Resumo: O presente trabalho procura analisar a legitimidade do Ministério Público para requerer o arbitramento, na sentença criminal, de valor mínimo indenizatório em favor do ofendido, levando em consideração que a jurisprudência dos tribunais superiores entende indispensável a existência de pedido formal nesse particular. Para tanto, analisa o perfil constitucional do Parquet, estudando as suas funções e missões institucionais à luz do art. 68 do CP. Os resultados demonstram que o MP somente poderá atuar se o ofendido for pessoa considerada pobre nos termos da lei e se a Defensoria Pública não estiver devidamente instalada e equipada na localidade.
Sumário: Introdução; 1. O perfil constitucional do Ministério Público; 2. Legitimidade Posição ativa do Ministério Público para requerer a fixação de indenização em favor da vítima: legitimação condicionada; Considerações finais; Referencias.
Introdução
No dia 20 de junho de 2008, foi publicada a Lei nº 11.719/2008, que modificou o Código de Processo Penal e, dentre outras alterações, instituiu a competência do juiz criminal para fixar, na sentença penal condenatória, um valor mínimo a ser pago pelo apenado à vítima, a título de reparação civil em decorrência dos danos causados pela infração.
A alteração legislativa está alinhada a um processo de inclusão (e personalização) do ofendido no discurso do processo penal, que, tradicionalmente, o tem relegado a um segundo plano, tratando-o como mero objeto da prova a fim de alcançar a “verdade real”, viabilizando com isso a condenação do acusado.
Antonio Milton de Barros (2015) escreve: “A vítima não encontra maior espaço de proteção de seus interesses particulares, como sujeito processual, pois ao Estado interessa precipuamente a apuração do fato sob a perspectiva criminal, em cujo contexto aquela aparece como objeto de prova, dando seu ‘testemunho’ do crime ou submetendo-se a exame de corpo de delito, conforme o caso; mas, de qualquer modo, não recebe adequadas informações sobre o andamento do processo e, muitas vezes, sequer sobre seu resultado”.
Com efeito, permitir que a vítima seja indenizada no bojo da própria ação penal – sem a necessidade de propor ação específica no juízo cível – é respeitá-la em sua dignidade, buscando restaurar as lesões suportadas pelo titular do direito violado, até mesmo porque um dos efeitos da condenação penal é o de tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime (art. 91, inciso I, CP).
Vale frisar que a legislação brasileira já previa a possibilidade de o ofendido (seu representante legal ou seus herdeiros) promoverem a execução, no juízo cível, da sentença penal condenatória transitada em julgado, apurando-se o valor devido em sede de liquidação. A novidade é que, atualmente, a vítima estará de posse de um título executivo líquido, sem prejuízo de ajuizar ação cível pleiteando indenização maior, eis que a indenização estabelecida pelo juízo criminal é apenas um valor mínimo.
Norberto Avena (2013) esclarece que “(…) este arbitramento do quantum indenizatório realizado no juízo criminal, conquanto não impeça a vítima de apurar, no juízo cível, o prejuízo efetivamente sofrido, faz com que a sentença penal assuma, desde logo, a característica de título líquido, possibilitando ao ofendido ajuizar, imediatamente após o seu trânsito em julgado, a ação de execução ex delicto prevista no art. 63, caput, do CPP”.
Renato Brasileiro de Lima (2014, p. 1458) escreve: “Essa importante mudança permite que, doravante, o ofendido não seja obrigado a promover a liquidação para apuração do quantum debeatur, podendo promover, de imediato, a execução da sentença condenatória transitada em julgado. Esse valor, todavia, não é definitivo para a vítima. De fato, de acordo com o art. 63, parágrafo único, do CPP, transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do art. 387, sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido”.
Porém, nem sempre será possível a fixação do valor mínimo indenizatório em favor do ofendido na sentença, porque nem todos os delitos possuem ofendido ou prejudicado determinado, como é o caso dos crimes de perigo abstrato (tráfico de drogas e porte ilegal de arma de fogo, v.g.), havendo, inclusive, discussão doutrinária a respeito da possibilidade de ser fixada verba em razão de danos morais.
