Direito Penal

Considerações Sobre a Teoria do Direito Penal do Inimigo

Cláudio Leite Clementino[1]

Resumo: O presente artigo tem como finalidade analisar a teoria do Direito Penal do inimigo desenvolvida pelo penalista alemão Günther Jakobs. Para tanto, será abordado o surgimento da tese no contexto da sociedade mundial do risco e da expansão do Direito Penal. Na sequência, serão examinadas as características essenciais do Direito Penal do inimigo, para, por fim, tratar das principais críticas direcionadas à teoria Jakobsiana.

Palavras – chave: Direito Penal do inimigo. expansão do Direito Penal. Características. críticas.

 

Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar La teoria Del derecho penal Del enemigo desarrollada por el penalista alemán Gonther Jakobs. Con este fin, se abordará El surgimiento de La tesis en el contexto de La sociedad mundial de riesgo y La expansión Del derecho penal. A continuación, se examinarán las características esenciales de La Ley Penal Del enemigo para abordar lãs principales críticas dirigidas a La teoria jakobsiana.

Palabras Clave: Derecho penal Del enemigo. La expansión Del Derecho Penal. Características. crítica.

 

Sumário: Introdução. 1. Expansão do Direito Penal e surgimento do Direito Penal do inimigo. 2. Características fundamentais do Direito Penal do inimigo. 3. Principais características do Direito Penal do inimigo. Conclusão. Referências.

 

Introdução

A teoria do Direito Penal do inimigo, construída pelo jurista alemão Günther Jakobs, surgiu de maneira gradativa, tendo sua origem umbilicalmente atrelada à sociedade do risco e à expansão do Direito Penal.

Além da gênese da tese, proceder-se-á ao estudo do seu pressuposto basilar, qual seja: a divisão do Direito em dois polos antagônicos – o Direito Penal do cidadão e o Direito Penal do inimigo. O primeiro seria aplicado a cidadãos (pessoas) e o segundo a inimigos (indivíduos despidos de personalidade, submetidos a um processo de coisificação).

Ademais, realizar-se-à um breve estudo relativo às características fundamentais da tese Jakobsiana, a saber: exagerada antecipação da tutela penal, por meio da criação de delitos de perigo abstrato e da tipificação de atos preparatórios; mitigação e/ou supressão de garantias penais e processuais penais, como os princípios da legalidade, da lesividade, da proporcionalidade, do devido processo legal, da proscrição de utilização de provas ilícitas etc; e desproporcionalidade das sanções penais.

Por último, adentraremos no campo das críticas mais relevantes dirigidas ao Direito Penal do inimigo.

 

1.       Expansão do direito penal e surgimento do direito penal do inimigo

A teoria do Direito Penal do inimigo é o mais importante dos movimentos de expansão do Direito Penal imanentes à sociedade mundial do risco.

Os riscos sociais sempre existiram, não sendo, pois, produtos exclusivos da sociedade pós-industrial. O que a modernidade reflexiva fez, na verdade, foi incrementá-los de uma maneira nunca antes vista, fundamentalmente, após o advento da Revolução Industrial, do consequente desenvolvimento científico e tecnológico e da globalização da economia, da política e dos meios de comunicação.

A título ilustrativo podem ser considerados perigos típicos da sociedade pós-moderna a manipulação genética, nuclear e química, a poluição ambiental em larga escala, as crises migratórias, o avanço crescente do crime organizado, da lavagem de dinheiro e do terrorismo, dentre outros.

Como bem explica Pierpaolo Cruz Bottini, os riscos atuais transformaram-se no cerne da sociedade contemporânea[2]:

“Em primeiro lugar, é necessário destacar o papel assumido pelo risco na sociedade contemporânea. O risco deixa de ser um dado periférico da organização social para transmutar-se em conceito nuclear, relacionado à própria atividade humana. Se antes se referia a perigos externos e não podia ser gerido por regulamentos ou normas direcionadas ao comportamento humano, porque este não era agente ativo em sua produção, no modelo social atual, é criado pela própria organização coletiva, ou seja, tem procedência humana. Não é mais somente a natureza que, com seus sobressaltos, coloca em crise bens fundamentais, mas também a atividade humana que, com o aprimoramento de técnicas industriais, ameaça os interesses mais caros à vida social. O que era externo passa a ser também interno, passa a integrar o núcleo de desenvolvimento da sociedade. O risco, assim, torna-se um referencial político. Se a periculosidade decorre do comportamento humano, significa que pode ser controlada por medidas de restrição, por mecanismos de gestão de risco. Mais do que um objeto de análise, o risco e os mecanismos para controlá-lo passam a refletir as opções da sociedade em relação ao grau de tolerância destas atividades.”

Nesse panorama, a ampliação dos riscos acaba dando vazão à criação dos mais variados tipos de medos, gerando, por conseguinte, uma intranquilidade na coletividade que nem sempre se justifica. Nos dizeres de Zygmunt Bauman:

“Além disso, há muito mais infortúnios sendo proclamados iminentes do que aqueles que acabam realmente ocorrendo, de modo que sempre podemos esperar que este ou aquele desastre recentemente anunciado acabe nos ignorando. Que computador foi danificado pelo sinistro “bug do milênio”? Quantas pessoas você conhece que foram vítimas dos ácaros de tapete? Quantos amigos seus morreram da doença da vaca louca? Quantos conhecidos ficaram doentes ou inválidos por causa de alimentos geneticamente modificados? Qual de seus vizinhos e conhecidos foi atacado e mutilado pelas traiçoeiras e sinistras pessoas em busca de asilo? Os pânicos vêm e vão, e embora possam ser assustadores, é seguro presumir que terão o mesmo destino de todos os outros[3].”

Em virtude do aumento da sensação de insegurança, a coletividade e seus representantes, de maneira irracional[4], elegem o Direito Penal como único remédio capaz de por fim às mazelas hodiernas, ou seja, a população amedrontada clama pela intervenção do Direito Penal como forma de enfrentar os novos riscos.

