Resumo: O presente trabalho tem como escopo fazer breves apontamentos sobre alguns princípios norteadores da seguridade social, insertos no parágrafo único, do art. 194, da CF/88, a fim de verificar a aplicação dos mesmos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.
Abstract: This main goal of this paper is to make brief notes on some guiding principles of social security, inserts in the art. 194, from our Constitution in order to verify their application at the Superior Court of Justice.
Keywords: universality, uniformity, equivalence, selectivity, distributivity and irreducibility.
Sumário: 1. Introdução. 2. Do Princípio da Universalidade da Cobertura e do Atendimento. 3. Do Princípio da Uniformidade e Equivalência dos Benefícios e Serviços às Populações Urbanas e Rurais. 4. Do Princípio da Seletividade e Distributividade na Prestação dos Benefícios e Serviços. 5. Do Princípio da Irredutibilidade do Valor dos Benefícios. 6. Conclusão.
1 – Introdução
Sabendo-se que os princípios são normas que tendem a dar concretização aos valores mais caros de uma sociedade, fazendo a tradução destes para as regras que devem orientar a conduta dos cidadãos, e dentre estes, a do legislador, é salutar estudo, ainda que singelo, sobre o modo como a Corte encarregada da uniformização da legislação federal infraconstitucional vem interpretando alguns daqueles que orientam a seguridade social, em razão da enorme importância que tal sistema, o qual engloba políticas e ações de saúde, assistência social e previdência social, assume entre nós, notadamente como garantidor destes direitos constitucionalmente assegurados e diretamente vinculados ao princípio da dignidade humana.
2 – Do Princípio da Universalidade da Cobertura e do Atendimento
Como a própria denominação indica possui ele duas dimensões: uma objetiva, qual seja, a universalidade da cobertura, referida a situações de necessidade, relacionadas com todas as contingências da vida, podendo ser compreendida como o elenco de prestações disponíveis; e outra subjetiva, relacionada com a universalidade do atendimento, e que diz respeito aos sujeitos protegidos, no sentido de que todas as pessoas são credoras de proteção social.[1]
Referido princípio vem sendo aplicado pelo C. Superior Tribunal de Justiça para fundamentar julgados, notadamente no que diz respeito a ações afirmativas, por meio das quais se busca acesso a tratamentos e medicamentos de uso continuado, geralmente não disponíveis na rede pública.
Em casos assim, aquela Corte vem dando provimento aos recursos dos interessados, como no caso do REsp 430.526/SP, cuja ementa abaixo se transcreve:
“CONSTITUCIONAL. RECURSO ESPECIAL. SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PACIENTE COM HEPATITE “C”. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER DO ESTADO.
1. Delegado de polícia que contraiu Hepatite “C” ao socorrer um preso que tentara suicídio. Necessidade de medicamento para cuja aquisição o servidor não dispõe de meios sem o sacrifício do seu sustento e de sua família.
2. O Sistema Único de Saúde-SUS visa a integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna.
3. O direito à vida e à disseminação das desigualdades impõe o fornecimento pelo Estado do tratamento compatível à doença adquirida no exercício da função. Efetivação da cláusula pétrea constitucional.
4. Configurada a necessidade do recorrente de ver atendida a sua pretensão, legítima e constitucionalmente garantida, posto assegurado o direito à saúde e, em última instância, à vida, sobreleva ainda destacar que a moléstia foi transmitida no exercício de sua função, e em decorrência do nobilíssimo ato de salvaguardar a vida alheia. Representaria sumum jus summa injuria, retribuir-se a quem salvou a vida alheia, com o desprezo pela sua sobrevivência.
5. Recurso especial provido.” (REsp 430526/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 01/10/2002, DJ 28/10/2002, p. 245)
Verifica-se que, ademais de se referir ao direito à vida, à saúde e à disseminação das desigualdades, referido acórdão prestigiou, ainda que não tenha sido mencionado expressamente, o direito à universalidade da cobertura e do atendimento.
