Resumo: O Direito Processual Penal faz parte de um subsistema que se interliga umbilicalmente à Constituição da República, da qual emanam direitos e garantias fundamentais. Desse modo, indaga-se sobre a possibilidade de, sob a égide de um Estado Democrático de Direito, o Processo Penal admitir que o investigado seja conduzido coercitivamente à presença da autoridade com base em intepretação extensiva da norma.
Palavras-chave: Constituição Federal. Estado Democrático de Direito. Processo Penal. Garantismo.
Abstract: The Criminal Procedural Law is part of a subsystem that is intimately connected to the Republic Constitution, which fundamental rights and guarantees emanate from. Thus, under the aegis of a Democratic State of Law, it asks about the possibility of the Criminal Procedure allows the suspect be forcibly taken to the presence of the authority based on extensive interpretation of the law.
Key-words: Federal Constitution. Democratic Rule of Law. Criminal Procedure. Guaranteeism.
1 Breve introdução ao Estado Democrático de Direito
A Constituição brasileira de 1988 incorpora o espírito de Estado Democrático de Direito, cuja característica principal consiste no estabelecimento de limites inexoráveis ao exercício dos poderes da República. O constitucionalismo hígido recomendável à salvaguarda dos direitos fundamentais, no entanto, tem se abalado nos últimos tempos, em face dos reiterados escândalos de corrupção envolvendo o Estado brasileiro e as suas instituições.
Em momentos tais, é natural que a sociedade espere soluções instantâneas para problemas estruturais e crises éticas que desafiam um debate muito mais profundo. O perigo, contudo, repousa na busca de respostas expeditas à sociedade, por meio de leis de emergência e nas ações de agentes estatais que consideram que a eficiência da atividade estatal depende da relativização da ordem jurídica e da busca de diligências subjetivas que fujam de qualquer critério razoável de segurança jurídica.
Quando o Estado marcha nessa direção, nomeadamente o Poder Judiciário, a progressividade, que deveria ser a maior característica do Estado Democrático de Direito dinâmico, deixa de existir e o debate acadêmico sobre qual sistema processual é adotado no ordenamento pátrio ― inquisitório, acusatório ou misto ― torna-se inócuo, haja vista que, no mundo do “ser”, o juiz pode tudo, como a boca da lei. Diria Eugenio Raúl Zaffaroni que o Estado e seus agentes devem ter limites impostos pela lei em sentido estrito e o “Judiciário é indispensável para isso. A contenção é feita pelos juízes. Sem limites, saímos do Estado de Direito e caímos em um Estado Policial[1].”
Daí por que o equilíbrio do juiz no exercício de seu mister é de fundamental importância diante do constante estado de tensão do processo penal em estado dinâmico, já que “o Estado de Polícia se confronta com o Estado de Direito no interior do próprio Estado de Direito. Estar perto do modelo ideal de Estado de Direito depende da força de contenção do Estado Policial[2]”.
É de se admitir que essa análise não é tarefa das mais fáceis porque a cultura antigarantista é por demais antiga. Como diz Luigi Ferrajoli, se o modelo garantista penal e processual não remonta há mais de dois séculos, sua lesões e refutações envolvem uma tradição autoritária e muito mais antiga que, infelizmente, jamais foi interrompida[3], o que, lamentavelmente, é fruto irrefletido e consolidado de práticas legislativas, judiciais e policiais. Nesse estado das coisas, sobrevém o denominado “decisionismo”. Consoante Ferrajoli:
“o decisionismo é o efeito da falta de fundamentos empíricos precisos e da consequente subjetividade dos pressupostos da sanção nas aproximações substancialistas e nas técnicas conexas de prevenção e de defesa social (…)”[4].