Pois bem.
Diversas foram as indagações a respeito da validade e aplicabilidade da Lei nº 11.719/2008. Alguns questionaram se o juiz criminal possuiria competência para fixar valor mínimo indenizatório em processos iniciados antes do seu advento. Outros, como Vicente Greco Filho (2012), observaram que a instrução criminal não tem o objetivo de discutir, em contraditório, o valor de reparação civil, de sorte que o magistrado criminal não possui elementos para aferi-la. Houve também aqueles que indagaram a necessidade, ou não, de pedido formal das partes para que o juízo criminal fixasse a verba em comento. É precisamente sobre este terceiro tema que o presente trabalho pretende analisar.
Guilherme de Souza Nucci (2008, p. 691) alerta que, para que o magistrado possa fixar o valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração, “é fundamental haver, durante a instrução, um pedido formal para que se apure o montante civilmente devido”, pedido este que “deve partir do ofendido, por seu advogado (assistente de acusação), ou do Ministério Público”.
O referido autor argumenta, ainda, que “se não houver pedido e instrução específica para apurar o valor mínimo para o dano, é defeso ao julgador optar por qualquer cifra, pois seria nítida infringência ao princípio da ampla defesa” (NUCCI, 2008, p. 691).
Vicente Greco Filho (2012), por sua vez, aduz: “É possível admitir que, mediante pedido expresso do ofendido que se habilite como assistente, o juiz, após contraditório em que o réu deve ter o devido processo legal quanto à indenização, possa fixar uma indenização, mas que, então, não será a mínima, mas a definitiva, com força de coisa julgada”.
O aludido doutrinador ressalta, todavia, que essa prática poderia implicar graves e indesejadas consequências à persecução criminal, porque a discussão derivar-se-á para a indenização civil, desviando o curso e objeto do processo penal. Escreve: “Imagine-se que 5 vítimas, por exemplo, se habilitem como assistente e passem a discutir questões civis. O processo penal será fatalmente perturbado, o que o juiz penal não pode permitir, devendo, então, remeter as partes para o juízo cível competente. Melhor será sempre adotar essa prática, ou seja, o juiz penal entender inviável a apuração de qualquer valor que seja de indenização e deixar que a parte procure a reparação diretamente no cível” (GRECO FILHO, 2012).
No âmbito jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheram a objeção doutrinária, firmando-se no sentido de que a fixação do valor mínimo para a indenização dos prejuízos suportados pelo ofendido depende de pedido expresso e formal, de modo a oportunizar a ampla defesa e o contraditório.[i]
Acatando a orientação dos tribunais superiores, a Central de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) editou Nota Técnica em que sugere aos membros daquela instituição que, ao oferecerem denúncias, formulem pedido expresso de condenação em valor mínimo para indenização, especificando, se for o caso, provas.[ii]
Também no Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO) existe orientação aos seus membros de execução, sem caráter vinculativo, que recomenda seja postulada a fixação do valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido.[iii]
Como se vê, a orientação jurisprudencial parece ter sido acatada sem uma análise crítica anterior, ou seja, sem reflexão acerca da legitimidade do Parquet para tanto, de modo que o presente trabalho tem por objeto examinar o perfil constitucional do Ministério Público, analisando, em seguida, a sua legitimidade para requerer a fixação de valor mínimo indenizatório a ser arbitrada em favor da vítima na sentença penal condenatória.
1. O perfil constitucional do Ministério Público
A Constituição Federal de 1988 estabelece que o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Nas palavras de Hugo Nigro Mazzilli (2007, p. 109), ao estabelecer o Ministério Público como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a Constituição da República disse menos do que deveria – uma vez que parece ignorar as funções extrajudiciais do órgão –, e, ao mesmo tempo, disse mais do que deveria, já que o Parquet não oficia em todos os feitos submetidos à apreciação jurisdicional, mas apenas naqueles em que haja algum interesse indisponível ou transindividual, de caráter social, ligada à qualidade de uma das partes ou à natureza da lide. Portanto, o Ministério Público não atua na defesa de todo e qualquer direito, devendo oficiar na defesa dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis.
