Resumo: Em oposição ao caráter prático e jurisprudencial do common law, os conceitos são uma necessidade intrínseca ao sistema jurídico romano-germânico, devido à sua estruturação sistemática. Ter claro um conceito de contrato, portanto, é considerar a série de princípios e normas aplicáveis a ele subjacente a esse enquadramento teórico. Resgata-se a etimologia da palavra contrato, e conceitos modernos e clássicos. Verifica-se a compreensão do contrato como conceito ligado à autonomia da vontade e à circulação de bens econômicos, sem esquecer da importância de sua qualificação como negócio jurídico bilateral ou plurilateral.[1]
Palavras-chave: conceito, sistema, negócio jurídico, autonomia da vontade, causa.
Abstract: The concepts are an intrinsical need of the civil law, because its systematic structure, in opposition to the practical and jurisprudencial character of the common law. Having a clear concept of the contract, therefore, is considering a number of principles and rules applicable to this theorical framing. The etymology of the word contract is presented, beside classic and modern concepts. The comprehension of the conctract is shown to be connected to the autonomy of will and the circulation of goods. It is not forgotten the importance of the qualification of the contract as a legal transection.
Keywords: concept, system, legal transaction, autonomy of will, cause.
1 O conceito como necessidade do sistema romano-germânico
Os conceitos e teorias são necessidades intrínsecas ao sistema jurídico romano-germânico, ao qual o Brasil se filia, em oposição ao caráter prático e jurisprudencial do commom law (CAENEGEN, 1995, p. 81)[1].
É claro que a cristalização de conceitos exatos e imutáveis é utópica. Já se provou equivocada a tentativa de “subordinar a vida aos conceitos e dobrar a realidade social a princípios deduzidos sobre a forma sistemática de imperativos lógicos, […] na ilusão de que seriam inalteráveis” (GOMES, 2001, p. XI). Por óbvio, os conceitos devem ser maleáveis, aptos a compreender a dimensão de seu tempo e a dinâmica da vida social – o que, por outro lado, não tira sua utilidade para a compreensão e aplicação do direito.
A convenção de atribuir um nome a alguma coisa evita que seja necessário defini-la e explicá-la a todo tempo. Apesar de toda definição carregar consigo mesma algum questionamento, é fato que os conceitos são necessários, e que facilitam sobremaneira a comunicação e a vida em sociedade.
A existência do direito, para Antonio Menezes Cordeiro, “assenta numa série de fenómenos que se concretizam com regularidade”, os quais “facultam um conjunto de estruturas que permitem a consistência ideológica do conjunto” (in CANARIS, 1996, p. LXIII-LXIV). Entendido como sistema[2], isto é, dotado de ordenação e unidade, o direito se apresenta organizado em institutos e princípios que possibilitam sua melhor compreensão e facilitam sua aprendizagem[3]. Esse é o papel da dogmática: rotular os fatos que nos cercam, de forma a tornar mais célere e científica a aplicação e a interpretação do direito. Qualificar um fato dentro das bitolas estabelecidas pelo direito significa já considerar uma série de regras e princípios a ele subsumidos.
O contrato é também um conceito jurídico: uma construção elaborada (além do mais) “com o fim de dotar a linguagem jurídica de um termo capaz de resumir, designando-os de forma sintética, uma série de princípios e regras de direito, uma disciplina jurídica complexa” (ROPPO, 1988, p. 7). Não é outra a conclusão a que se chega ao dizer que o contrato é um instituto jurídico: um “conjunto de princípios e normas que regem uma determinada relação ou situação jurídica” (NORONHA, 2007, p. 12).
As pessoas, de uma forma geral, têm sua concepção de contrato como um acordo de vontades – uma concepção intuitiva e metajurídica, oriunda da vida cotidiana. Cabe-nos aqui esboçar um conceito jurídico de contrato.
2 Em torno do conceito de contrato
Segundo o clássico conceito de Clóvis Bevilaqua (1934, p. 245), contrato é um “acordo de vontades para o fim de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direitos”. Ou, ainda, conforme Ulpiano, é o “mútuo consentimento de duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto” (apud MONTEIRO, 2007, p. 4).
Etimologicamente, contrato vem do latim vulgar con tractare – tratar (algo) com (alguém).