Dissertando sobre a demanda social por segurança, através da ingerência penal, Alexandre Rocha Almeida de Moraes aduz que o:

“Contrabando organizado de armas de guerra, participação de policiais nos crimes mais horrorosos, guetização dos ricos, privatização dos serviços de segurança e conflito violento entre policiais, delinquentes e vítimas: ainda que a sensação de insegurança coletiva às vezes não tenha razão de ser, a segurança pública se converteu em pretensão social legítima e, desta forma, a sociedade exige que o Estado, e, em particular o Direito Penal, ofereça uma resposta[5].”

Assim, é nesse campo que se manifesta a denominada expansão do Direito Penal, isto é, o movimento político-criminal incorporador dos caracteres próprios da sociedade do risco.

A expansão do Direito Penal é uma tendência político-criminal, surgida nas duas últimas décadas do século XX, caracterizando-se precipuamente pela hipertrofia da legislação penal, pela criação e tutela de bens jurídicos supraindividuais, pela antecipação da punibilidade decorrente da punição de atos preparatórios e da tipificação de delitos de perigo abstrato e de mera conduta, assim como pela flexibilização das garantias penais e processuais delimitadoras de um Direito Penal liberal e, também, por meio da valorização do direito penal do autor e da cominação de penas desproporcionais.

Os fenômenos de expansão do ordenamento penal recebem variadas designações, como Direito Penal do risco, Direito Penal de emergência, Direito Penal simbólico, Direito Penal do inimigo etc.

O Direito Penal do inimigo, considerado o principal movimento de extensão penal da atualidade, será o objeto de estudo do presente artigo.

Manuel Cancio Meliá entende ser a tese do Direito Penal do inimigo um produto da aliança entre o Direito Penal simbólico e o Direito Penal punitivista[6].

O Direito Penal simbólico pode ser definido como a corrente neocriminalizadora na qual o legislador tipifica determinadas condutas sem nenhum fundamento criminológico e/ou de política criminal, a fim de responder celeremente aos anseios e inseguranças da sociedade. O resultado, como não poderia ser outro, é a criação de um Direito Penal ilusório.

No que concerne ao punitivismo desenfreado intrínseco à política criminal contemporânea, pode-se dizer que consiste na criação acelerada e, por vezes, desvairada de ilícitos penais, bem como no enrijecimento das penas de delitos já existentes.

Unidos os “fenômenos generantes”, nasce o “filho” ilustre, que será analisado a seguir.

A Teoria do Direito Penal do inimigo, idealizada pelo penalista Günther Jakobs, foi elaborada de modo gradual.

Tal tese foi exposta pela primeira vez, em 1985, durante uma palestra proferida em Frankfurt, momento em que Jakobs realiza uma crítica ao Direito Penal alemão e sua política criminal voltada à criminalização de âmbito prévio e à transformação de cidadãos em inimigos. Nesta ocasião, Jakobs sustenta ser o Direito Penal do inimigo legítimo apenas em conjunturas excepcionais.

Em um segundo instante, em 1999, o autor alemão, em uma Conferência em Berlim, descreve as principais características do Direito Penal do inimigo, constatando a inevitabilidade de sua difusão ao mundo todo. Esta postura descritiva de Jakobs revela uma aceitação parcial da sua doutrina.

Por último, em 2004, influenciado pelas consequências nefastas oriundas dos atentados terroristas perpetrados contra os Estados Unidos da América, Reino Unido e Espanha (e que acarretaram a legitimação social de sua tese), Jakobs passa a defender a sua teoria não apenas em situações raras, que ponham em risco à sobrevivência da sociedade, mas entende ser a única alternativa eficaz no combate à criminalidade difusa praticada atualmente, da qual o terrorismo é o exemplo mais marcante e assustador.

Para formular a Teoria do Direito Penal do inimigo, Jakobs buscou arrimo nas ideias dos filósofos contratualistas Rousseau, Fichte, Kant e Hobbes, defendendo que o indivíduo violador contumaz do contrato social não deve ser considerado pessoa, mas inimigo do Estado, perdendo seus direitos essenciais.

Vale atentar, porém, que apesar da relevância das ideias de Rousseau e Fichte para a construção de sua tese, Jakobs prefere não segui-las, por considerá-las excessivamente abstratas. São as suas palavras: “Não quero seguir a concepção de Rousseau e de Fichte, pois na separação radical entre o cidadão e seu Direito, por um lado, e o injusto do inimigo, por outro, é demasiadamente abstrata”[7].

Jakobs optou por dar primazia às concepções compostas por Hobbes e Kant. Segundo o sociólogo alemão:

“Como acaba de citar-se, na posição de Kant não se trata como pessoa quem me ameaça… constantemente, quem não se deixa obrigar a entrar em um estado cidadão. De maneira similar, Hobbes despersonaliza o réu de alta traição: pois também este nega, por princípio, a constituição existente. Por conseguinte, Hobbes e Kant conhecem um Direito penal do cidadão – contra pessoas que não delinquem de modo persistente por princípio – e um Direito Penal do inimigo contra quem se desvia por princípio. Este exclui e aquele deixa incólume o status de pessoa. O Direito Penal do cidadão é Direito também no que se refere ao criminoso. Este segue sendo pessoa. Mas o Direito Penal do inimigo é Direito em outro sentido[8].”

Vê-se, portanto, que a teoria elaborada por Günther Jakobs tem como pressuposto basilar a divisão do Direito Penal em dois: um Direito Penal do cidadão e um Direito Penal do inimigo.

O Direito Penal do cidadão ou da normalidade regula o cometimento de infrações por parte dos cidadãos, isto é, aqueles indivíduos que são fiéis ao Direito, que delinquiram de forma esporádica e, mesmo após a prática da conduta criminosa, podem assegurar que atuarão com lealdade ao ordenamento jurídico.

Conforme esclarece Jakobs: […] “só é pessoa quem oferece uma garantia cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, e isso como consequência da ideia de que toda normatividade necessita de uma cimentação cognitiva para poder ser real”[9].

Logo, o Direito Penal do cidadão deve ser aplicado apenas a pessoas, observando-se assim todos os direitos e garantias fundamentais encartados nas Constituições e na legislação infraconstitucional.

