Considerações sobre a propriedade urbana no Brasil e seus aspectos sociais

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS


A propriedade em seu aspecto conceitual sofreu inúmeras modificações na sua simbologia como sinônimo de bem coletivo na era primitiva, sendo utilizada como instrumento de dominação através dos tempos até chegar a concepção atual de propriedade como sinônimo social.


O trabalho tem como uma das reflexões a mudança deste paradigma, a diferença do “Brasil legal para o Brasil real”[1] se desloca cada vez mais para lados opostos. Um novo pensar sobre esta realidade é válido quando estes dois mundos, Brasil legal e Brasil real, se consolidam em faces opostas da mesma problemática urbana.


Esta afirmação “Brasil legal” e “Brasil real” retirada do grande escritor Ariano Suassuna mostra bem de perto como funciona a sistemática do direito como fonte do ser e do dever ser. O “Brasil legal” transcrito na Carta Magna delega a todos os brasileiros direitos e garantias fundamentais que se forem vistos de forma superficial coloca o povo brasileiro como um população altamente desenvolvida em termos de desenvolvimento humano. Entretanto, o “Brasil real” o Brasil do ser está muito aquém deste patamar de prosperidade e desenvolvimento social.


O pensamento de Milton Santos ilustra parte da idéia que vem sendo desenrolada neste trabalho. De forma que Milton Santos[2] afirma:


“As cidades são grandes porque há especulação e vice-versa; há especulação porque há espaços vazios e vice-versa; porque há vazios as cidades são grandes. O modelo rodoviário urbano é fator de crescimento disperso e do espraiamento da cidade. Havendo especulação, há criação mercantil da escassez e o problema do acesso à terra e à habitação se acentua. Mas o défict de residências também leva à especulação e os dois juntos conduzem à periferização da população mais pobre e, de novo, ao aumento do tamanho urbano. As carências em serviços alimentam a especulação, pela valorização diferencial das diversas frações do território urbano. A organização dos transportes obedece a essa lógica e torna ainda mais pobres os que devem viver longe dos centros, não apenas porque devem pagar caro seus deslocamentos como porque os serviços e bens são mais dispendiosos nas periferias. E isso fortalece os centros em detrimento das periferias, num verdadeiro círculo vicioso.”


Nesta concepção, a propriedade é moldada de forma que sua detenção é sinônimo de riqueza e ostentação. Riqueza porque, como o acesso a esta na história da urbanização do Brasil foi restrito, quem detém a propriedade presumem-se cercados de algum modo de meios de capacidade para adquiri-la.


A propriedade urbana é sinônimo também de ostentação, haja vista o modelo de urbanização no Brasil foi cercado de grande especulação fundiária, posto que, como haviam grandes espaços vazios estes espaços não eram fragmentados, permanecendo como grandes áreas sem destinação econômica. Aos poucos que detinham esta riqueza ostentavam para uma grande maioria que era reduzida a espaços impróprios para moradia como áreas de manguezais e áreas de bastante declividade.


UMA REFLEXÃO SOBRE A PROPRIEDADE URBANA NO BRASIL.


A evolução histórica da propriedade urbana no Brasil teve grandes transformações no decorrer do processo de urbanização. Durante este processo houve momentos onde não havia focos de urbanização, mas, nos dizeres de Milton Santos[3]: “a ‘cidade’ era bem mais uma emanação de poder longínquo, uma vontade de marcar presença num país distante”. Há em outros momentos intensa urbanização com êxodo da população rural.


A propriedade, também, compreendida como coisa individual sempre foi concebida como critério de riqueza e ostentação daqueles que a detinha. Há três critérios segundo Orlando Gomes[4] para conceituar a propriedade:


“O sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente, é de se defini-lo com Windscheid, como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Descritivamente, o direito complexo, absoluto perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei.”