A crise de credibilidade por que trespassam as instituições ― e agora no tocante ao Poder Judiciário ― pode, no mais das vezes, contaminar alguns de seus membros, levando-os a embrenhar-se pelas perigosas valas dos fossos ativistas, quando, ad exemplum, acabam por extrapolar a sua função judicante de aplicador da lei, exercendo-o como um legislador concreto na tentativa de satisfazer o anseio da sociedade indignada. Nesse sentido, assinala Eros Roberto Grau:
“A sociedade, insatisfeita com a legalidade e o procedimento legal, passa a nutrir anseios de justiça, ignara de que ela não existe em si e de que é incabível, como observara Epicuro [in Nizan 1991:151], discutirmos a justiça ou a injustiça da norma produzida ou da decisão tomada pelo juiz, visto que nem uma nem outra (justiça ou injustiça) existem em si. Os sentidos de uma e outra são assumidos exclusivamente quando se as relacione à segurança (segurança social), tal como concebida em determinado momento histórico vivido por determinada sociedade. Por isso mesmo é que, em rigor, a teoria do direito não é uma teoria da justiça, porém ― na dicção de Habermas [1992:241] ― uma teoria da prestação jurisdicional e do discurso jurídico”[5].
Malgrado, em determinados momentos históricos de um país, ser evidente a condição de uma sociedade órfã, o Judiciário não deve se tornar o “superego da sociedade”, por meio de interpretações que extrapolem os limites da lei, porque essa não é sua função constitucional, como diria Ingeborg Maus:
“[…] Quando a Justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social ― controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de uma Justiça que contrapõe um direito ‘superior’, dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social”[6].
A solidez de um Estado Democrático de Direito deve ser cimentada pela fiel observância à Constituição da República, no que emerge a grande responsabilidade do Poder Judiciário, cujos membros devem transmitir serenidade e segurança à sociedade autorizadora do fictício contrato social de Jean-Jacques Rousseau, pois, a se permitir um Estado desprovido de freios, o apontado pacto social tende à derrocada[7], convolando-o no tão temido Leviatã de Thomas Hobbes de Malmesbury[8].
2 Sistemas jurídicos
Para compreendermos de onde surgem novas modalidades (extensivas) de condução coercitiva no processo penal brasileiro, além daquelas exatamente previstas no direito objetivo, é preciso, antes, trazermos a lume breves conceitos de sistemas jurídicos.
A preocupação quanto à noção de sistemas está em prevenir equívocos correntes que soem acontecer entre operadores do direito, quando realizam comparações exemplificativas de modelos processuais de países diversos para argumentar que um seja mais profícuo que outro, quando, a rigor, os sistemas jurídicos são completamente diversos e incompatíveis.
Porém, quando se remete referido termo para o sentido jurídico, transmuda-se a complexidade em defini-lo porque não há sentido consolidado na doutrina. Mauro Fonseca Andrade[9] assinala:
“Autores consagrados, como Habermas e Luhmann, apesar de tratarem o tema com profundidade, em nenhum momento definiram, de forma clara e direta, o conceito de sistema jurídico. Por outro lado, também, se observa que, entre aqueles que se arriscaram a defini-lo, não se encontra um conceito unívoco de sistema jurídico. Ao contrário, se observa a existência de uma polissemia conceitual, fenômeno que, para a doutrina especializada, é fruto da ausência de um estudo mais profundo sobre o tema, da particular visão do investigador ou do período histórico analisado. […]”
De qualquer sorte, em termos singelos, pode-se dizer que, para a Ciência Jurídica, sistema é algo construído racionalmente pelo jurista, com o fito de unir as partes do objeto estudado, formando um todo, ou seja, um conjunto de enunciados lógicos emitidos pelo jurista diante da ordem jurídica, que tem valor descritivo ou informativo.
Mas, é possível dizer que, no atual estádio do Estado Democrático de Direito, as decisões judiciais devem conter a fundamentação satisfatória a assegurar total compreensão do livre convencimento do juiz e das regras e princípios que se entenda aplicáveis ao caso concreto, máxime nos casos difíceis. Alerta Lenio Luiz Streck[10]:
“Isso significa que, para além da cisão estrutural entre casos simples e casos difíceis, não pode haver decisão judicial que não seja fundamentada e justificada em um todo coerente de princípios que repercutam a história institucional do direito. Desse modo, tem-se por superada a discricionariedade a partir do dever fundamental de resposta correta que recai sobre o juiz no contexto do paradigma do Estado Democrático de Direito”.