De outra banda, o Direito Penal do inimigo cuida dos indivíduos que cometem crimes de modo reiterado, demonstrando desprezo ao Direito e não oferecendo com seu comportamento uma expectativa mínima de segurança cognitiva, de fidelidade à norma. Assim, não podem ser considerados pessoas e sim inimigos do Estado.

De acordo com a lição de Jakobs:

“Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas. Portanto, seria completamente errôneo demonizar aquilo que aqui se tem denominado Direito Penal do inimigo[10].”

Jakobs, de maneira exemplificativa, reputa inimigos os terroristas, os integrantes da delinquência organizada (criminalidade econômica, tráfico de drogas), como também os praticantes de crimes sexuais e outros mais graves[11].A estes indivíduos é que deve ser aplicado um Direito Penal do inimigo, flexibilizador e/ou supressor de diversas garantias penais e processuais inerentes a um Direito Penal liberal e garantista.

De modo resumido, Jakobs apresenta as diferenças fundamentais existentes entre o Direito Penal da normalidade e o Direito penal do inimigo. Para ele: […]“O Direito Penal do cidadão é o Direito de todos, o Direito Penal do inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra”[12]. E conclui o professor da Universidade de Bonn: “O Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito Penal do inimigo (em sentido amplo: incluindo o Direito das medidas de segurança) combate perigos; com toda certeza existem múltiplas formas intermediárias”[13].

O penalista alemão assinala, ainda, a necessidade de apartar precisamente o Direito Penal regular do Direito Penal do inimigo, para que não ocorra a contaminação do primeiro por este último e se garanta, em última análise, a manutenção de um Estado Democrático de Direito.

Consoante preleciona Jakobs: “Um Direito Penal do inimigo, claramente delimitado, é menos perigoso, desde a perspectiva do Estado de Direito, que entrelaçar todo o Direito Penal com fragmentos de regulações próprias do Direito Penal do inimigo[14].

Reforçando essa posição, Alexandre Rocha Almeida de Moraes relata:

“Outrossim, é inegável que grande parte do Direito Penal da normalidade (‘Direito Penal do Cidadão’) vem sendo contaminado e entrelaçado com regras típicas do modelo de ‘Direito Penal do Inimigo’. Sem uma clara delimitação, os excessos e a falta de razoabilidade nas medidas adotadas vêm colocando em risco o próprio conceito de Estado Democrático de Direito. Assim, afinar o discurso para legitimar racional e excepcionalmente uma política criminal diferente ao ‘inimigo’, dificultaria a criminalização sorrateira e às ocultas, como tem ocorrido e como fatalmente continuará ocorrendo e, de outra parte, fomentaria a busca de uma alternativa ao superado modelo penal-clássico, com a fixação de limites para o desenvolvimento de tendências autoritárias[15].”

Para encerrar, é imperioso frisar que Günther Jakobs, baseando-se na repartição do Direito Penal em dois polos opostos – Direito Penal do cidadão e Direito Penal do inimigo -, diferencia a sanção cabível ao cidadão (pena como contradição) e ao inimigo (pena como segurança).

Ao cidadão, mantenedor do status de pessoa, será aplicada uma pena, com o escopo primordial de asseguramento das expectativas normativas e como efeito da configuração social (teoria da prevenção geral positiva).

Para Jakobs, a reprimenda criminal imposta ao cidadão tem a função de reafirmar a vigência da norma ao contradizer a negação do sistema jurídico levada a cabo pelo cometimento do delito. Assim, a negação (realizada pela pena) da negação da vigência normativa (procedida pelo cidadão infrator) confirmaria a vigência do ordenamento e a integridade da estrutura da sociedade.

Na visão de Jakobs:

“A pena é coação; é coação – aqui só será abordada de maneira setorial – de diversas classes, mescladas em íntima combinação. Em primeiro lugar, a coação é portadora de um significado, portadora da resposta ao fato: o fato, como ato de uma pessoa racional, significa algo, significa uma desautorização da norma, um ataque a sua vigência, e a pena também significa algo; significa que a afirmação do autor é irrelevante, e que a norma segue vigente sem modificações, mantendo-se, portanto, a configuração da sociedade[16].”

 

Noutro polo, a sanção aplicada ao inimigo assume um viés preponderantemente preventivo, já que a custódia de segurança, entendida, por Jakobs, como um tipo de medida de segurança, tem como suporte a perigosidade, confirmando a estabilização das expectativas normativas ao prevenir fisicamente a negação da vigência da norma efetuada pelo cometimento de uma infração penal.

É o que se extrai dos ensinamentos do professor da Universidade de Bonn:

”Nesta medida, a coação não pretende significar nada, mas quer ser efetiva, isto é, que não se dirige contra a pessoa em Direito, mas contra o indivíduo perigoso. Isso talvez se perceba, com especial clareza, quando se passa do efeito de segurança da pena privativa de liberdade à custódia de segurança, enquanto medida de segurança (§ 61 núm. 3, § 66 StGB): nesse caso, a perspectiva não só contempla retrospectivamente o fato passado que deve ser submetido a juízo, mas também se dirige – e sobretudo – para frente, ao futuro, no qual uma tendência a [cometer] fatos delitivos de considerável gravidade poderia ter efeitos perigosos para a generalidade (§ 66, parágrafo 1º, núm. 3 StGB[17].”

 

2.       Características fundamentais do direito penal do inimigo

As principais características da teoria do Direito Penal do inimigo são as seguintes: a) flexibilização e/ou extinção de garantias penais e processuais; b) antecipação da tutela penal, mediante a criminalização de atos preparatórios e a produção de delitos de perigo abstrato; e c) desproporcionalidade das sanções penais.

Compartilhando desse posicionamento, Meliá indica os caracteres essenciais do Direito Penal do inimigo, em conformidade com a lição de Günther Jakobs. São as palavras do jurista espanhol:

“Segundo Jakobs, o Direito Penal do inimigo se caracteriza por três elementos: em primeiro lugar, constata-se um amplo adiantamento da punibilidade, isto é, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), no lugar de – como é o habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionalmente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é considerada para reduzir, correspondentemente, a pena cominada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou inclusive suprimidas[18].”

O primeiro atributo da tese Jakobsiana é a mitigação e/ou eliminação de garantias penais e processais penais.