Bernardo Gonçalves Fernandes (2011) lembra que “o Ministério Público em nossa atual Constituição de 1988 se coloca como uma instituição autônoma e independente dos demais Poderes (não pertence a nenhum deles, devendo respeito apenas à Constituição) e pode e deve ser entendido como o fiscal da lei e do ordenamento jurídico, bem como defensor do Estado e da sociedade”.
Essa independência (ou autonomia) em relação aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é, ao lado da independência funcional, um pressuposto necessário para o exercício do papel fiscalizatório do Ministério Público, que, por óbvio, restaria sobremaneira prejudicado se houvesse vinculação ou subordinação administrativa.
Afinal, não se pode esquecer que – infelizmente – os membros do Executivo e do Legislativo são alguns dos principais personagens de investigações conduzidas pelo Parquet em virtude de desvios de conduta que, eventualmente, caracterizam atos criminosos ou de improbidade administrativa.
Além disso, a Constituição Federal de 1988 prevê garantias para o bom exercício das funções ministeriais (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos subsídios, art. 128, inciso I), blindando o membro do Parquet de retaliações ou ingerências contra a sua atuação.
Por outro lado, o constituinte estabeleceu também importantes vedações aos promotores e procuradores, dentre as quais se destacam a proibição de receber, a qualquer título, honorários, percentagens e custas processuais; de exercer a advocacia; de participar de sociedade comercial; de exercer outra atividade pública, salvo uma de magistério; de exercer atividades político-partidárias, bem como de receber auxílios ou contribuições de pessoas jurídicas.
Significa dizer que o membro do Ministério Público deve se dedicar exclusivamente ao desempenho de suas funções institucionais e se abster de exercer funções outras – inclusive públicas –, e, principalmente, de exercer atividades de cunho privado.
Talvez a maior preocupação do constituinte em relação aos integrantes da carreira ministerial tenha sido a de afastá-lo da advocacia, expressamente vedada aos membros do Parquet no art. 128, inciso I, alínea “b”, da CF/88. No mesmo sentido, o art. 129, inciso IX, da Constituição da República veda ao Ministério Público a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas (advocacia pública).
Frise-se que o exercício da advocacia – pública ou privada – constitui ofensa tão grave às vedações constitucionalmente impostas que pode acarretar até mesmo a perda do cargo de promotores e procuradores vitalícios, mediante decisão judicial transitada em julgado proferida em ação civil própria (art. 38, § 1o, inciso II, da Lei n. 8.625/93).
Mas, então, quais seriam as funções desempenhadas pelos membros do Parquet?
Segundo estabelece o art. 129 da Constituição Federal de 1988, incumbe ao MP promover, privativamente, a ação penal pública, zelar pelo respeito aos Poderes Públicos, aos serviços de relevância pública e aos direitos constitucionais, bem como promover o inquérito civil e a ação civil pública. Compete-lhe, ainda, promover a ação de inconstitucionalidade, a representação para intervenção da União e dos Estados, defender os interesses das populações indígenas e exercer o controle externo da atividade policial, dentre outras funções.
A partir da leitura dos arts. 127, caput, e 129, inciso III, da CF/88, verifica-se que a atuação do Ministério Público deverá estar orientada à proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses sociais, difusos e coletivos, bem como à proteção dos direitos individuais indisponíveis.
O Código de Processo Civil de 1973 já estabelecia hipóteses de interesses individuais em que o Parquet deveria atuar, quais sejam, causas em que há interesse de incapazes; causas concernentes ao estado de pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; em todas as demais causas em que há interesse público, evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte; nas ações que envolvam litígio pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.
O CPC de 2015, em seu art. 178, preconiza que o Ministério Público será intimado para, no prazo de trinta dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam interesse público ou social, interesse de incapazes ou litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana.
