Resumo: Os Direitos Fundamentais são importantíssima conquista histórica para a humanidade. A previsão e consagração de seus valores no seio constitucional constituiu um novo paradigma para o direito. Dada a supremacia constitucional, a consagração de valores éticos na Magna Carta faz com que o ordenamento seja relido, especialmente pela consagração de institutos fundamentais do direito no texto supremo. Discorre-se aqui acerca da relação entre Constitucionalismo, Direitos fundamentais e relações privadas na perspectiva do neoconstitucionalismo. [1]
Palavras chave: Neoconstitucionalismo. Constitucionalização do Direito Ambiental. Direitos fundamentais.
Abstract: Fundamental rights are an important historic achievement for mankind. The forecasts and consecration of their values within constitutional setting a new paradigm for law. Given the constitutional supremacy of the ethical values enshrined in the Constitution makes the rights to be re-read, especially for the consecration of institutes of the supreme law in the text. Discussions are presented here about the relationship between constitutionalism, fundamental rights and private relationships under the view of neoconstitutionalism.
Keywords: Neoconstitutionalism. Constitucionalisation. Private relationships. Fundamental rights.
Sumário: 1. Introdução; 2. Vertentes dos direitos fundamentais: breve evolução histórica; 2.1. O Estado Moderno; 2.2. Dimensão liberal: a primeira vertente; 2.3. Dimensão social: a segunda vertente; 2.4. Dimensão da solidariedade e fraternidade: a terceira vertente; 2.5. Estado Constitucional democrático de direito e direitos fundamentais; 3. Neoconstitucionalismo: o ordenamento jurídico constitucionalizado; 3.1. Previsão de uma Constituição Rígida; 3.2. Garantia jurisdicional da Constituição; 3.3. Força vinculante da Constituição; 3.4. Sobreinterpretação da Constituição; 3.5. Aplicação direta da Constituição; 3.6. Interpretação das leis conforme a Constituição; 3.7.Questões políticas sendo discutidas no âmbito judicial; 4. A constitucionalização dos direitos e o direito civil; 4.1 contexto da Constitucionalização; 4.1.1. Irradiação das normas constitucionais; 4.1.2. O caso Lüth; 4.1.3 Formas de constitucionalização; 4.2 O fenômeno no Brasil; 4.3 Constitucionalização das normas de cunho privado: A previsão de normas infraconstitucionais no corpo Constitucional; 5. A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais; 5.1. Introdução; 5.2. Considerações acerca da eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações privadas; 5.2.1 Eficácia indireta dos direitos fundamentais; 5.2.2 Eficácia direta dos direitos fundamentais; Considerações finais; Referências Bibliográficas;
1. Introdução
Busca-se com a presente pesquisa realçar a evolução histórica dos direitos fundamentais, nos marcos das dimensões liberal, social e solidária, bem como tracejar alguns contornos acerca do Estado Democrático de Direito e o contexto dos direitos fundamentais.
O constitucionalismo contemporâneo ou neoconstitucionalismo será objeto de especial atenção tendo em vista o destaque hodierno da temática na doutrina brasileira, espanhola e italiana. Para tanto, far-se-á digressões doutrinárias acerca do estágio atual deste rótulo do constitucionalismo, bem como suas múltiplas incidências no ordenamento.
Ponto importante no trabalho consiste na abordagem específica acerca da constitucionalização do ordenamento jurídico, com especial enfoque acerca dos institutos de direito civil galgados ao patamar constitucional.
Por fim, algumas considerações são traçadas acerca da eficácia dos direitos fundamentais no momento atual do direito privado.
