Sumário: 1. Introdução – 2. Os contratos eletrônicos – 3. A revisão dos contratos eletrônicos; 3.1 O direito de arrependimento nas relações contratuais eletrônicas – 4. Considerações acerca da revisão dos contratos eletrônicos: o mercado impõe o cerceamento da liberdade do consumidor?– 5. Considerações finais – Referências.
Resumo: Propomos, neste estudo, uma análise das relações contratuais eletrônicas e suas repercussões nas relações consumeristas. Buscaremos substratos jurídicos que evitem a banalização dos valores éticos e morais, no campo dos contratos, a fim de não esvaziar o sentido da condição humana nas negociações.
Palavras-chave: Contratos Eletrônicos – Arrependimento – Revisão.
1. INTRODUÇÃO
Por intermédio dos avanços tecnológicos, tornou-se plausível aumentar sobremaneira a capacidade de produção e circulação de bens em serviços, tudo passa a ser realizado em larga escala. Tais avanços expandiram as demandas consumeristas, principalmente, as ocorridas por meio da internet.
Os contratos eletrônicos são, sem dúvida alguma, ferramentas eficazes no regime econômico atual, mas nem sempre esses negócios se mantêm inalterados. Por isso, neste artigo, enfatizaremos a alteração das circunstâncias no ambiente contratual eletrônico.
Analisaremos, também, a intervenção judicial na vontade das partes, o exercício do direito de arrependimento e a possibilidade de extinção ou revisão do negócio.
Para compreender a revisão dos contratos eletrônicos, buscaremos respaldo na no princípio da socialidade e da boa-fé. Consideraremos que não se pode, na atual sociedade consumerista, banalizar valores éticos e morais e esvaziar o sentido da condição humana nas negociações.
Por fim, indicaremos que a problemática dos contratos eletrônicos e a possibilidade de sua revisão esbarram com a ausência de tratamento específico, no campo legislativo, bem como com a questão de estabelecimento das bases das transações internacionais de comércio eletrônico.
2. OS CONTRATOS ELETRÔNICOS
Contratos eletrônicos são negócios jurídicos que utilizam o computador como ferramenta para instrumentalizar o vínculo contratual, sendo que os contratantes expressam as declarações de vontade por computadores interligados entre si.
Para Humberto Carrasco[1] a oferta eletrônica é uma declaração de vontade em “que una persona realiza a través de medios de comunicación y/o informáticos invitando a otra a la celebración de una convención que quedará perfecta con la aquiescencia de Ella”.
O comércio eletrônico é realizado através de “contratações a distância por meios eletrônicos (e-mail), por internet (on line) ou por meios de telecomunicações de massas”, como a TV a cabo (MARQUES, 2003, p. 602). Trata-se de um fenômeno plúrimo e complexo, no qual valoriza as relações patrimoniais e acaba por desconsiderar os sujeitos envolvidos.
A crítica feita quanto à desconsideração dos sujeitos envolvidos nas relações comerciais eletrônicas é fruto de um fenômeno chamado por Giorgio Oppo (1998, p. 525) de desumanização do contrato.
Pode-se dizer que na troca de e-mails há uma contratação entre ausentes, pois a comunicação entre os sujeitos ocorre via provedores de acesso, sendo assim, não existe a garantia de que o e-mail alcançará o seu destinatário (MARTINS, 2000, p. 92). Valoriza-se, pois, mais o patrimônio e não os sujeitos da relação, por isso é possível concluir pela desumanização do contrato.
No negócio eletrônico, tem-se uma forma de contratação por correspondência, regulada pelas normas dos contratos entre ausentes, se tornando perfeito desde que a aceitação é expedida, salvo as situações indicadas nos artigos 433 e 434 do Código Civil.
Ressaltamos que algumas teorias civilistas procuram explicar o momento para se considerar perfeito o contrato inter ausentes, a saber: 1) Teoria da informação que considera que o contrato está formado quando o proponente fica sabendo da aceitação, não bastando a entrega da proposta; 2) Teoria da recepção que considera perfeito o contrato quando o proponente recebe a aceitação; 3) Teoria da declaração indica a conclusão do contrato quando o oblato (aceitante) declara aceitar a proposta; e 4) Teoria da expedição entende que o contrato se mostra perfeito quando a aceitação é expedida (artigo 434). Esta última é a teoria adotada pelo Código Civil brasileiro.
Entendemos que existe, em tais contratações eletrônicas, a conjugação de dois sistemas jurídicos: o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil, sendo plenamente possível atribuir os efeitos de um e de outro para suprir, em alguns casos, a falta de uma legislação específica sobre a matéria.