As garantias penais limitadoras do jus puniendi estatal, a exemplo dos princípios da legalidade penal, da intervenção mínima, da ofensividade, da exteriorização do fato, da culpabilidade, da proporcionalidade, são afrontadas visivelmente, pondo em risco, inclusive, a manutenção do Estado Democrático de Direito.

São violações corriqueiras filiadas ao Direito Penal do inimigo: a definição vaga, ampla e imprecisa dos tipos legais de crime, desrespeitando a taxatividade e, por via de consequência, a legalidade penal; a migração do juízo de culpabilidade para o de periculosidade, derivada da dicotomia criada entre pessoas culpáveis e inimigos perigosos (infração ao postulado da culpabilidade) e o enaltecimento de um Direito Penal do autor, já que se pune alguém por ser um inimigo com potencial perigosidade, em detrimento do Direito Penal do fato, inobservando o princípio da materialização do fato.

De igual modo, várias garantias processuais penais, como os postulados do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência, da proibição de provas obtidas por meios ilegais, sofrem relativização e/ou supressão.

À guisa de exemplo, podem ser citadas a legitimação da tortura, em situações excepcionais, com o fito de angariar provas para embasar uma condenação penal, profanando a garantia de proscrição de obtenção de provas ilícitas; a detenção administrativa por período indeterminado e a incomunicabilidade do preso, que maculam o princípio da ampla defesa do acusado, entre outras.

Jakobs ilustra algumas medidas alinhadas ao processo penal do inimigo extintor de direitos e garantias individuais:

“De outra banda, frente a esse lado pessoal, de sujeito processual, aparece em múltiplas formas uma clara coação, sobretudo na prisão preventiva (§§ 112, 112 a StPO); do mesmo modo que a custódia de segurança, a prisão preventiva também nada significa para o imputado, mas frente a ele se esgota numa coação física. Isso não porque o imputado deve assistir ao processo – também participa no processo uma pessoa imputada, e por convicção -, mas porque é obrigado a isso mediante seu encarceramento. Esta coação não se dirige contra a pessoa em Direito – esta nem oculta provas nem foge -, mas contra o indivíduo, quem com seus instintos e medos põe em perigo a tramitação ordenada do processo, isto é, se conduz, nessa medida, como inimigo.   A situação é idêntica a respeito de qualquer coação a uma intervenção, por exemplo, a uma retirada de sangue (§ 81 a StPO), assim como a respeito daquelas medidas de supervisão das quais o imputado nada sabe no momento de sua execução porque as medidas só funcionam enquanto o imputado não as conheça. Neste sentido, há que mencionar a intervenção nas telecomunicações (§ 100 a StPO), outras investigações secretas (§ 100 c StPO), e a intervenção de agentes infiltrados (§ 110 a StPO). Como no Direito Penal do inimigo substantivo, também neste âmbito o que ocorre é que estas medidas não têm lugar fora do Direito; porém, os imputados, na medida em que se intervém em seu âmbito, são excluídos de seu direito: o Estado elimina direitos de modo juridicamente ordenado[19].”

Outra característica marcante da teoria do Direito Penal do inimigo é a criminalização de âmbito prévio, consistente no adiantamento dos limites punitivos, isto é, o Direito Penal antecipa exageradamente a sua tutela, para evitar a ocorrência de lesão a um bem jurídico vulnerável aos riscos sociais oriundos da sociedade pós-moderna (bem jurídico supraindividual).

A criminalização de estágio prévio se manifesta, precipuamente, por meio da tipificação de atos preparatórios e da elaboração de ilícitos penais de perigo abstrato.

A preparação é a etapa do iter criminis que liga a cogitatio à execução, vale dizer, é a fase na qual o agente providencia todos os meios necessários para cometer o crime, sem, todavia, iniciar a prática de atos executórios. Via de regra, é impunível. Porém, excepcionalmente, devido à relevância do bem jurídico, pode haver a punição dos atos preparatórios de maneira autônoma, caso o legislador assim queira.

Acontece que o que antes era exceção vem se tornando a regra, ocorrendo uma tipificação alucinada da preparação, a fim de tentar combater o terrorismo e outros delitos graves típicos da sociedade pós-industrial. O resultado imediato é a afronta ao princípio da ofensividade (nullanecessitatissine injuria), uma vez que os atos preparatórios são, na sua esmagadora maioria, inofensivos, incapazes de provocar uma lesão ou efetivo perigo à integridade do bem jurídico tutelado pela norma criminal.

Nesse mesmo sentido é a lição proferida por Luiz Flávio Gomes:

“A incriminação dos atos preparatórios, desse modo, na medida em que constitui uma forma extremada de adiantamento da “linha de defesa” de bens jurídicos a momentos anteriores ao da tentativa (anteriores ao início da execução do crime), suscita, consequentemente, graves problemas de legitimação, particularmente devido ao potencial de conflitividade com princípios considerados fundamentais para o atual (e constitucionalista) Direito penal (ofensividade, proporcionalidade, culpabilidade etc.)[20].”

A segunda hipótese em que há o adiantamento das barreiras de punição se dá com a confecção dos crimes de perigo abstrato, que restam configurados com a simples prática de uma conduta, ainda que não tenha ocorrido nenhum risco concreto de dano ao bem jurídico.

Em outras palavras, os delitos de perigo abstrato são aqueles que se fundamentam exclusivamente no desvalor da conduta, ignorando a desvalia do resultado. Pune-se, então, um comportamento respaldado pela mera ação ou omissão, não interessando a geração de um dano ou ao menos um perigo real de dano ao bem jurídico-penal protegido. Diz-se, então, que o resultado lesivo é absolutamente presumido.

De acordo com Bottini:

“O tipo de perigo abstrato é a técnica utilizada pelo legislador para atribuir a qualidade de crime a determinadas condutas, independentemente da produção de um resultado externo. Trata-se de prescrição normativa cuja completude se restringe à ação, ao comportamento descrito no tipo, sem nenhuma referência aos efeitos exteriores do ato, ao contrário do que ocorre com os delitos de lesão ou de perigo concreto[21].”