Tal preocupação se dá porque não se pode confundir o avanço da teoria dogmática na interpretação da norma com a total liberdade de decidir dos juízes em franca discricionariedade, ou mediante o descabido ativismo judicial, que se dá em flagrante violação ao princípio da separação dos poderes, dentre outros, ou mediante decisões que, equivocadamente, invocam teorias oriundas de sistemas jurídicos alienígenas e de total incompatibilidade ao sistema jurídico brasileiro, demonstrando desconhecimento teórico do operador do direito nas matérias propedêuticas.
Portanto, para se afirmar que há similitude técnica entre dois sistemas jurídicos de países distintos, é preciso que o operador os depure verticalmente, a partir das Constituições, cotejando todas as estruturas, sistemas e subsistemas, para, somente ao final desse processo de investigação, chegar-se à conclusão da compatibilidade ou não. Há sistemas que, de antemão, já se afiguram incompatíveis, como, por exemplo, entre os que adotam o common law e o civil law.
3 O sistema jurídico americano e sua incompatibilidade com o sistema brasileiro
No sistema americano (direito consuetudinário), o Judiciário tem amplitude maior em suas decisões na medida em que opera com os precedentes judiciais e as watershed cases. Isso porque o sistema norte-americano baseia-se em uma Constituição de pouquíssimos artigos, ou seja, em uma Constituição sintética e complementada pela Declaração de Direitos (Bill of Rights), documento ratificado em 15 de dezembro de 1791, integrado por emendas― ao contrário da nossa, de conteúdo analítico e programático.
Oportuno dizer que a perspectiva da Bill of Rights é da visão federalista e da proteção dos direitos individuais frente ao estado americano. Esse sistema se difere do brasileiro, porquanto, entre nós, o juiz se adstringe à interpretação do direito positivo, sem maiores amplitudes, na medida em que o Poder Constituinte Originário optou pela adoção de um modelo de constituição analítica. Para José Afonso da Silva[11]:
“O constituinte rejeitou a constituição sintética, que é constituição negativa, porque construtora apenas de liberdade-negativa ou liberdade-impedimento, oposta à autoridade, modelo de constituição que, às vezes, se chama de constituição garantia (…) Assumiu o novo texto a característica de constituição-dirigente, enquanto define fins e programa de ação futura, menos no sentimento socialista do que no de uma orientação social democrática imperfeita, reconheça-se.”
Daí já se denota a flagrante distinção entre o sistema jurídico brasileiro e o sistema jurídico americano, de tal arte a “importar-se” a Teoria dos Poderes Implícitos sem que, previamente, o intérprete busque conhecer suas raízes.
Segue-se que, dentro do sistema civil law ― adotado pelo ordenamento jurídico pátrio ―, não cabe ao juiz criminal investigar institutos processuais adotados na legislação alienígena por total incompatibilidade sistêmica. Em Guilherme de Souza Nucci:
“O Direito brasileiro adota o sistema denominado civil law (em tese), vale dizer, o sistema codificado. Nossos magistrados devem ser ‘escravos’ da lei. De onde o Judiciário retira a sua legitimidade para atuar? Afinal, seus membros não prestam contas à sociedade de maneira direta: não são eleitos pelo povo. A legitimidade da sua atuação advém do cumprimento estrito da Constituição ― elaborada pelos representantes do povo ―, bem como das leis ―, igualmente constituídas pelo Parlamento e sancionadas pelo Executivo (sob eleição do povo). Mas o que se sabe, na prática, é a fuga da legalidade por meio da interpretação, algo que não chama a atenção da sociedade leiga.”
Portanto, resta evidente o descabimento da “importação” de determinados institutos previstos em legislações estrangeiras, quando o subsistema do processo penal brasileiro é consubstanciado na Constituição Federal e em seus princípios retores, dentre os quais o devido processo legal e a legalidade estrita.
A questão da condução coercitiva sem prévia intimação do investigado, como tem sido autorizado ultimamente por alguns juízes brasileiros, é mais uma “importação” do sistema americano[12], o qual é totalmente incompatível com nossa ordem jurídica, visto que, como cediço, entre nós, só há previsão expressa de condução coercitiva daquele que, intimado regularmente, deixa de comparecer injustificadamente, perante a autoridade. De modo algum, nosso sistema jurídico admite que se busquem interpretações ampliativas ou baseadas em princípios, como, por exemplo, da proporcionalidade, quando, como dito, se trata de norma expressa, de conteúdo restritivo de liberdade.