Da leitura do art. 178 do NCPC, verifica-se, de logo, que existem outras hipóteses de atuação do Ministério Público não elencadas na legislação processual civil que podem advir da própria Constituição ou mesmo de outros diplomas legais, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Estatuto do Idoso, dentre outros.
Nota-se, todavia, que a ação do Ministério Público em relação aos direitos individuais deve ser reservada àqueles de natureza indisponível, não possuindo legitimidade para a defesa dos direitos individuais disponíveis.
No que diz respeito ao valor mínimo indenizatório a que alude o art. 387, inciso IV, do CPP, cuida-se, por óbvio, de interesse individual disponível, ou seja, verba indenizatória a ser revertida em favor da vítima, que, inclusive, poderia deixar de pleiteá-la em juízo. Seria o mesmo que alguém adquirir um televisor viciado e, podendo requerer a restituição do valor pago, optasse por adquirir outro ou mesmo por ficar sem o aparelho. Não há, em nosso ordenamento jurídico, uma regra que obrigue o lesado a postular a reparação civil do dano causado pelo ofensor.
Tratando-se, então, de um direito individual disponível, resta indagar: afinal, o Ministério Público possui legitimidade para requerer – seja na denúncia ou em sede de alegações finais – a fixação de valor indenizatório mínimo a ser arbitrado, na sentença criminal, em favor da vítima?
2. Posição ativa do Ministério Público para requerer a fixação de indenização em favor da vítima: legitimação condicionada
Conquanto a previsão legal em estudo tenha sido introduzida no nosso ordenamento jurídico no ano de 2008, remanesce acentuada polêmica a respeito da matéria.
O jurista Rômulo de Andrade Moreira (2013), entendendo tratar-se de um julgamento extra petita imposto pela lei, considera não ser necessário ao acusador requerer qualquer providência condenatória ao juiz, que deverá fazê-lo de ofício, conclusão esta, todavia, rechaçada pela jurisprudência do STF e STJ.
Maria Fernanda de Souza Sales (2016), por sua vez, aponta a divergência doutrinária sobre a matéria e conclui que “o entendimento que parece mais correto é o de que, como o Ministério Público tem a função de garantidor da lei e possui o dever de proteger os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e da sociedade, aplicando o ordenamento jurídico, é legitimado ativo para requerer pedido de indenização para a vítima, qualquer que seja a natureza da ação penal pública. Além disso, os dizeres do legislador no artigo em comento não deixam dúvida sobre a imperatividade de se fixar valor, independentemente de pedido”.
Argumenta que esta conclusão seria a mais razoável, “até porque, conforme a primeira parte do artigo 129, inciso IX, da Constituição da República, é função institucional do Ministério Público exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade”.
Esta também é a posição de Suzane Maria Carvalho do Prado (2015) ao defender que “em atendimento aos interesses da vítima, e também como para estabelecer um contraditório inicial, [o Ministério Público] há de fazer constar expressamente na denúncia que o ofendido suportou prejuízo por conta do delito e, nos requerimentos, destacar o artigo 387, IV, do CPP. Da mesma forma, nas alegações finais, é de se reforçar o pedido da condenação específica, indicando o que foi produzido de prova neste sentido”.
Sheilla Maria das Graças Coutinho das Neves (2011), trilhando o mesmo raciocínio, assevera que “o Ministério Público é parte legítima para buscar a recomposição patrimonial da vítima no curso da ação penal, pois não se trata de cumulação de pedidos, ou seja, um cível e outro penal. Existe apenas uma ampliação da regra da obrigação de reparação do dano prevista no art. 91, inciso I, do Código Penal, que se consubstancia em efeito da condenação”.
Contudo, não se pode concordar com essa linha de argumentação.
Ora, conforme antes dito, o art. 387, inciso IV, do CPP, estabelece a competência do juízo criminal para fixar, na sentença, um valor mínimo a título de reparação civil a ser pago pelo condenado em favor da vítima, montante este que constitui um direito individual disponível do ofendido.
Logo, não há como se afirmar que a função do Ministério Público de “garantidor da lei” e de “protetor dos direitos fundamentais” possa ser invocado como fundamento para legitimar sua atuação, mesmo porque se trata de direito individual do ofendido, que não pode ser considerado incapaz pelo simples fato de ter sido vítima de um delito.