Os dois Códigos Civis que o Brasil já teve optaram por não definir o contrato, em homenagem ao princípio latino de que definições em direito civil são perigosas, e que seria tarefa que melhor caberia à doutrina. Ainda assim, há codificações que trazem um conceito de contrato, tal como faz a italiana em seu art. 1.321: “o contrato é o acordo de duas ou mais pessoas para, entre si, constituir, regular ou extinguir uma relação jurídica de natureza patrimonial” (in BESSONE, 1997, p. 17).
O contrato é uma espécie de negócio jurídico, isto é, um ato humano em que tem papel preponderante a vontade dirigida a um determinado fim. Assim, ações diversas como a instituição de um testamento, a compra e venda de uma casa e a constituição de uma sociedade empresária são negócios jurídicos – respectivamente, unilateral, bilateral e plurilateral – visto que todos, em tese, não foram obrigados a celebrá-los (sendo, assim, produto de seus desejos de interferirem na ordem econômica do mundo real) e, em maior ou menor grau, puderam dispor, por exemplo, sobre a partilha dos bens, o valor do imóvel negociado e as quotas-partes de cada um na sociedade. O negócio jurídico seria a expressão máxima do poder que o homem tem de dispor sobre si mesmo, e de, assim, obrigar-se em relação a outra pessoa e ter outro obrigado a si. “Os negócios jurídicos bilaterais se formam a partir de manifestações de vontade distintas, porém coincidentes, recíprocas e concordantes sobre o mesmo objeto. […] Forma-se o negócio jurídico bilateral no momento em que os figurantes materializam o acordo. Em geral, há uma oferta (= proposta) e uma aceitação, negócios jurídicos unilaterais que se soldam pelo consenso” (MELLO, 2003, p. 198).
Alguns doutrinadores enxergam duas espécies de negócios jurídicos bilaterais: os contratos e os acordos. Nos contratos haveria composição de interesses opostos ou divergentes, enquanto nos acordos os interesses seriam paralelos e convergentes para um fim comum (como em acordos entre acionistas) (BETTI, 1969, p. 198).
Por outro lado, há quem diga existir o contrato em sentido amplo, compreendido como “todo negócio jurídico que se forma pelo concurso de vontades” (em oposição, assim, às declarações unilaterais de vontade, como a promessa de recompensa), e o contrato em sentido estrito, para designar “o acordo de vontades produtivo de efeitos obrigacionais na esfera patrimonial” (GOMES, 2001, p. 9).
Entendendo o direito como uma criação cultural e em permanente transformação, é fundamental pensar os institutos jurídicos a partir das idéias que orientam a direção política, econômica e cultural da sociedade. Os conceitos jurídicos “reflectem sempre uma realidade exterior a si próprios, uma realidade de interesses, de relações, de situações econômico-sociais, relativamente aos quais cumprem, de diversas maneiras, uma função instrumental” (ROPPO, 1988, p. 7). O conceito de contrato engloba tanto a operação econômica que lhe é subjacente como a formalização do ato, muito embora essa formalização nunca seja construída como um fim em si mesma, “mas sim com vista e em função da operação económica, da qual representa, por assim dizer, o invólucro ou a veste exterior”, funcionando, portanto, o “contrato-conceito jurídico” como instrumento do “contrato-operação econômica” (ROPPO, 1988, p. 9-10).
Daí porque os contratos, segundo Betti (1969, p. 334), têm sempre uma causa ou função econômica: “Quem promete, dispõe, renuncia, aceita, não pretende, pura e simplesmente, obrigar-se, despojar-se de um bem, transmiti-lo, adquiri-lo sem outro fim, não procura fazer tudo isso só pelo prazer de praticar um acto que seja fim em si mesmo. Mas procura sempre atingir um dos escopos práticos típicos que governam a circulação dos bens e a prestação dos serviços, na interferência entre as várias esferas de interesses que entram em contacto na vida social: obter um valor correspondente, trocar um bem ou serviço por outro, abrir crédito, doar, cumprir uma obrigação precedente, desinteressar-se de uma pretensão, transigir num processo, etc. […] – uma razão prática típica que lhe é imanente, uma ‘causa’, um interesse social objectivo e socialmente verificável, a que ele deve corresponder.
Assim, se se entende que “é conveniente proteger as compras e as locações em geral, o direito, na esteira da consciência social, protege cada compra ou locação, qualquer que possa ser o motivo individual que, em concreto, leva a realizá-la” (BETTI, 1969, p. 348). A causa é, portanto, “a função econômico-social de todo negócio, considerado despojado de tutela jurídica, na síntese de seus elementos essenciais, como totalidade e unidade funcional, em que se manifesta a autonomia privada” (BETTI, 1969, p. 350).