No que concerne à demasiada antecipação da proteção penal, é importante acrescentar sua contribuição para o renascimento de um Direito Penal do autor, posto que, à medida que a lesão ou ameaça concreta de lesão a um bem jurídico-penal deixa de ser o parâmetro primeiro para a tipificação de uma conduta e sua devida punição, entende-se perfeitamente possível a incriminação embasada em estilos de vida ou até em pensamentos do autor, violando, assim, o princípio da exteriorização do fato.

O último atributo do Direito Penal do inimigo é a previsão de sanções penais elevadas e desproporcionais, cujo propósito essencial é a intimidação e/ou neutralização do inimigo visto como fonte de perigos à coletividade.

Faz coro a essa posição Jakobs, que esclarece:

“Desde um ponto de vista prático, o mais relevante será o asseguramento frente ao autor, através de uma custódia de segurança identificada como tal, mediante uma pena privativa de liberdade que garanta o asseguramento, quer dizer, que seja correspondentemente extensa. Este último – junto com a intimidação tout court – é uma das razões das elevadas penas que se colocam contra a fundação de uma associação terrorista. Essas penas não podem ser explicadas através daquilo que tenha acontecido – se afetou a segurança pública, porém até o momento não gerou de fato uma lesão -, mas com base somente no perigo existente[22].”

Destarte, neste cenário punitivista, aumentam-se em demasia as penas de crimes já existentes, criam-se novos tipos legais com sanções draconianas, não havendo sequer a diminuição proporcional do quantum da pena em abstrato quando da criminalização de atos preparatórios e de delitos de perigo abstrato.

Francisco Muñoz Conde exemplifica a exacerbação atual das reprimendas criminais ao demonstrar a situação do seu país:

“Um regime de extrema dureza é a pena de prisão na Espanha, que chega a prescindir da pena de morte, pois sua duração pode estender-se até quarenta anos, sem possibilidades de redução ou concessão da liberdade condicional, tal como estabelecem agora os arts. 78 e 90, depois da reforma de 30 de junho de 2003, que entrou em vigor no mesmo dia de sua publicação, para os delitos de terrorismo. Naturalmente, isso não impediu a ocorrência do atentado terrorista de 11 de março de 2004. Nem tampouco parece que seja esta a perspectiva que desincentive aos terroristas para que no futuro não cometam atos semelhantes[23].”

Situação semelhante ocorre no Brasil, já que, após a reforma efetuada pela Lei 13.964/19, alterou-se o artigo 75 do Código Penal para aumentar o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade de 30 para 40 anos. E, aqui, a referida ampliação no limite das penas não ficou restrita aos delitos de terrorismo, como aconteceu na Espanha, abrangendo todas as infrações penais e demonstrando uma influência gritante da tese de Jakobs no ordenamento jurídico-penal pátrio.

No Brasil, são exemplos de sanções penais severas e desproporcionais as preceituadas nos diversos artigos da Lei Antiterrorismo, como as estatuídas no art. 2º (reclusão de 12 a 30 anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência) e no art. 6º (reclusão de 15 a 30 anos).

A drasticidade das sanções penais infringe o primado da proporcionalidade, sob o prisma da proibição de excesso (übermassverbote), já que são vedadas a cominação (pelo legislador) e a aplicação (pela autoridade judicial) de penas exageradas e desnecessárias.

 

  1. Principais críticas à teoria do direito penal do inimigo

Malgrado haja inúmeras críticas dirigidas à teoria Jakobsiana, no presente trabalho far-se-á uma exposição das entendidas como principais, sem a pretensão de esgotá-las.

Uma primeira crítica direcionada ao Direito Penal do inimigo diz respeito à divisão feita por Jakobs entre cidadão e inimigo. Tal repartição fere abruptamente o princípio da dignidade da pessoa humana, visto que um indivíduo não pode ser despojado da sua personalidade (essência), sendo tachado irracionalmente de inimigo. Não há espaço para distinções descabidas e vulneradoras da personalidade humana em um ordenamento jurídico que considera a dignidade da pessoa humana o seu valor supremo, norteador de todos os outros.

E é exatamente essa a pretensão do Direito Penal de matriz jakobsiana, já que não enxerga o inimigo como sujeito de direito, mas como objeto de direito, acabando por iniciar um processo de coisificação do ser humano, que infringe violentamente o postulado estruturante da dignidade da pessoa humana.

A classificação de seres humanos em esferas antagônicas (pessoa x inimigo) transgride também o princípio da igualdade formal entre os sujeitos[24], já que concede tratamento diferenciado, aplicando a uns um Direito Penal do cidadão (respeitando-se todas as garantias penais e processuais dispostas na Constituição e na legislação infraconstitucional) e a outros um Direito Penal do inimigo, desprovido da observância dos princípios e garantias clássicos, marcadamente severo e desproporcional.

Nessa linha de pensamentos, é o escólio de Juarez Cirino dos Santos:

“A hipótese de JAKOBS sobre um tipo de autor definido como inimigo engendrou a introdução de uma juridicidade penal diferenciada, dependente de condições e de limites específicos, segundo a qual seres humanos considerados inimigos e seres humanos considerados cidadãos não são iguais perante a lei[25].”

O Direito Penal do inimigo deve, então, ser rechaçado peremptoriamente, pois que desrespeita princípios e garantias basilares do Estado Democrático de Direito, a exemplo dos postulados da dignidade da pessoa humana e da isonomia.

Deve-se ter em mente sempre que há uma relação de reciprocidade entre o Estado de Direito e os direitos e garantias fundamentais, visto que estes foram os instrumentos forjadores e limitadores daquele, enquanto que um Estado Constitucional Democrático somente pode ser reconhecido como tal se respeitar e visar à concretização das liberdades individuais do cidadão estampadas nas Cartas Constitucionais. Vislumbra-se, portanto, uma simbiose necessária entre um e outro, que não pode ser profanada em nenhuma hipótese, sob pena de destruição de ambos e retorno aos Estados autoritários, despóticos.

Seguindo esse raciocínio, Callegari e Linhares lecionam:

“Esse modelo de Direito Penal, voltado ao inimigo, possui características presentes em um verdadeiro Estado de Exceção, incompatível com o modelo de Estado de Direito. O Direito Penal do inimigo, acima de tudo, caracteriza-se pela transposição, pelo Estado, dos limites impostos a si no exercício do poder punitivo, configurando-se uma prática marcadamente excepcional da punição[26].”