Ademais, caso não estivéssemos diante de um pedido de natureza cível e se houve apenas uma ampliação da regra prevista no art. 91, I, do CP, então não haveria qualquer necessidade de pedido formal e expresso a fim de preservar os princípios do contraditório e da ampla defesa, tal como entendem o STF e STJ, pois tratar-se-ia de mero efeito da sentença condenatória.
Na realidade, a legitimidade do Ministério Público para requerer a fixação da referida verba na sentença penal condenatória deve ser analisada à luz das regras previstas nos arts. 63 e 68 do CPP.
Os referidos dispositivos estabelecem que, transitada em julgado a sentença condenatória, o ofendido, seu represente legal ou seus herdeiros poderão promover a execução, no juízo cível, para efeito de reparação do dano, sendo que, quando o titular do direito à reparação do dano for pobre, o Ministério Público poderá promover a execução da sentença condenatória ou ajuizar a ação civil indenizatória.
Ou seja, interpretando o art. 387, inciso IV, do CPP a partir dos parâmetros traçados pelo art. 68 daquele mesmo diploma, seria possível concluir, inicialmente, que a legitimidade do Ministério Público para requerer a fixação da verba indenizatória seria adstrita aos casos em que a vítima fosse pobre nos termos da lei. Nos demais casos seria forçoso concluir pela ilegitimidade do Parquet, haja vista tratar-se de direito individual disponível, de modo que a própria vítima deverá constituir advogado e se habilitar nos autos da ação penal para requerer o arbitramento da indenização, ou, querendo, ingressar no juízo cível.
Saliente-se que, no caso a que alude o art. 68 do CPP, o Ministério Público age na condição de substituto processual, uma vez que atua em nome próprio na defesa de direito alheio (TÁVORA; ALENCAR, 2013, p. 223).
Durante muito tempo se sustentou que o regramento acima não teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988, porque incompatível com o perfil constitucional do Ministério Público, que não possui legitimidade para atuar na defesa dos direitos individuais disponíveis. Ainda, porque o constituinte reservou à Defensoria Pública a missão de promover a defesa, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, àqueles que comprovassem insuficiência de recursos (art. 134 da CF/88).
Ao apreciar a questão, o Supremo Tribunal Federal entendeu a norma jurídica que prevê a legitimidade do Ministério Público para promover a execução da sentença condenatória ou ajuizar a ação civil indenizatória em favor de vítima pobre deve ser considerada materialmente compatível com a Constituição Federal de 1988 enquanto a Defensoria Pública não estiver instituída e organizada no local.
Logo, enquanto a Defensoria Pública não estiver implantada na localidade, o Ministério Público, por ostentar legitimidade para intentar a demanda indenizatória (art. 68, CP), poderá requerer ao juiz a fixação de indenização em suas denúncias, mas assim que a Defensoria Pública foi devidamente instalada de modo satisfatório, deixará de possuir esta atribuição, havendo um estágio intermediário e transitório que configura um processo de progressiva inconstitucionalidade.
Logo, conclui-se que a legitimação do MP para postular a fixação da verba indenizatória é condicionada, ficando subordinada às mencionadas condições, ou seja, que a vítima seja juridicamente pobre e que não haja órgão da Defensoria Pública na comarca ou circunscrição.
Este é o entendimento de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2013, p. 227), que escrevem: “E quem tem legitimidade para requerer a indenização? Nas ações privadas, não teremos maiores problemas, já que o ofendido é o próprio titular da ação, tendo também legitimidade para requerer a justa indenização. O problema se avizinha no âmbito das ações públicas: está o MP legitimado para requerer indenização em favor do ofendido? Entendemos que não, já que uma tal pretensão exorbitaria o âmbito de sua atribuição. No máximo, sendo a vítima pobre, e se na comarca não há Defensoria, assistiria ao MP requerer a indenização em favor do hipossuficiente, por analogia ao art. 68 do CPP. Nos demais casos, restaria ao ofendido devidamente identificado habilitar-se como assistente de acusação, para só assim apresentar sua pretensão indenizatória”.
