélica, somente o enkratés, a  pessoa que logra impor-se a si própria suas metapreferências , a pessoa que, sendo amiga de si mesma, não se contradiz no silogismo prático e que é capaz de eleger seus desejos e resolver seus conflitos interiores, possui phrónesis, prudência, sabedoria prática, conhecimento concreto de si e de sua circunstância. O que parece querer sustentar Aristóteles – e isto marca a diferença com relação ao pensamento platônico da felicidade do homem virtuoso em qualquer circunstância – é que ser enkrático é uma condição necessária para ser livre e feliz, mas não suficiente. O bom controle sobre si mesmo, o ser sábio e senhor de si mesmo, a “força interior” (uma possível tradução de  enkrateia) ou a liberdade respeito dos próprios impulsos, em uma palavra: a capacidade de superar os obstáculos internos (e externos), é imprescindível para ser feliz e livre (no sentido de que nenhum obstáculo interno frustra sua vontade e que, para os estóicos, corresponde à ataraxia: uma disposição de ânimo cujo logro é uma tarefa individual e que permite alcançar o equilíbrio emocional graças à diminuição das paixões e desejos e a fortaleza frente à adversidade), mas também o é um ambiente que não levante diques externos à realização da firme vontade do enkratés (palavra que designava em grego coloquial a quem tinha poder ou capacidade de uma firme e virtuosa disposição sobre algo; desse adjetivo deriva o substantivo enkrateia, verossimilmente um neologismo socrático).

[4] Já o homem akrático, incontinente ou perverso, “não é uno, senão múltiple, e no mesmo dia é outra pessoa e inconstante” (Ética Eudemia, 1240b); “não tem comando sobre si mesmo” e contraria seu melhor juízo sobre o que fazer em determinada situação. Ignorante de si mesmo, o akratés – aquele que viola o silogismo prático e ignora os mecanismos causais que, operando dentro dele, colapsam sua vontade – é, segundo a célebre definição aristotélica, quem atua contra seu melhor juízo, ou seja, quem, havendo decidido conscientemente um curso de ação como o melhor ou mais conveniente para ele, é incapaz de levá-lo a cabo, pois é débil de vontade e incapaz de impor suas próprias decisões deliberadas a seus impulsos e temores. Isso leva ao homem vicioso, desesperado da debilidade de sua vontade, a enfrentar a si mesmo, pois o fato de estar dissociados seus desejos e seus sentimentos,  torna  possível  “que um homem seja  seu próprio inimigo” (Ética Eudemia, 1240b).

Informações Sobre os Autores

Atahualpa Fernandez

Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular Cesupa/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.

Marly Fernandez

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB).


Equipe Âmbito Jurídico

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