O processo de colonização do Brasil foi cercado por restrições ao direito à propriedade. Só pessoas agraciadas pelo rei podiam através das doações terem o direito sobre a propriedade. O regime desta época era denominado sesmarias, sistema legal adotado por Portugal para distribuição das terras no Brasil. Neste modelo que só beneficiava a poucos na grande maioria ou sua integralidade nobres portugueses desprestigiava a ampla maioria da população brasileira formada por escravos vindos do continente africano.


O interesse de Portugal no Brasil revela que a propriedade tinha um interesse voltado ao modo de produção econômico e não social. Ou seja, a intenção da metrópole era transformar o Brasil em um grande latifúndio monocultor, posto que, estava afastada a idéia de ser o Brasil um país de povoamento.


Esta afirmação coaduna com os estudos de Raymundo Laranjeira[5] sobre o tema, no qual assevera:


“De fato, a legislação avulsa, margeante das Ordenações, deixa transparecer vivamente que só a função econômica da terra colonial interessaria à Coroa, ávida de melhores rendimentos sobre nossas culturas. Por isso mesmo, quando mais importasse a Portugal a proliferação de grandes latifúndios – pois enormes tratos de terra sesmariada eram compatíveis com a lavoura canavieira do litoral e a pecuária extensiva dos sertões – daí se fez tábua rasa das normas legais existentes, sobremaneira as relativas à delimitação de cada sesmaria e as referentes às concessões de mais de uma data.”


Durante muito tempo este modelo de exploração colonial foi utilizado no Brasil evitando o crescimento de um número maior de proprietários. A concentração da propriedade em um número restrito de pessoas impediu o processo de urbanização no Brasil. As cidades não passavam de meras vielas de casas sem infra-estrutura. O conceito, portanto, impróprio para que se possa ser considerado como cidade. Os estudos de Milton Santos[6] revelam:


“O Brasil foi, durante muitos séculos, um grande arquipélago, formado por espaços que evoluíam segundo lógicas próprias, ditadas em grande parte por suas relações com o mundo exterior. Havia, sem dúvida, para cada um desses subespaços, pólos dinâmicos internos.”


Como se vê a urbanização no Brasil teve suas peculiaridades, a forma introdutória deste processo foi iniciada com a construção de vilas e cidades como ponto de organização político-administrativa das capitanias, evolui a partir do século XVIII com a fixação do senhorio que alterna períodos de plantio e safra na propriedade rural e no restante do ano na cidade.


Em um ponto da história brasileira a privatização do solo urbano é registrada pela mudança dos destinos da população que passa a migrar da zona rural para a zona urbana. O processo de privatização do solo urbano é cercado de grandes distorções, por causa do sistemas latifundiário monocultor a população era praticamente rural, com a migração ocorrida no século XX devido a industrialização brasileira a dinâmica geografica do Brasil começou a ser mudada.


Sem uma política de moradia adequada os vazios urbanos provocaram uma exclusão de grande parte de pessoas do direito a propriedade. Isto ocorreu por que grandes extensões de terras sem nenhuma destinação sofriam especulação, de outro lado, a especulação se consubstanciou por que grandes extensões de terras não tinham nehnuma destinação. Durante muito tempo a propriedade no Brasil serviu de instrumento de dominação nas mãos de poucos abastados.


O produto da exclusão social somado a migração para as zonas urbanas, produziram o que se denominam hoje de “favelas”. As favelas cresceram no Brasil, haja vista o número crescente de pessoas nas zonas urbanas vindas da zona rural, consequência de uma política ausente de planejamento urbano, outro ponto crucial que contribuiu para sua formação foi a especulação fundiária.


As “favelas” construções habitacionais precárias são compostas por um grande contingente de pessoas na maioria radicada da população negra ausente de recursos necessários para adquirirem uma propriedade em um local apropriado. A libertação dos escravos não veio com esta política urbana de inclusão sendo assim, renegados aos poucos espaços que sobravam como morros, mangues e beira de rios. Este é o mapa geográfico da constução civil de grandes cidades brasileiras como Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.


