Considerações sobre medida provisória 168/2004 e legalização dos bingos no Brasil

O Governo Federal veio em editar a Medida Provisória nº 168, de 20 de fevereiro de 2004, através da qual tenciona a proibição da exploração de todas as modalidades de jogos de bingo e jogos em máquinas eletrônicas denominadas caça-níqueis.

Preliminarmente, convém censurar o tratamento da matéria através de Medida Provisória, expediente através do qual o Poder Executivo deu na presente questão, vazão à sua fúria legiferante pelo Caso Waldomiro, em menoscabo à competência própria do Congresso Nacional e, por isto mesmo, produzindo atos viciados de inconstitucionalidade formal. De fato, não vislumbramos existir na hipótese o requisito da urgência, o qual, ao lado da relevância, justifica a edição da medida provisória com força de lei. É certo que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a urgência e a relevância previstas no artigo 62 da Constituição Federal têm caráter político, cuja apreciação fica, em princípio, por conta dos Poderes Executivo e Legislativo (ADIMC 1397 – DF). Não obstante, o que não se pode admitir é que, sob o pálio de tal entendimento, se editem Medidas Provisórias que, a olhos vistos, não são marcadas pelos apontados requisitos.

Devemos evitar a edição descomedida de Medidas Provisórias tem ocasionado distorções evidentes. Segundo dados do Senado Federal, desde a adoção do instituto pelo nosso direito, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, até o final do ano de 1998, foram editadas nada menos que quatrocentas e cinqüenta e oito Medidas Provisórias novas. Se somadas estas às suas reedições, o número chega a duas mil, oitocentos e vinte e uma. A insegurança para as relações jurídicas revela-se com clareza diante da observação de que trezentas e seis reedições modificaram as Medidas reeditas.

Com efeito, a questão central versada na Medida Provisória sob análise envolve proibição da exploração de todas as modalidades de jogos de bingo e jogos em máquinas eletrônicas denominadas caça-níqueis.  Entretanto, devemos analisar a questão jurídica dos Bingos no Brasil.

Com o intuito de obter e aumentar os recursos financeiros para o desenvolvimento do desporto e de acordo com o artigo 217 da Constituição Federal foi elaborado um projeto transformado na Lei Federal n. 8.672, de 06/07/93, instituindo a modalidade de bingo permanente ou eventual, inclusive com instalações de maquinas eletrônicas programadas em todo território nacional, com a finalidade de angariar recursos financeiros para aplicação no fomento do desporto, na qual a União delegou as responsabilidades de autorização e fiscalização dos bingos, para Secretária do Esporte e para Secretária da Fazenda do Estado, que distribui as responsabilidades para todas delegacias regionais tributarias.

O jogo de bingo foi inicialmente autorizado como atividade lícita pelo art. 57 da Lei nº 8.672, de 06/07/93 (Lei Zico), que autorizava as entidades de administração e de prática esportiva a explorar, em caráter de exclusividade, estabelecimentos cujas receitas se destinassem ao fomento do desporto.  Referido dispositivo foi regulamentado pelo Decreto nº 981 de 11/11/93, que, em seu Capítulo VIII, subdividia a captação dos recursos de incentivo ao esporte entre as seguintes modalidades de jogo: bingo, sorteio, numérico, bingo permanente e “similares” (art. 45).