4 A condução coercitiva no Processo Penal brasileiro
Em linhas gerais, a condução coercitiva funciona no Processo Penal, de sorte a impor o comparecimento perante a autoridade daquelas pessoas que, regularmente intimadas, deixaram de apresentar-se injustificadamente (CPP, art. 411, § 7º[13], e art. 535[14]).
Assim que, se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, a autoridade poderá proceder à condução coercitiva (CPP, art. 260[15]), conquanto essa disposição seja altamente questionável à luz da garantia constitucional do direito ao silêncio[16], notadamente porque se consolidou o entendimento de que o interrogatório é, sobretudo, meio de defesa.
O ofendido, caso deixe de comparecer à presença da autoridade, sem motivo justo, poderá ser conduzido (CPP, art. 201, § 1º[17])[18].
Quanto às testemunhas, caberá a condução coercitiva nas hipóteses em que, regularmente intimadas, deixarem de comparecer, caso em que o juiz ordenará o comparecimento em juízo, de forma impositiva (CPP, art. 218[19]).
O perito que não comparecer perante a autoridade poderá ser conduzido (CPP, art. 278[20]).
No processo penal brasileiro, essas são as únicas possibilidades legais, à luz do direito positivo, de restrição à liberdade do indivíduo, por determinado tempo, para comparecer perante a autoridade. Vale lembrar que, à vista do princípio da legalidade, não é tolerável qualquer forma de intepretação extensiva da norma que possa afetar a liberdade de locomoção de pessoa submetida ao processo penal, seja investigado, ofendido, testemunhas, perito ou outros. Menciona Guilherme de Souza Nucci:
“Não existe, no ordenamento jurídico, outra forma de condução coercitiva. É inexistente a fórmula inventada por alguns de se determinar diretamente a condução coercitiva de qualquer pessoa para ser ouvida como testemunha em certo lugar. Portanto, se isto ocorrer, configura evidente abuso de autoridade”[21].
Não obstante, nos últimos tempos, tem-se visto, com enorme preocupação para a teoria do direito constitucional, algumas decisões judiciais que estão a transbordar as apontadas previsões legais de condução coercitiva.
Em outras palavras: por decorrência de eventuais investigações criminais, alentadas, em geral, pela mídia interessada em obter altos índices de audiência, decisões acabam por autorizar buscas e apreensões, prisões preventivas e temporárias e (agora) a condução coercitiva como uma nova medida justificada por alguns juízes para evitar a prisão cautelar, como se tratasse de um novel instituto de color mais benéfico ao investigado. Neste particular, se o fundamento é este, estamos diante de uma situação mais absurda ainda, pois se cria, por via oblíqua, uma nova espécie de medida cautelar pessoal, qual seja, medida substitutiva de prisão preventiva por criação judicial, contexto que não deixa de retroceder à vetusta e odiosa “prisão para averiguação”.
Referida criação judicial afigura-se flagrantemente ilegal ante a visão vertical de interpretação constitucional do Processo Penal, por reluzente afronta, dentre outros, aos princípios do devido processo penal e da legalidade estrita.
No luminar do devido processo penal, provimentos estatais dessa ordem acabam por criar hipóteses novas de restrições (diga-se) judiciais ― e não legais ― de liberdade de locomoção, para além daquelas expressamente trazidas ao direito positivo pelo Poder legitimado para tanto (Legislativo).
A subversão, pelo Judiciário, da função Legislativa, viola a tão cara conquista da tripartição das funções estatais do Poder, cujo escopo sempre foi, nomeadamente, prevenir excessos do poder estatal por seus agentes (Teoria dos Freios e Contrapesos), consoante clássica lição de Montesquieu:
“Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria o Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor.
Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares”[22].
Nesse sentido, o equívoco parece ocorrer na medida em que a teoria do direito não se confunde com a teoria da justiça ― e aqui se está a aludir ao delicado debate entre os conceitos de “justiça” e de “direito”.