Compartilhando do mesmo entendimento, Sauvei Lai pondera: “Penso que não cabe ao Parquet se manifestar sobre este assunto, pois, incontroversamente, cuida-se de matéria patrimonial, havendo proibição constitucional na atuação ministerial nos casos de interesses individuais disponíveis (art. 127 da CR). De mais a mais, a hipótese retratada se assemelharia muito com a do art. 68 do CPP (ação civil proposta pelo MP quando a vítima é pobre), que o STF declarou inconstitucional (art. 134 da CR). Resta tão somente a alternativa de se intimar a vítima, titular da pretensão indenizatória”.
Vale ressaltar que a tese da inconstitucionalidade progressiva, apesar de encampada pela Suprema Corte, não escapou às críticas da doutrina.
Eugêni Pacelli de Oliveira (2013, p. 196) escreve que “do ponto de vista rigorosamente jurídico, a solução não convence, até porque o que seria progressivo seria a revogação, e não a inconstitucionalidade, dado que a norma constitucional é posterior à legal. E também porque toda norma constitucional ostenta eficácia jurídica (…)”.
Assevera também que “a solução da Suprema Corte busca, na verdade e unicamente, a acomodação dos diversos interesses em disputa, revelando-se de ordem eminentemente política – função, aliás, à qual ela não pode, em certa medida, jamais renunciar” (2013, p. 196).
Sem embargo das críticas da doutrina, o certo é que a tese da inconstitucionalidade progressiva foi acatada pela jurisprudência da Suprema Corte brasileira, devendo, portanto, ser aplicada e respeitada pelos órgãos inferiores, até mesmo por questão de pacificação social e harmonização do sistema jurídico-penal.
Considerações finais
Diante deste quadro, pode-se concluir que a legitimidade para requerer ao juiz a fixação do valor mínimo indenizatório na sentença penal condenatória é reservada, de ordinário, à própria vítima, titular do direito violado, seja nas ações penais de iniciativa privada – quando poderá fazê-lo diretamente –, seja, ainda, nas ações penais públicas, nas quais poderá se habilitar nos autos da demanda criminal na qualidade de assistente de acusação, por meio de advogado, e postular diretamente o arbitramento da verba.
Contudo, o Ministério Público também ostenta legitimidade (condicionada) para postular, na qualidade de substituto processual, a fixação do montante indenizatório nas ações penais públicas, desde que atendidos alguns parâmetros objetivos, a saber:
a) que o ofendido seja pessoa considerada pobre nos termos da lei, ou seja, que não possua condições econômicas de prover às despesas do processo sem prejuízo próprio e de seus familiares (art. 68, CP); e
b) que a Defensoria Pública, órgão constitucionalmente competente para a defesa jurídica dos interesses individuais e coletivos dos hipossuficientes econômicos, não esteja devidamente instalada e equipada na localidade.
Caso o membro do Ministério Público tenha requerido a fixação de valor mínimo indenizatório em favor de vítima que não seja considerada juridicamente pobre, o juiz não deverá deferir este pedido em virtude da ilegitimidade ativa do órgão ministerial.
E se o magistrado acatar o pedido indevidamente formulado pelo Parquet para arbitrar verba indenizatória em favor de pessoa que não se enquadre no perfil de vulnerabilidade econômica, o caso será de inconstitucionalidade por violação ao art. 127 e 129, inciso I, da CF, que não conferiu ao Ministério Público a função institucional de atuar na defesa de interesses individuais disponíveis.
Por fim, havendo órgão da Defensoria Pública instalado e devidamente aparelhado na localidade, incumbe-lhe a tarefa de requerer o arbitramento da mencionada indenização nos casos envolvendo hipossuficientes, por força do art. 134 da CF.
Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador UCSal pós-graduando em Direito Público pela PUC-MG Analista Técnico Jurídico no Ministério Público do Estado da Bahia MPBA
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