Esta paissagem de exclusão e concentração fundiária não foram impedimentos para o crescimento da urbanização. O movimento urbano se tornou intenso com o crescimento econômico e industrial do país. Segundo Ermínia Maricato[7]:


“Enquanto o crescimento econômico se manteve acelerado o modelo “funcionou” criando uma nova classe média, urbana mas mantendo grandes contingentes sem acesso a direitos sociais e civis básicos: legislação trabalhista, previdência social, moradia e saneamento, entre outros. A recessão que se seguiu nos anos 80 e 90, quando as taxas de crescimento demográfico superaram as do crescimento do PIB, fazendo com que a evolução do PIB per capita fosse negativa na década de 1980, trouxe um forte impacto social e ambiental ampliando o universo da desigualdade social.”


Conflitos decorrentes do descompasso da urbanização no Brasil fizeram surgir o direito a ocupação como método flexível do conceito de propriedade. Nestas duas décadas (anos 80 e 90) ocorreu no Brasil o que a geografia denomina de conurbação, é a unificação da malha urbana de duas ou mais cidades, em consequência de seu crescimento geográfico (LAROUSSE CULTURAL, São Paulo, 1998). O modelo de propriedade associado a esta demanda crescencente populacional nas cidades teve que ser modificado não se poderia enxergar a propriedade como direito absoluto, assim, uma grande contribuição para mudança de postura da propriedade no Brasil se deu com a Carta Magna de 1988. Grandes debates se processaram em torno deste tema culminando no artigo 182 da Constituição Federal. Asssim, está posto o artigo 182 da Constituição Federal de 1988: A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.


Passou a partir deste fundamento a pensar a propriedade não mais de forma absoluta, mas atribuir-la uma função social. O direito de propriedade se juntou a  contornos mais flexíveis, sendo repensado como direito de cunho social. Esta análise possibilita dizer que um número maior de indivíduos poderá ter acesso à propriedade urbana.


A propriedade pelo menos nos aspecto do dever ser, direito positivo é vista como garantia do bem-estar social. No entanto, este modelo de propriedade passado de absoluto para flexível, ainda precário no Brasil mais que teve grandes avanços com programas governamentais como “Minha casa Minha vida”, ainda assim não é suficiente para combater grandes conflitos fundiários o que ainda leva a população mais pobre a migrar dos centros das cidades para suas periferias.


Esta migração interna muito comum com o crescimento das grandes cidades devido a um processo denominado de “marginalização” constitui na expulsão da população mais carente das áreas de melhor infraestrutura dos centros urbanos. Estas pessoas que foram penalizadas por não terem condições de arcar com a valorização dos imóveis, outrossim, pela pressão das grandes incorporadoras que vêem nestas áreas grandes perspectivas de lucro se restringiram em espaços distantes de infra-estrutura e trabalho. A consequência deste processo de “marginalização” resultou no aumento das desigualdades sociais e consequentemente da pobreza.


Os espaços vão sendo privatizados por poucos, e os poucos locais que sobram são disputados por um número cada vez maior de pessoas. Aliado a isto a junção com outros fatores como segurança e educação fez da cidade um espaço contraditório e conflituoso.


A proposta de um novo modelo de urbanização revela a necessidade de uma nova interpretação do modelo tributário municipal. A propriedade como instrumento de riqueza não pode ser concebido como direito absoluto. As limitações que a propriedade deve sofrer não devem está apenas limitada ao critério social, mas também, ao critério econômico.


A POLÍTICA DO IPTU COMO POLÍTICA DE INCLUSÃO SOCIAL


Uma política fiscal em que promova mudança deste paradigma deve ser adotada. Não se tolera mais uma concepção de propriedade vista deste modo: instrumento de riqueza e ostentação. A visão de propriedade deve ser modificada, o acesso a esta deve ser dinamizado, possibilitando que um número maior de pessoas possa viver dignamente.


Para isto, não só a criação de políticas públicas voltadas ao crescimento das construções polulares é importante, mas uma política fiscal é necessária. A progressividade do IPTU, não só a progressividade no tempo mas a progressividade fiscal que é duramente combatida por uma parcela da doutrina que estuda o tema deve ser utilizada como método de inclusão social. O gestor municipal deve está atento ao fato de que, quem mais precisa do direito a propriedade não detêm recursos financeiros para morar em áreas que promovem melhores condições de cidadania.