Outro adepto da incompatibilidade da teoria Jakobsiana com o Estado Democrático de Direito é Francisco Muñoz Conde, que sustenta o seguinte:

“Os direitos e garantias fundamentais próprios do Estado de Direito, sobretudo as de caráter penal material (princípios de legalidade, intervenção mínima e culpabilidade) e processual penal (direito à presunção de inocência, à tutela judicial, a não fazer declarações contra si mesmo etc), são pressupostos irrenunciáveis da própria essência do Estado de Direito. Se se admite sua derrogação, ainda que seja em casos pontuais extremos e muito graves, deve-se admitir também o desmantelamento do Estado de Direito, cujo ordenamento jurídico se converte em um ordenamento puramente tecnocrático ou funcional, sem nenhuma referência a um sistema de valores ou, o que é pior, referido a qualquer sistema, ainda que injusto, sempre que seus executores tenham o poder ou a força suficiente para lhe impor[27].”

Como efeito da rotulação pessoas-cidadãos x não pessoas-inimigos realizada por Jakobs, nota-se a demonização de certos sujeitos (v.g., terroristas e integrantes de organizações criminosas) com o propósito de legitimar a sua exclusão jurídica e física.

É que, a partir do momento em que se nega o status de pessoa a um ser humano, ocorre automaticamente uma exclusão jurídica propiciadora e fundamentadora de uma eliminação física, como aconteceu durante o governo nazista, em que milhões de judeus e outros grupos foram julgados inimigos do Estado ou estranhos à comunidade, sendo exterminados sistematicamente.

Manuel Cancio Meliá, dissertando sobre o tema, preconiza:

“Em primeiro lugar: ainda sem levar a cabo um estudo de materiais científicos relativos à psicologia social, parece claro que em todos os campos importantes do Direito Penal do inimigo (cartéis da droga; criminalidade referente à imigração; outras formas de criminalidade organizada e terrorismo) o que sucede não é que se dirijam com prudência e se propaguem com frieza operações de combate, mas que se desenvolve uma cruzada contra malfeitores cruéis. Trata-se, portanto, mais de inimigos no sentido pseudorreligioso que na acepção tradicional-militar do termo. Com efeito, a identificação de um infrator como inimigo, por parte do ordenamento penal, por muito que possa parecer, a primeira vista, uma qualificação como outro, não é, na realidade, uma identificação como fonte de perigo, não supõe declará-lo um fenômeno natural a neutralizar, mas, ao contrário, é um reconhecimento de função normativa do agente mediante a atribuição de perversidade, mediante sua demonização. Que outra coisa não é Lúcifer senão um anjo caído?[28].”

Deve-se, ainda, apontar a absoluta impossibilidade de fracionar o Direito Penal em dois ramos totalmente desiguais. Seria ingênuo acreditar na convivência apartada, pura e equilibrada entre o Direito Penal da normalidade e o Direito Penal do inimigo, sem levar em consideração a possibilidade de contaminação de um por outro.

Francisco Muñoz Conde, discorrendo sobre esta inviabilidade, pondera que:

“O equilíbrio entre os dois pólos é difícil e sempre se encontram em tensão. Mas se, como acontece em momentos de crise, a balança se inclina descaradamente e sem nenhum tipo de limites, a favor da segurança cognitiva, a consequência imediata será a paz, porém, a paz dos cemitérios. Uma sociedade em que a segurança se torna o valor fundamental é uma sociedade paralisada, incapaz de assumir a menor possibilidade de mudança e de progresso, o menor risco[29].”

No mais, a criminalidade que o Direito Penal do inimigo objetiva combater (terrorismo, crime organizado, etc) não tem força suficiente para destruir o Estado nem suas principais instituições, apesar do que propaga Jakobs e seus asseclas. Nesse quadro, Cancio Meliá assevera:

“Os fenômenos, frente aos quais reage o Direito Penal do inimigo, não têm essa especial periculosidade terminal (para a sociedade), como se apregoa deles, e como antes se expôs, na realidade o Direito Penal do inimigo, faticamente existente, não é um mecanismo defensivista. Ao menos entre os candidatos a inimigos das sociedades ocidentais, não parece que possa apreciar-se que haja algum – nem a criminalidade organizada nem as máfias das drogas, e tampouco o ETA – que realmente possa pôr em xeque – nos termos militares que se afirmam – os parâmetros fundamentais das sociedades correspondentes em um futuro previsível. Isto é especialmente claro quando se compara a dimensão meramente numérica das lesões de bens jurídicos pessoais experimentadas por tais condutas delitivas com outro tipo de infrações criminais que se cometem de modo massivo e que entram, em troca, plenamente dentro da normalidade. Então, o que têm de especial os fenômenos frente aos quais responde o Direito Penal do inimigo? Que característica especial explica, no plano fático, que se reaja precisamente desse modo frente a essas condutas? Que função cumpre a pena neste âmbito?[30].”

Em relação à finalidade da pena criminal, pode-se afirmar que o Direito Penal do inimigo, apesar de pregar o fim voltado à manutenção da vigência da norma, é incompatível com a teoria da prevenção geral positiva. É o que defende, também, Manuel Cancio Meliá:

“Portanto, a questão de poder existir Direito Penal do inimigo se resolve negativamente no plano da teoria da pena. Precisamente, da perspectiva de um entendimento da pena e do Direito Penal, com base na prevenção geral positiva, a reação que reconhece excepcionalidade à infração do inimigo, mediante uma troca de paradigma de princípios e regras de responsabilidade penal, é disfuncional, de acordo com o conceito de Direito Penal. Desde esta perspectiva, é possível afirmar que o Direito Penal do inimigo, jurídico-positivo, cumpre uma função distinta do Direito Penal (do cidadão): são coisas distintas[31].”

Do mesmo modo, observa-se que a teoria Jakobsiana, também, não consegue assegurar a prevenção geral negativa, na medida em que a sanção penal não coagiria psicologicamente o agente a não cometer delitos.