Cabe aqui ressaltarmos que a UNIDROIT (International Institute for the Unification of Private Law) estabelece princípios da oferta de produtos e serviços que se ajustam à contratação eletrônica. Entendemos que tais princípios podem servir de parâmetro para nossa legislação nacional.
Em nosso ordenamento jurídico, quanto à formação dos contratos e/ou documentos eletrônicos, a sua regulamentação se deu por meio da Medida Provisória (MP) 2.200-2/2001[2] que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP Brasil. O artigo 1º da MP dispõe que: “Fica instituída a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras”.
3. A REVISÃO DOS CONTRATOS ELETRÔNICOS
Em razão da possível mutabilidade das relações contratuais eletrônicas, os contratantes podem requerer a revisão dos termos previstos nos contratos firmados.
Sabemos que algumas situações exteriores ao contrato podem provocar reações graves, do ponto de vista econômico, onerando um dos pólos da relação jurídica. Em razão disso, nosso ordenamento prevê que a alteração das circunstâncias pode ser suscitada pelo contratante prejudicado por meio da teoria da imprevisão. Para a cláusula rebus sic stantibus[3], um contrato deve se manter em vigor, quando também for mantido o estado das coisas estipuladas no momento da sua celebração.
Cabe, portanto, questionar: como aplicar tais premissas aos contratos eletrônicos? Quando o contrato deve ser revisado?
O Código Civil brasileiro cuidou deste assunto no Título V do Capítulo II denominado de “Extinção[4] do Contrato” que é dividido em quatro seções: distrato, cláusula resolutiva, execução do contrato não cumprido e resolução por onerosidade excessiva.
O Código de Proteção e Defesa do Consumidor também dispõe sobre a possibilidade de revisão do contrato no seu artigo 6º, inciso V, permitindo a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
3.1 O direito de arrependimento nas relações contratuais eletrônicas
A solução mais coerente para o ambiente eletrônico, em primeiro plano, é a utilização do direito de arrependimento, ou seja, o consumidor terá o prazo de sete dias para arrepender-se. Tal prerrogativa é denominada de prazo de reflexão e será contado partir da conclusão do contrato ou do recebimento do bem ou da prestação do serviço. Neste sentido, dispõe o artigo 49 do CDC[5]:
“Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.”
“Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.”
Não sendo possível a revisão, caso também não seja o contrato de duração continuada ou diferida, restará para o contratante a extinção do negócio, por via do direito de arrependimento. Caberá, no entanto, a análise do julgador em alguns casos, a fim de proporcionar a correção mais justa em determinadas circunstâncias, e, em outras, optar pela resolução contratual, em razão dos prejuízos serem maiores, tornando-se insubsistente a possibilidade de manter a relação jurídica.
A problemática dos contratos eletrônicos e a possibilidade de sua revisão acabam esbarrando com a ausência de tratamento específico, no campo legislativo, sobre a temática. Entendemos que quando não for possível aplicar o Código Civil ou o Código de Defesa do Consumidor[6], caberá ao juiz utilizar os critérios de razoabilidade e a vertente principiológica da Teoria Geral dos Contratos.
4. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA REVISÃO DOS CONTRATOS ELETRÔNICOS: O MERCADO IMPÕE O CERCEAMENTO DA LIBERDADE DO CONSUMIDOR?
Sabe-se que a teoria da imprevisão tem previsão legal nos artigos 478 e seguintes do Código Civil brasileiro. Tal teoria só se aplica quando ocorrer fatos supervenientes, imprevisíveis e não imputáveis aos contratantes, com reflexos sobre o objeto ou o valor do contrato, e isso poderá ensejar a sua revisão ou o seu desfazimento.
Na situação indicada no artigo 317[7] do Código Civil, aplicamos igualmente a teoria da imprevisão para os acordos exeqüíveis a médio ou longo prazo, se uma das partes ficar em nítida desvantagem econômica.
O artigo 479, que também se refere à teoria da imprevisão, prevê que a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu (contratante que não se encontra numa situação de prejuízo) a modificar eqüitativamente as condições do contrato[8].
Considerando que os contratos eletrônicos podem adotar a natureza de duração continuada ou execução diferida, em sua grande maioria, e possuem alta complexidade, torna-se razoável a presença de cláusulas de renegociação que busquem manter o negócio, nos casos de alteração das circunstâncias.
Como vimos, o consumidor poderá se arrepender, desistindo de uma declaração de vontade que haja manifestado. Explica Nelson Nery (apud Grinover, 2000, p. 549) que “o direito de arrependimento existe per se, sem que seja necessária qualquer justificativa do porquê da atitude do consumidor”.