A política fiscal do IPTU progressivo no espaço tem seu objetivo voltado a capacidade de contribuir de cada sujeito passivo no IPTU. A progressividade neste caso como meio de função social do tributo está voltada a criação de uma tabela de alíquotas que diminua as distorções que existem em uma tabela fixa.


A política fiscal de progressão do imposto conforme o valor do imóvel, seu uso ou local permite a Administração municipal ter uma tabela de imposto compatível com as habitações do meio urbano. Conforme, a verificação da riqueza de cada contribuinte é feito uma tabela progressiva, de forma que, cada faixa de sujeitos, estabelecido em uma progressão graduada, seja disposta a pagar determinado valor de alíquota.


O imposto justo, é o imposto que atende as necessidades do meio urbano sem ferir na capacidade de contribuir do contribuinte. A política a ser utilizada está fundada em manter alíquotas progressivas, de forma que conduza ao crescimento da cidade favorecendo as habitações populares. O motivo é evidente, quem necessita mais dos serviços públicos são as pessoas com menor poder aquisitivo. Para estas, morar em um lugar distante dos centros urbanos significa um maior custo em transporte e um tempo maior em deslocamento. Um custo elevado decorrente da distância entre o local de moradia e o trabalho acarreta em um gasto maior com deslocamento, este gasto poderia ser evitado se estas habitações fossem em locais mais próximos dos centros urbanos.


Por outro lado, um custo menor em transporte significa uma renda maior, mais qualidade de vida, ou seja, mais justiça social. A política fiscal deve ser voltada à cidadania, a colocação de mais pessoas em um patamar de qualidade de vida condizente com os fundamentos constitucionais.


Se há esta oportunidade, por que não utilizá-la?  A Constituição quando trata da capacidade contributiva revela que ao contabilizar o valor do imposto devem ser utilizados critérios individuais. Posto que, um dos critérios para se auferir o patrimônio de um indivíduo é a riqueza. O quantum cada pessoa tem para se verificar o valor para base de cálculo o imposto.


Destarte, cumpre a função social o Administrador municipal que vê na progressividade fiscal um instrumento de transformação da geografia urbana da cidade, promovendo a construção de um número maior de habitações populares próximos aos centros urbanos.


A propriedade urbana, portanto, deve ser projetada com uma política de expansão no seu acesso, deve também, ser privilegiada quando esta propriedade trata-se de uma habitação popular. Este entendimento harmoniza-se não só com o princípio da isonomia, mas também, respeita os princípios fundamentais do direito ao acesso a moradia.


 


Referências bibliográficas:

GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

LARANJEIRA, Raymundo. Propedêutica do Direito Agrário. São Paulo: LTR, 1975.

MARICATO, Ermínia. Brasil, Cidades, alternativas para a crise urbana. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.

SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. 3 ed. São Paulo: Hucitec Editora, 1996.


Notas:

[1] A frase “Brasil legal, Brasil real”, foi retirada do notável Ariano Suassuna, em suas intervenções sobre a política brasileira, este grande escritor brasileiro retrata a dicotomia que existe entre as duas realidades do Brasil, o país das grandes codificações e o país dos problemas sociais sem solução.

[2] Ibidem p. 96.

[3] SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. 3 ed. São Paulo: Hucitec Editora, 1996. p. 17

[4] GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

[5] LARANJEIRA, Raymundo. Propedêutica do Direito Agrário. São Paulo: LTR, 1975. p. 7 à 9.

[6] Ibidem p. 26.

[7] MARICATO, Ermínia. Brasil, Cidades, alternativas para a crise urbana. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 21.

Informações Sobre o Autor

Ulisses Gomes Araujo

Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, Pós-graduando em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera-Uniderp – LFG


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Equipe Âmbito Jurídico

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