Conforme o magistério de Francisco Muñoz Conde:

“Não parece, entretanto, que os terroristas, narcotraficantes ou membros de associações mafiosas, a quem principalmente pretende-se dirigir a norma, sintam-se especialmente ameaçados por este Direito penal especial sem garantias, nem por nenhum outro. Pode ser, inclusive, que o fato de que o Estado já de antemão os exclua e os qualifique como “não pessoas” os legitime em seus ataques ao Estado[32].”

A constatação de que o Direito Penal de exceção idealizado por Jakobs não consegue cumprir a finalidade de prevenção geral negativa da pena fica mais evidente quando se analisa o caso do terrorista suicida, pois, nesta hipótese, a reprimenda criminal, mesmo que severa, não consegue intimidá-lo e demovê-lo do seu intento, visto que, ele não teme ser preso e, muito menos, a morte, sendo a sua ação justa e gloriosa, a ser devidamente recompensada quando de sua chegada ao paraíso.

É crucial relembrar, também, que a sanção criminal imposta ao inimigo cumpre um papel de segurança contra comportamentos futuros (periculosidade). Por isso, o Direito Penal do inimigo é prospectivo, vale dizer, se ocupa da prevenção a riscos vindouros, consubstanciando-se nitidamente como um Direito Penal do autor transgressor do princípio penal do fato.

Dito de outra maneira: o Direito Penal do inimigo reflete o Direito Penal do autor repudiado pelo Direito Penal moderno, de cunho liberal, já que responsabiliza criminalmente um ser humano simplesmente por ser considerado inimigo, como o são, consoante os ensinamentos de Jakobs, os terroristas, os membros da criminalidade organizada, os estupradores e aqueles que cometem crimes graves e/ou gravíssimos[33]. O sujeito é castigado pelo que ele é ou pelo seu modo de viver e não pelo que ele fez (por seus atos).

Nessa esteira de raciocínio, Francisco Muñoz Conde aduz:

“A primeira observação que se pode fazer a Jakobs é que seu Direito Penal do Inimigo relembra muito o Direito Penal do Autor que propugnaram os penalistas nazistas, segundo o qual o relevante não era o fato delitivo cometido, e sim a “perversão”, “inclinação ou tendência ao delito”, ou “periculosidade criminal” que pudesse ter o autor[34].”

Assim sendo, a valorização de um Direito Penal do autor pela teoria do Direito Penal do inimigo transgride o princípio da exteriorização do fato, que responsabiliza pessoas apenas pela prática de condutas, não interessando quem é o infrator da norma, o seu estilo de vida nem seus pensamentos e/ou cogitações.

Por derradeiro, é relevante aludir as críticas feitas por Luís Greco sobre o Direito Penal do inimigo, vez que elas, de um modo ou de outro, tangenciam todas as outras expostas acima.

O penalista brasileiro analisa tecnicamente a teoria Jakobsiana, delimitando três conceitos distintos (conceitos afirmativo-legitimador, descritivo e denunciador-crítico), concluindo pela absoluta imprestabilidade do Direito Penal do inimigo para a ciência jurídico-penal.

Segundo informa Luís Greco:

“Como primeira conclusão pode-se, de acordo com a opinião majoritária, recusar decididamente o conceito legitimador-afirmativo do direito penal do inimigo. Uma idéia que leva a que se anulem todos os limites absolutos ao poder de punir (razão epistemológica), que não é precisa o suficiente para iluminar os aspectos preventivos que se mostrem dignos de discussão (razão pragmática) e que ainda apresenta um sabor autoritário (razão retórica) de nada pode prestar à ciência do direito penal.

Como segunda conclusão intermediária podemos dizer: um conceito descritivo de direito penal do inimigo não parece possível, porque o uso de um termo tamanhamente carregado de valorações como o “inimigo” força tanto a ciência (normativa) do direito penal, como o discurso cotidiano sobre os fenômenos do crime e da pena a valorarem; e esse conceito tampouco é necessário, enquanto não for explicitado em que medida ele pode contribuir para uma melhor compreensão do direito vigente se comparado a conceitos tradicionais de que já dispomos.

Como última conclusão parcial pode-se afirmar que também o conceito denunciador-crítico de direito penal do inimigo deve ser recusado: primeiramente por sua dimensão excessivamente difamatória e emocional, em segundo lugar por sua dispensabilidade.

Com isso chegamos ao resultado de que o conceito de direito penal do inimigo não pode pretender um lugar na ciência do direito penal. Ele não serve nem para justificar um determinado dispositivo, nem para descrevê-lo, nem para criticá-lo. Como conceito legitimador-afirmativo, ele é nocivo; como conceito descritivo, inimaginável; como conceito crítico, na melhor das hipóteses desnecessário[35].”

 

Conclusão

Diante de tudo que foi exposto no presente artigo podemos tecer as seguintes conclusões.

A teoria do Direito Penal do inimigo, capitaneada pelo professor alemão Günther Jakobs, é fruto de dois outros movimentos de expansão do Direito Penal imanentes à sociedade mundial do risco em que vivemos, quais sejam: o Direito Penal simbólico e o Direito Penal punitivista.

Tal tese, tem como pressuposto primacial a divisão do Direito Penal em dois polos opostos: o Direito Penal do cidadão, aplicado aos indivíduos que delinquem, mas mantêm uma expectativa mínima de segurança cognitiva, isto é, de fidelidade ao ordenamento jurídico, devendo ser conservado o seu status de pessoa e, por conseguinte, todos os seus direitos e garantias individuais; e, de outro lado, o Direito Penal do inimigo imposto àqueles seres humanos infratores contumazes do Direito, que não demonstram respeito nem a possibilidade de que um dia possam ser fiéis ao sistema jurídico vigente. A estes só resta a despersonificação, a reificação, não lhes sendo reconhecido nenhum ou quase nenhum direito fundamental.

A tese do Direito Penal do inimigo tem como características principais a relativização e/ou extinção de garantias penais e processuais, o alargamento da tutela penal, mediante a punição da preparação e a tipificação de delitos de perigo abstrato e a desproporcionalidade das sanções penais.