A conseqüência disso, de acordo com o autor italiano, é que, após avaliar a função prática que caracteriza o negócio, o direito opta por protegê-lo, se o reconhece como função digna de tutela; combatê-lo quando o considera nocivo; e ignorá-lo quando ele não parece relevante a ponto de merecer proteção, e nem nocivo para ser sancionado (BETTI, 1969, p. 106).
Sendo assim, concluir um contrato significa “realizar uma operação econômica reconhecida e tutelada pelo direito” (ROPPO, 1988, p. 211).
O contrato pode tratar apenas de matérias disponíveis. O que não é negociável, como o dever do familiar de prestar alimentos ao parente, não pode ser objeto de contrato.
O contrato opera exclusivamente na esfera do econômico, isto é, onde há efetiva ou potencial circulação de riqueza, entendida esta não só como dinheiro e outros bens materiais, mas também como todas as utilidades suscetíveis de avaliação econômica, ainda que não sejam coisas em sentido próprio – “nestes termos, até a promessa de fazer ou não fazer qualquer coisa em benefício de alguém, representa, para o promissário, uma riqueza verdadeira e própria” (ROPPO, 1988, p. 13).
Obviamente, há diversas operações econômicas sem contrato (veja-se, por exemplo, a sucessão legítima, em que a transmissão do patrimônio do de cujus opera pelo simples efeito da lei, transmitindo-se os bens aos herdeiros necessários previstos no Código Civil). No entanto, não há contrato sem operação econômica (ROPPO, 1998, p. 18-19).
É lícito pensar que, enquanto as operações econômicas (isto é, as transferências de riqueza) existem desde tempos muito remotos, o contrato, concebido como instrumento de formalização jurídica, é criação relativamente recente, e, sua regulamentação jurídica mais ainda. A jurisdicionalização dos comportamentos, isto é, sua submissão ao direito, “constitui um processo que evolui conjuntamente com o desenvolvimento da civilização”, denotando-se, por conseguinte, um “iter histórico orientado complexivamente no sentido de atrair, de modo cada vez mais completo, as operações económicas para a órbita e para o domínio do direito, submetendo-as às suas regras vinculativas” (ROPPO, 1988, p. 16).
A existência de um conceito genérico de contrato – qual seja, como instrumento jurídico autônomo, não necessariamente ligado a esta ou aquela operação econômica – surgiu apenas na época de Justiniano (século VI d.C.) (ROPPO, 1988, p. 17). Hoje, ao mesmo tempo em que esse conceito genérico já está cristalizado, assiste-se à criação de cada vez mais espécies de contratos, criadas em resposta a novos interesses e exigências, o que só faz por comprovar o sucesso do instituto. Ele não existe apenas no direito das obrigações, mas também povoa outros ramos do direito privado, como o direito de família (contrato de casamento), e do direito público (contratos celebrados pela Administração Pública) (GONÇALVES, 2008, p. 2). Há contratos sobre tudo: desde a clássica compra e venda, até criações recentes como o factoring, o engineering, o leasing. E, inclusive, contratos que fogem à conhecida regra da patrimonialidade. Há ocasiões em que a prestação debitória nunca será, em si mesma, suscetível de avaliação pecuniária, como o compromisso de fazer retratação pública, quando não tenha havido danos patrimoniais, ou o encargo exigido do donatário na doação onerosa, que pode versar sobre interesses não patrimoniais do doador (NORONHA, 2007, p. 43 e 49, passim). Pode-se argumentar, nesses casos, que haveria uma valoração econômica indireta da obrigação – tanto por eventuais danos morais, no primeiro caso, como expressão da contraprestação econômica recebida pelo donatário.
Discussão que, em última analise, corrobora que não há pontos absolutamente pacíficos no direito. Isso, por um lado, confirma o brocardo latino omnis definitio in juris civilis periculosa est: parum est enim, ut non ubverti possit (toda definição em direito civil é perigosa: poucas são as que não podem ser derrubadas) (NORONHA, 1994, p. 34). Por outro, confirma a regra geral do conteúdo patrimonial dos contratos, e o importante papel que eles representam na construção do direito.
Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Franca
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