Como tal classificação revelou-se, na prática, excessivamente ampla, tendo em vista que as expressões “similares” e “sorteio numérico” abrangiam todos os tipos de jogos de prognósticos, inclusive atividades típicas de loteria, a matéria recebeu novo tratamento legal através da Lei nº 9.615, de 24/03/98 (Lei Pelé), revogando-se, assim, a legislação anterior.  Anote-se, a esse respeito, que a Lei Pelé revogou expressamente a Lei nº 8.672/93 (Lei Zico), em seu art. 96.   A Lei n. 9.615/98 veio a ser regulamentada pelo Decreto 2.574/98. Posteriormente o Governo Federal criou a Lei n. 9.981/2000 onde a responsabilidade do credenciamento ao Indesp e da Caixa Econômica Federal a autorização e a fiscalização da realização dos jogos de bingo. Na Medida Provisória n. 2049/2000 extinguiu o Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto e a exploração de jogos de bingo, serviço público de competência da União, será executada, direta ou indiretamente, pela Caixa Econômica Federal em todo o território nacional. E finalmente temos o Decreto n. 3.659, de 14 de novembro de 2000, que regulamentava a autorização e a fiscalização dos jogos de bingo no Brasil e que definiu a exploração de jogos de bingo, como serviço público, que será executada direta ou indiretamente pela Caixa Econômica Federal em todo território Nacional, definindo os respectivos regulamentos, bem como as normas necessárias a serem expedidas pela CEF, determinando 53,5 % de premiação de bingo e linha, 7.0 % CEF, 4.5 % União, 7.0 % Entidade Esportiva, 28.0% para custeio de despesas ou Empresa Promotora.

Atualmente, existem dois projetos tramitando na Câmara dos Deputados que tratam da regulamentação dos bingos. O primeiro é o Projeto de Lei nº  4874 do Estatuto do Esporte, de autoria do deputado Silvio Torres e relatado pelo deputado Gilmar Machado (PT) inclui os bingos no seu texto como fonte de arrecadação, e o segundo, é o Projeto de Lei nº 1037 do deputado Wagner Salustiano,também relatado por Gilmar Machado (PT), trata especificamente sobre a regulamentação dos bingos e é mais completo, resolvendo definitivamente o problema da atividade no país.

Finalmente, em 20 de fevereiro de 2004 veio o Poder Executivo Federal em editar a Medida Provisória nº 168, onde veio em proibir a exploração de todas as modalidades de jogos de bingo e jogos em máquinas eletrônicas denominadas “caça-níqueis”, independentemente dos nomes de fantasia. Tal ato normativo veio em revogar os arts. 2o, 3o e 4o da Lei no 9.981, 14 de julho de 2000, o art. 59 da Lei no 9.615, de 24 de março de 1998, e o art. 17 da Medida Provisória no 2.216-37, de 31 de agosto de 2001. Eis a atual situação jurídica dos Bingos no País.

Entretanto, devemos analisar os reflexos da decisão do Governo Federal. No campo social, em conformidade com o documento da Força Sindical, estima-se que 320 mil postos de trabalho sejam fechados, aumentando o contingente de desempregados num País com poucas oportunidades de trabalho. Segundo a Associação Brasileira de Bingos, existem cerca de mil casas de bingo no Brasil e em torno de 100 mil máquinas eletrônicas programadas apenas nos bingos. O Presidente da Abrabin defendia a legalização dos bingos como uma fonte geradora de arrecadação de R$ 240 milhões por ano.

E no documento enviado ao Ministro Agnello Queiroz, demonstraram que os bingos podem repassar para o Ministério R$ 30 milhões para o custeio do desporto. O Estatuto do Desporto prevê a obtenção e o disciplinamento de fontes de recursos, como é o caso dos bingos, que permitem ao governo financiar projetos de inclusão social. Em entrevista do diretor da Sodak Gaming do Brasil, foi exposto que “O Brasil é o segundo maior mercado do mundo para o jogo, atrás da China, e só nos Estados Unidos o setor movimenta US$ 300 bilhões por ano, quase metade do PIB brasileiro”. O mercado potencial ninguém dimensiona, mas só as loterias do governo federal arrecadam cerca de R$ 2 bilhões por ano.