Nas relações consumeristas, há uma especificidade do comércio entre fornecedor e consumidor, já que é notória a fragilidade do consumidor, como ocorre nas práticas do marketing agressivo ou na ilusória divulgação de redução de preços (transporte gratuito do produto), ou pelo desconhecimento das dificuldades nas negociações internacionais, como a falta de conhecimento razoável da língua estrangeira para compreender a oferta (MARQUES, 2004, p. 691-692).
Quanto à questão do marketing agressivo, consideramos que aí se encontra um dos maiores problemas enfrentados pelos consumidores na sociedade contemporânea. Existem situações de nítido cerceamento da liberdade do consumidor, caracterizada pelas seguintes práticas: “manipulação do comportamento via técnicas de publicidade/marketing; e consumo de produtos/serviços que a modernidade nos impõe, mas cujos riscos e qualidade não nos são dados conhecer/decidir”, conforme observa Josué Rios (apud TAVARES, 2003. p. 188).
Temos aqui uma cogente necessidade de proteção aos consumidores e o respeito à sua dignidade, bem como a proteção de seus interesses econômicos, já que “sem dúvida são eles a parte vulnerável no mercado de consumo”, justificando-se, portanto, o tratamento desigual para partes manifestamente desiguais. É claro que, combinando a proteção dada ao consumidor, busca-se compatibilizá-la com o desenvolvimento econômico e tecnológico, viabilizando os princípios da ordem econômica, de acordo com o artigo 170 da Constituição da República (FILOMENO apud GRINOVER, 2000, p. 17-18).
Concomitante a tal compatibilização de interesses, entendemos, sobretudo, que a efetividade do princípio da boa-fé deve acompanhar a execução dos contratos, quando configurado o enriquecimento ilícito com observância aos deveres anexos de cada um dos contratantes, de forma a restringir o exercício abusivo dos direitos subjetivos. Quando se adota tal postura, na verdade, estar-se-á a impregnar as relações contratuais de um novo viés interpretativo e, igualmente, integrativo (MARQUES, 2002, p. 108).
A violação da boa-fé objetiva implica não apenas a condenação do infrator em perdas e danos, mas, até mesmo, uma possível anulação do contrato, justificada pela incidência de erro ou dolo (GAGLIANO e PAMPLONA, 2002, p. 343).
Apreendemos, como André Ramos Tavares (2003, p. 184), que o consumidor não pode ser subjugado a uma intensa perspectiva de gerenciamento empresarial que se baseia, sobretudo, em suas necessidades econômicas.
Assim, a modificação de alguma situação deverá obedecer ao juízo de eqüidade e o princípio da boa-fé objetiva na esfera do comércio eletrônico, permitindo, assim, o direito de arrependimento, a revisão ou a extinção, quando se restar impraticável a manutenção do negócio.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. O estudo analisou a alteração das circunstâncias contratuais no cenário do comércio eletrônico. Apontamos, especialmente, o arrependimento e a revisão contratual como os principais caminhos a serem seguidos, quando uma vez celebrado o contrato eletrônico e ocorrer a modificação de suas circunstâncias provocando, assim, situações de prejuízo demasiado para uma das partes.
2. A problemática dos contratos eletrônicos e a possibilidade de sua revisão acabam esbarrando com a ausência de tratamento legislativo sobre o tema. Quando não for possível aplicar o Código Civil ou o Código de Defesa do Consumidor, caberá ao juiz utilizar os critérios de razoabilidade e a vertente principiológica da Teoria Geral dos Contratos.
3. Considerando que os contratos eletrônicos podem adotar a natureza de duração continuada ou execução diferida, em sua grande maioria, e possuem alta complexidade, torna-se razoável a presença de cláusulas de renegociação que possam buscar a manutenção do negócio, nos casos de alteração das circunstâncias.
4. No tocante à alteração das circunstâncias, para os casos específicos dos contratos eletrônicos nas relações de consumo, a legislação brasileira é insuficiente para tratar a matéria.
5. Entendemos que a boa-fé deve acompanhar a execução dos contratos, quando configurado o enriquecimento ilícito com observância aos deveres anexos de cada um dos contratantes, de forma a restringir o exercício abusivo dos direitos subjetivos.
6. Por fim, concluímos que não se pode, na atual sociedade consumerista, incentivar a banalização de valores éticos e morais, esvaziando o sentido da condição humana nas negociações eletrônicas. Não é justo, nem tão pouco razoável, permitir um incentivo à busca desenfreada pelo patrimônio sem a preocupação com os sujeitos da relação.
Doutora e Mestre do programa de pós-graduação stricto sensu em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Especialista em Direito Empresarial (FDV). Professora de Direito Civil da graduação e pós-graduação lato sensu da FDV. Advogada e sócia fundadora do escritório Lyra Duque Advogados
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