Entendeu a Corte que os portadores de moléstias graves, sem disponibilidade financeira para custear seu tratamento, têm o direito de receber gratuitamente do Estado os medicamentos de comprovada necessidade, sem perquirir em momento algum acerca de qualquer contribuição para a seguridade social, porque, em relação à saúde, o princípio da universalidade tem aplicação integral, não cabendo mitigação, como ocorre com os benefícios da previdência social, em que a regra é a contrapartida da prestação de acordo com a capacidade contributiva de cada um.[2]
3 – Do Princípio da Uniformidade e Equivalência dos Benefícios e Serviços às Populações Urbanas e Rurais
Em sintonia com o art. 7º, da Constituição, este princípio, desdobramento do princípio da igualdade, garante às populações urbanas e rurais cobertura para as mesmas contingências (uniformidade), as quais não serão necessariamente iguais, porém equivalentes, dependendo do tempo de contribuição, sexo, idade, entre outras variáveis (equivalência).[3]
Tal princípio veio corrigir a discriminação anteriormente feita ao rurícola, especialmente a partir da Lei n. 8.213/91, tanto que a denominação atribuída ao sistema por ela instituído é “Regime Geral de Previdência social”.[4]
O tema foi objeto embargos de divergência em recurso especial em que se confronta julgados da 5ª e da 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça:
“PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RECONHECIMENTO DE TEMPO DE SERVIÇO RURAL PARA CONTAGEM DE APOSENTADORIA URBANA. RGPS. RECOLHIMENTO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. DESNECESSIDADE. EMBARGOS ACOLHIDOS.
1. Não é exigível o recolhimento das contribuições previdenciárias, relativas ao tempo de serviço prestado pelo segurado como trabalhador rural, ocorrido anteriormente à vigência da Lei n. 8.213/91, para fins de aposentadoria urbana pelo Regime Geral de Previdência Social – RGPS, a teor do disposto no artigo 55, § 2º, da Lei nº 8.213/91.
2. A Constituição Federal de 1988 instituiu a uniformidade e a equivalência entre os benefícios dos segurados urbanos e rurais, disciplinado pela Lei n. 8.213/91, garantindo-lhes o devido cômputo, com a ressalva de que, apenas nos casos de recolhimento de contribuições para regime de previdência diverso, haverá a necessária compensação financeira entre eles.
3. Embargos de divergência acolhidos.” (EREsp 576.741/RS, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/05/2005, DJ 06/06/2005, p. 178.)
Prevaleceu o entendimento do relator Min. Hélio Quaglia, no sentido de que o § 2º, do art. 55, da Lei n. 8.213/91, anteriormente alterado pela MP n. 1.523/96, a qual não fora convertida em lei, só exigia dos rurícolas o cumprimento da carência prevista no art. 52, do mesmo diploma legal: 25 anos para mulheres; 30 anos para homens.
Além disso, como bem colocado pelo Min. Carvalhido, a questão não era a da concessão de aposentadoria por tempo de serviço a trabalhador rural, mas, sim, a do direito do trabalhador urbano ao cômputo do seu tempo de serviço como trabalhador rural, antes da vigência da Lei n. 8.213/91, sem qualquer dispensa de carência, durante o tempo de serviço como trabalhador urbano, restando, pois, observado o caráter contributivo da Previdência Social.[5]
Outrossim, observou-se que, desde a redação original da Lei n. 8.213/91, sempre se exigiu a indenização das contribuições correspondentes ao período de atividade rural, acaso o segurado pretendesse o cômputo de tal período como de tempo de serviço para fins de contagem recíproca, em obediência ao comando do atual § 9º, do art. 201, o qual assegura o direito à contagem recíproca na administração pública e na atividade privada, pouco importando a junção das atividades urbana e rural vinculadas apenas a esta última, o que não era absolutamente o caso, visto que o recorrente nunca estivera a serviço da Administração.[6]
4 – Do Princípio da Seletividade e Distributividade na Prestação dos Benefícios e Serviços
A seletividade está ligada à escolha das prestações que serão feitas de acordo com as possibilidades econômico-financeiras do sistema da Seguridade Social. Já a distributividade relaciona-se com o ideal de justiça social, visto que o sistema visa à redução das desigualdades sociais e econômicas, mediante política de redistribuição de renda.[7]
“RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA C DA CF. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE PROVA, QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR FOR SUPERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A CF/88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário mínimo de benefício mensal, independente de contribuição à Seguridade Social, à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
2. Regulamentando o comando constitucional, a Lei 8.742/93, alterada pela Lei 9.720/98, dispõe que será devida a concessão de benefício assistencial aos idosos e às pessoas portadoras de deficiência que não possuam meios de prover à própria manutenção, ou cuja família possua renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no julgamento da ADI 1.232/DF (Rel. para o acórdão Min. NELSON JOBIM, DJU 1.6.2001).
4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana, especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, esse dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente a o cidadão social e economicamente vulnerável.
5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo.
6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art. 131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar.
7. Recurso Especial provido.” (REsp 1112557/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/10/2009, DJe 20/11/2009.)