Historicamente, as formas mais antigas de sorteios de que se tem notícia são as loterias e o bingo. Já nos séculos XIII e XIV a Itália efervescia com jogos e loterias. Nesta época, o sistema de substituição dos membros da Câmara e do Senado, em Gênova, suscitou a aparição de um novo jogo: o Bingo, que na verdade é filho da loteria. O Bingo, palavra inglesa, originou-se do Loto ou Lotto italiano (uma loteria que surgiu em 1530 e conhecida como Gioco del Lotto del Italia) como uma brincadeira de criança, em 1778 na Inglaterra. A partir desta data, recebeu muitos nomes como Tômbola (Tombola), nome dado pelos marinheiros da Marinha Real Inglesa, no final do século passado ou Casa (House) os soldados do exército inglês o chamavam assim, no início do século XX.

Em 1966, foi criada a primeira legislação relacionada ao Bingo, na Inglaterra. Essa iniciativa despertou o interesse de muitos empresários em toda a Europa, fazendo com que a década seguinte, a de 70, ficasse marcada pela Febre do Bingo Moderno o precursor desse que conhecemos, com máquinas high-tech e salões sofisticados Com o lançamento de uma legislação específica dos Bingos espanhóis em 1978, a indústria do jogo começou a mudar e os empresários passaram a vislumbrar um futuro promissor.  Atualmente, só na Espanha considerada a líder desse tipo de mercado de entretenimento, a indústria do Bingo emprega mais de 35 mil pessoas que trabalham nos salões, fabricas que produzem as máquinas usadas nos salões ou ainda nas gráficas que imprimem as cartelas do jogo. Na América do Sul os primeiros países a abrigarem salões de Bingo, nos mesmos moldes das grandes casas espanholas, foram o Peru (em 1980), Equador (1981) e Argentina (1985).

Entretanto, a questão da proibição da exploração de todas as modalidades de jogos de bingo, com amparo na Medida Provisória nº 168 no campo judicial será extremamente controvertida e caberá a palavra final ao Poder Judiciário. Temos a questão da utilização da medida provisória. Devemos expor que só em caso de relevância e urgência (artigo 62, inciso I, letra b, CF) o presidente da República pode editar medidas provisórias sobre matéria de Direito Penal, Processual Penal e Processual Civil. E temos ainda a questão da legalidade em matéria tributária do imposto sobre serviços de qualquer natureza sobre a atividade dos bingos.

Recentemente publicamos a obra Manual do Imposto Sobre Serviços com uma profunda análise da Lei Complementar n. 116, de 31 de julho de 2003, que introduziu profundas alterações na tributação e na arrecadação do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, de competência dos municípios. A referida Lei Complementar trouxe alterações quanto ao contribuinte do ISS, estabeleceu novas regras sobre o local da prestação de serviços, modificou a tributação das sociedades profissionais, definiu o ISS sobre a atividade de bingos, estabeleceu limites para a definição das alíquotas e, principalmente, trouxe uma nova Lista de Serviços tributáveis pelo imposto, com novos serviços e hipóteses de incidência. No item 19 da Lista de Serviços Tributáveis pelos Municípios temos: Serviços de distribuição e venda de bilhetes e demais produtos de loteria, bingos, cartões, pules ou cupons de apostas, sorteios, prêmios, inclusive os decorrentes de títulos de capitalização e congêneres.

No Município de Curitiba foi sancionada pelo Prefeito, a Lei Municipal nº 10.770. Sua súmula traz a seguinte redação: “Regulamenta a concessão de Alvará de Licença para localização e funcionamento de estabelecimentos de Bingo e Vídeo Loteria”.Estabelece, portanto, os requisitos formais para a concessão dos referidos alvarás, além de determinar o destino de porcentagem da renda líquida dos estabelecimentos exploradores dessas atividades, autorizando, ainda, a Secretaria Municipal de Finanças a “baixar normas complementares”.