Por isso, é preciso que o processo penal retome seu verdadeiro eixo de ritual de exercício de poder dentro do mosaico da democracia, sob pena de transformar-se em instrumento concreto de exercício autoritário de poder. Os juízes devem aplicar a lei, de conformidade com a produção legislativa de seu país, pois esta, bem ou mal, constitui o produto pronto e acabado do Legislativo da República, sob cujo arcabouço instrumental o Judiciário deve deduzir a jurisdição. Não lhes cabe substituir-se à função legislativa, ainda quando reputem que as leis são obsoletas, inócuas ou fracas, nomeadamente no âmbito do direito penal e do direito processual penal.
5 Conclusões
O Processo Penal brasileiro está amalgamado à alta carga axiológica da Constituição Federal de 1988, cuja roupagem histórica conquistada a duras penas é de um Estado Democrático de Direito.
Referida modelagem constitucional, porque de color hígido, põe-se a recomendar a salvaguarda dos direitos fundamentais, sobretudo nos momentos de crises institucionais, como as que o Estado brasileiro tem vivenciado nos últimos tempos. A solidez do Estado de Direito é testada em momentos deste jaez, pelo que se verifica flagrante equívoco buscar-se um Estado de Exceção para os direitos e garantias fundamentais como forma paliativa de resolução de problemas sócio-político estruturais do país.
O Poder Judiciário, porque desenvolve função eminentemente técnica ― daí por que seus membros não são eleitos pelo povo e não exercem representação popular ―, deve, em momentos como este, continuar a exercer seu papel de intérprete da lei, já que a extrapolação, para substituir-se ao legislador, configura perigoso caminho em direção ao autoritarismo, com a agravante de que, muitas vezes, isso ocorre de maneira até inconsciente, ao contrário do que ocorria outrora na história.
Nessa ordem de ideias, é preciso que o operador do direito tenha em mente a noção de sistemas jurídicos porque exatamente pela desconsideração desta temática é que muitos equívocos podem ocorrer de maneira involuntária, pois, como dito neste artigo, a invocação de outros sistemas jurídicos exige cotejamento altamente técnico pelo operador, especialmente pelo juiz, ao distribuir a jurisdição.
A condução coercitiva, na seara do processo penal brasileiro, sem prévia intimação do investigado ou acusado, como tem sido ultimamente autorizado por alguns juízes, configura mais uma espécie de “importação” equivocada de sistemas jurídicos incompatíveis, máxime do sistema americano. No direito positivo brasileiro, a condução coercitiva funciona no Processo Penal, de modo a impor o comparecimento perante a autoridade daquelas pessoas que, regularmente intimadas, deixaram de apresentar-se injustificadamente (CPP, art. 411, § 7º, e art. 535), pelo que, se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, a autoridade poderá proceder à condução coercitiva (CPP, art. 260).
No processo penal brasileiro, essas são as possibilidades legais, à luz do direito positivo, de restrição à liberdade do indivíduo, por determinado tempo, para comparecer perante a autoridade. Vale lembrar que, à vista do princípio da legalidade, não é tolerável qualquer forma de intepretação extensiva da norma que possa afetar a liberdade de locomoção de pessoa submetida ao processo penal, seja investigado, ofendido, testemunhas, perito ou outros.
As hipóteses de condução coercitiva no ordenamento jurídico pátrio são aquelas previstas taxativamente em lei, por constituírem medidas restritivas de liberdade de locomoção, logo, insuscetíveis de interpretações extensivas.
Os juízes devem aplicar a lei, de conformidade com a produção legislativa de seu país, pois esta, bem ou mal, constitui o produto pronto e acabado do Legislativo da República, sob cujo arcabouço instrumental o Judiciário deve deduzir a jurisdição. A subversão, pelo Judiciário, da função Legislativa, viola a tão cara conquista da tripartição das funções estatais do Poder, cujo escopo sempre foi, nomeadamente, prevenir excessos do poder estatal por seus agentes.
Mestre em Direito Constitucional PUC/RJ, Doutor em Direito Processual Penal pela PUC/SP, Professor de Direito Processual Penal ESMAGIS/MS, Juiz de Direito da 1a Vara do Tribunal do Júri em Campo Grande-MS
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