Embora não citado expressamente, está claro que o princípio em tela, tanto na dimensão da seletividade, como da distributividade, orientou a decisão acima, que se espelha em outros precedentes, porque a escolha, entre outras possíveis de benefício assistencial a pessoa idosa em condição de miserabilidade, visa a promover distribuição de renda e, consequentemente, justiça social.
5 – Do Princípio da Irredutibilidade do Valor dos Benefícios
Tal princípio visa a assegurar que o valor nominal dos benefícios concedidos aos beneficiários da Previdência ou da Assistência Social seja preservado, tal como, paralelamente, é garantida a irredutibilidade dos vencimentos aos empregados e dos subsídios dos servidores públicos (arts. 7º, 37, XV, 95, III, CF/88, e 468, CLT).[8]
O mesmo está fortalecido no comando do § 4º, do art. 201, da Carta Política, o qual, todavia, remete o critério de reajustamento à lei ordinária. De forma que, caso esta “não adote métodos ou índices para se verificar a variação real da inflação, haverá perdas ao segurado, mas esse critério não poderá ser acoimado de inconstitucional”. Esse tem sido o entendimento do STF.[9]
“PROCESSUAL CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. REVISIONAL DE BENEFÍCIO. VINCULAÇÃO À VARIAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO. IMPOSSIBILIDADE. LEIS 8.212/91 E 8.213/91. INPC E SUBSTITUTOS LEGAIS. PERDA DO VALOR REAL NÃO VERIFICADA. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. FUNDAMENTOS SUFICIENTES A EMBASAR A DECISÃO. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E IMPROVIDO.
1. […]
2. A partir da entrada em vigor das Leis 8.212/91 e 8.213/91, o reajuste dos benefícios previdenciários passou a ser feito mediante a aplicação do INPC e seus substitutos legais, nos termos do art. 41, II, da Lei 8.213/91. Aplicação da regra estabelecida no art. 58 do ADCT.
3. O Superior Tribunal de Justiça, em consonância com precedente do Supremo Tribunal Federal, pacificou entendimento no sentido de que o índice adotado pelo art. 41, II, da Lei 8.213/91 não ofende as garantias da irredutibilidade do valor dos benefícios e da preservação do seu valor real.
4. Recurso especial conhecido e improvido.” (REsp 327.487/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 20/11/2006, DJ 11/12/2006, p. 403).
De fato, conforme exposto no AI 590.177, julgado em 06/03/07, a Suprema Corte, embora entendendo que o caso em questão só reflexamente ofendia a Constituição, pronunciou-se, com arrimo no RE 376.846, julgado em 02/04/04, no sentido de que a adoção de índices diversos de atualização para o salário de contribuição e benefício não ofende o princípio da igualdade, porque os mesmos têm naturezas jurídicas diversas: o primeiro representa a base de cálculo da prestação previdenciária devida pelo trabalhador; o segundo, a prestação a que este tem direito, de natureza alimentar.[10]
Em assim sendo, há que se dar interpretação aos comandos dos §§ 3º e 4º, do art. 201, da CF/88, da seguinte forma: o primeiro assegura que o cálculo da renda mensal inicial dos benefícios terá por base a média aritmética dos salários de contribuição a serem computados corrigidos monetariamente, sobre a qual será aplicado o fator previdenciário; o segundo garante a manutenção do valor real dos benefícios após a concessão destes.[11]
6 – Conclusão
Dos julgados analisados depreende-se que o Superior Tribunal de Justiça vem dando concreção aos princípios objeto deste trabalho, não se devendo perder de vista que o próprio caput do art. 201, da Constituição, prescreve que o regime da previdência social deve observar critérios que preservem seu equilíbrio financeiro e atuarial.
Embora a previdência seja apenas um dos tripés da seguridade social, deve-se ter em mente que o acesso à saúde e à assistência social independem de aporte pelos beneficiários e que as contribuições que custeiam o sistema como um todo são basicamente aquelas elencadas no art. 195.
Retomando-se, pois, postulado que orienta a economia, segundo o qual as necessidades humanas tendem ao infinito, enquanto os recursos são finitos, tem-se que, dentro das opções políticas feitas pelo legislador, aquela Corte vem interpretando a legislação federal em sintonia com os princípios estudados, mormente com os da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana, especialmente no que concerne à saúde e à assistência social.
Mestra em Direito Público pela Universidade de Franca, Pós-graduanda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Procuradora da Fazenda Nacional, Ex-Auditora da Receita Federal do Estado de Minas Gerais
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