Em contrapartida, em Análise de Constitucionalidade 14399/2003 da PGJ-MP-PR vem em questionar o teor da lei municipal, com argumentos que somente por meio de lei federal pode ser instituída ou mesmo permitida ou proibida qualquer modalidade de sorteio.  Estabelece o artigo 22, inciso XX, da Constituição Federal, que somente a União pode editar normas sobre: “XX – sistemas de consórcios e sorteios”.  No conceito de “sorteio” incluem-se as loterias e também o jogo de bingo, como expressava o próprio texto do artigo 57 da Lei nº 8.672/93, que autorizou inicialmente essa modalidade de jogo.

No Município de São Paulo, a atividade está enquadrada no artigo 1º, item 59, (Diversões Públicas, alínea “b” – outros jogos), do RISS aprovado pelo Decreto nº 22.470/86.  De acordo com a Portaria n.º 83/95 do Secretário das Finanças, em seu anexo 2 (Suplemento Especial anexo ao caderno ICMS/IPI e Outros nº 3/96), a inscrição no CCM sob o código de serviço 8451, tributada mediante a aplicação da alíquota de 5%; a base de cálculo do imposto é o preço do serviço.

O Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais de São Paulo publicou o Aviso nº343/01, orientando os Promotores de Justiça Criminal do Estado a requisitar inquérito policial. A partir da remessa de termo circunstanciado de ocorrência policial que trate da apreensão de máquinas “caça-níqueis”, visando possibilitar a investigação e a elaboração de laudo pericial complementar, para fins de caracterização de crime contra a economia popular. E o Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda lançou recentemente uma Cartilha sobre Lavagem de Dinheiro afirmando que:  Jogos e sorteios  são conhecidos os casos de lavagem de dinheiro por meio de jogos e sorteios, como bingos e loterias.

É oportuno expor que as nossas Cortes Superiores de Justiça já se pronunciaram sobre a temática dos Bingos. Recentemente o Ministro Humberto Gomes de Barros do Superior Tribunal de Justiça concedeu uma liminar em MC 6650 em favor da reabertura de uma casa de bingo, ressaltando que “nas circunstâncias atuais, a interrupção de qualquer atividade empresarial é prenúncio de falência e desemprego”. O Ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal acolheu uma reclamação da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, que alegou que a interdição das casas de bingos produziria cerca de seis mil desempregos diretos e 20 mil indiretos, resultando em “considerável” impacto social no estado.  A liminar do Ministro do STF determinava que os bingos voltassem a funcionar imediatamente, até que o Supremo chegue a uma decisão final sobre a constitucionalidade da legislação que regulamenta a exploração dos bingos no Rio de Janeiro. O controle da receita gerada pelas casas, atualmente feito pela Loterj, é contestado no Supremo pela Procuradoria-Geral da República.

Por conseguinte, temos a posição da Igreja Católica sobre o assunto da legalização dos bingos. No texto aprovado na 36 Assembléia Geral da CNBB temos que: Rompe-se a harmonia doméstica por causa da vida desregrada e pela inquietação que se abate sobre o lar, diante da atração incoercível que domina, aos poucos, os jogadores, com perigo de dilapidar, de repente, todo o patrimônio familiar. Quem não conhece casos de desespero dos que perdem tudo nas apostas, acarretando tal fato desequilíbrio psíquico e até tentativa de suicídio.

Portanto, aguardamos um pronunciamento final ou do Poder Executivo ou do Poder Judiciário sobre a questão da legalização dos bingos. Não pode o Governo Federal em penalizar milhares de famílias que trabalham na atividade. Não pode o Governo Federal em deixar ao alento o nosso Desporto Nacional e em perder uma fonte tributária.  Precisamos sim, em procurar uma alternativa ao desenvolvimento social, a garantia do emprego, em valorizar uma empresa nacional e em encontrar soluções aos problemas de angustiam a nossa Nação.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Celso Oliveira

 

Consultor Empresarial. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Bancário, do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, do Instituto Brasileiro de Direito Societário e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Autor das Obras Manual do Imposto Sobre Serviços e Tratado de Direito Empresarial.

 


 

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