As críticas voltadas à tese Jakobsiana são várias, tendo sido elencadas as reputadas mais importantes, a exemplo da odiosa distinção realizada entre cidadãos-pessoas x inimigos-não pessoas, que fere de morte os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, dois postulados fundantes do Estado Democrático de Direito.

 

Referências

ALMEIDA, Débora de Souza de; ARAÚJO, Fábio Roque; CUNHA, Rogério Sanches; GOMES, Luiz Flávio; PINTO, Ronaldo Batista. Terrorismo. Comentários, artigo por artigo, à Lei 13.260/16 e Aspectos Criminológicos e Político-Criminais. Salvador: JusPodivm, 2017.

 

BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

 

BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

 

CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raul Marques. O Direito Penal do Inimigo Como Quebra do Estado de Direito: A Normalização Do Estado De Exceção. Disponível em: https://periodicos.unichristus.edu.br/opiniaojuridica/article/view/552/261.

 

CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal do inimigo. Curitiba: Juruá Editora, 2012.

 

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2007.

 

GRECO, Luís. Sobre o chamado direito penal do inimigo. Disponível em: http://www.unisalesiano.edu.br/salaEstudo/materiais/p297428d7553/material3.pdf. Acesso em: 22/08/2019.

 

JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018.

 

MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Breves considerações sobre o “Direito Penal do Inimigo”. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/proc_criminal/Boletins_jurisprudencia/BJ%20021.pdf. Acesso em: 16/05/2018.

 

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf. Acesso em: 25/05/2019.

MATERIAL NORMATIVO

           

BRASIL. Lei 13.260 de 13 de Março de 2016.

 

BRASIL. Constituição Federal Brasileira de 1988.

 

BRASIL. Código Penal.

 

[1] Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Direito Penal pela Faculdade IBMEC/SP. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. E-mail: claudiosaleite@hotmail.com.

[2] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. Pág. 35-36.

[3] BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. Pág. 14.

[4] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. Pág. 91. Seguindo esse raciocínio, Pierpaolo Cruz Bottini assevera que: “Fica evidente a dificuldade do direito penal em cumprir sua missão de mecanismo de gestão de riscos. A ele é imposto o objetivo de contenção de atividades perigosas, mas, ao mesmo tempo, não pode levar a cabo sua tarefa por completo sob pena de perecimento das estruturas econômicas fundantes do sistema social contemporâneo. Os riscos não podem ser extirpados pelo direito penal que cumpre, em muitas situações, o papel simbólico de apaziguar, por certo período os anseios populares por mais segurança”.

[5] MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Breves considerações sobre o “Direito Penal do Inimigo”. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/proc_criminal/Boletins_jurisprudencia/BJ%20021.pdf.Acesso em: 16/05/2018.

[6] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: Noções e Críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 88.

[7] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 25.

[8] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 28.

[9] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 43.

[10] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 40.

[11] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 34.

[12] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 28.

[13] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 29.

[14] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 47.

[15] MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Breves considerações sobre o “Direito Penal do Inimigo”. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/proc_criminal/Boletins_jurisprudencia/BJ%20021.pdf.Acesso em: 16/05/2018.

[16] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Págs. 22.

[17] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 22-23.

[18] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 90.

[19] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 38.

[20] ALMEIDA, Débora de Souza de; ARAÚJO, Fábio Roque; CUNHA, Rogério Sanches; GOMES, Luiz Flávio; PINTO, Ronaldo Batista. Terrorismo. Comentários, artigo por artigo, à Lei 13.260/16 e Aspectos Criminológicos e Político-Criminais.Salvador: JusPodivm, 2017. Pág. 246.

[21] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. Pág. 111.

[22] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 60.

[23] CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal do inimigo. Curitiba: Juruá Editora, 2012. Pág. 44.

[24] FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2007. Pág. 113-114. Concordando com tal ponto de vista, Manoel Gonçalves Ferreira Filho alerta para a necessidade de observância do princípio da igualdade, vedando-se os privilégios. Preleciona o renomado constitucionalista: “A primeira decorrência, portanto, do princípio da igualdade é exatamente a abolição, e mais do que isso, a proibição, dos privilégios. Não podem ser abertas exceções à lei que favoreçam (privilegiem) indivíduos, ou grupos. Isto presume a uniformidade, ou igualdade, do direito, a unidade do estatuto jurídico que é o mesmo para todos. Para isto a lei há de ser – como estava na Carta de 1824 – ‘igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará na proporção dos merecimentos de cada um’ (art. 179, n. 13)”.

[25] SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf. Acesso em: 25/05/2019.

[26] CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raul Marques. O Direito Penal do Inimigo Como Quebra do Estado de Direito: A Normalização Do Estado De Exceção. Disponível em: https://periodicos.unichristus.edu.br/opiniaojuridica/article/view/552/261.  Acesso em: 22/05/2019.

[27] CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal do inimigo. Curitiba: Juruá Editora, 2012. Pág. 62.

[28] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 96-97.

[29] CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal do inimigo. Curitiba: Juruá Editora, 2012. Pág. 68.

[30] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 102-103.

[31] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 105-106.

[32] CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal do inimigo. Curitiba: Juruá Editora, 2012. Pág. 73.

[33] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. Pág. 34. Conforme ensina o autor alemão: “Pretende-se combater, em cada um destes casos, a indivíduos que em seu comportamento (por exemplo, no caso dos delitos sexuais), em sua vida econômica (assim, por exemplo, no caso da criminalidade econômica, da criminalidade relacionada com as drogas e de outras formas de criminalidade organizada) ou mediante sua incorporação a uma organização (no caso do terrorismo, na criminalidade organizada, inclusive já na conspiração para delinquir, § 30 StGB) se tem afastado, provavelmente, de maneira duradoura, ao menos de modo decidido, do Direito, isto é, que não proporciona a garantia cognitiva mínima necessária a um tratamento como pessoa”.

[34] CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal do inimigo. Curitiba: Juruá Editora, 2012. Pág. 41.

[35] GRECO, Luís. Sobre o chamado direito penal do inimigo. Disponível em: http://www.unisalesiano.edu.br/salaEstudo/materiais/p297428d7553/material3.pdf. Acesso em: 22/08/2019.

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