2. Vertentes dos direitos fundamentais: breve evolução histórica
2.1. O Estado Moderno
Não se fará digressões históricas acerca das múltiplas acepções de Estado. A maioria da doutrina especializada trata, evolutivamente, do estado Grego, Romano, Medieval e do Moderno. Para os fins do presente trabalho, interessa-nos a concepção moderna de Estado. Dalmo Dallari (2003) salienta que a paz de Westfália foi marco histórico que culminou na criação do Estado na acepção moderna, enfatizando que este fato, consubstanciado por dois tratados de paz subscritos pelas cidades de Münster e Osnabrück em 1648, fixou limites territoriais entre os mesmos, tendo em vista as guerras religiosas que marcaram a época, especialmente a dos trinta anos. A par das conjecturas históricas acerca da temática, o ponto nodal da paz de Westfália foi o reconhecimento de áreas geográficas em que se exerce o poder soberano.
Para o resguardo dos direitos fundamentais, é imprescindível que haja a presença do Estado, estruturado de modo que o poder seja exercido sobre uma base territorial, dotado de instituições permanentes para tanto, como Administração Pública, Poder Judiciário, Polícia, bem como dotado de um aparato prestador de educação e propaganda política (Dimoulis e Martins, 2007, p. 25). O Estado, na acepção moderna, é “condição básica para justificar a existência de direitos fundamentais” (Dimoulis e Martins, 2007, p. 25). Canotilho salienta que o “Estado de direito é um Estado de direitos fundamentais” (1999, p. 53). Para ele, o coração do Estado, adjetivado de Direito, é a previsão de um sistema de direitos fundamentais. Salienta Sarlet (2009, p. 58) que há “intima e indissociável vinculação entre os direitos fundamentais e as noções de Constituição e Estado de Direito”
Para melhor contextualizar o estágio atual dos direitos fundamentais, far-se-á breve digressão acerca das dimensões[2] dos direitos fundamentais e sua correlação com os paradigmas Estatais de proteção dos Direitos. É possível associar o modelo liberal de Estado com as denominadas “dimensões” dos direitos fundamentais.
2.2. Dimensão liberal: a primeira vertente
Com a finalidade de proteger os indivíduos do Poder Despótico que mediou historicamente o exercício das funções estatais, concebeu-se o paradigma liberal de Estado, fortemente influenciado pelo iluminismo (Sarmento, 2006, p. 7). No que tange às esferas pública e privada do Direito, no século XVIII, há a diferenciação entre as relações econômicas e políticas, entre sociedade civil e Estado (Facchini Neto, 2003, p. 16). A dicotomia entre estes ramos do Direito é nitidamente dividida, separando Direito e moral, Estado e Sociedade, Política e Economia. A disciplina das relações privadas, ou seja as relações interssubjetivas da sociedade civil, é feita pelo Direito Privado, ao passo que o regramento das relações Estatais é feita pelo Direito Público (Facchini Neto, 2003, p. 17).
O pensar liberal do século XVIII influenciou o Constitucionalismo da época, culminando na edificação de um Estado abstencionista, isto é, cuidava-se de impedir ingerências estatais na esfera individual de liberdade. Demarcou, conforme Sarlet (2009, p. 46), “uma zona de não-intervenção do Estado e uma autonomia individual em face de seu poder”.
Assim sendo, a matriz liberal consagrou direitos fundamentais de cunho negativo (status negativus), permeados por direitos de oposição ou resistência contra o Estado (Sarlet, 2009, p. 47). Neste modelo, o núcleo moral do liberalismo consistiu na “afirmação de valores e direitos básicos atribuíveis à natureza do ser humano – liberdade, dignidade, vida – que subordina tudo o mais à sua implementação” (Streck e Morais, 2010, p. 58). Dimoulis e Martins salientam que os direitos individuais, que permeiam este modelo são também conhecidos como dimensão subjetiva dos direitos fundamentais (2007, p. 67, 117 e 118). Sob o prisma geracional ou dimensional, que divide os direitos fundamentais em eras, o modelo liberal consagrou o que a doutrina chama de direitos fundamentais de primeira dimensão (Bonavides, 2002, p. 516).
No que concerne ao “núcleo político-jurídico”, consagrou direitos políticos, salientando, conforme Streck e Morais (2010, p. 59), o consentimento individual como origem dos poderes estatais e da autoridade política e a representação do povo por meio do poder legislativo, a quem competia tomar as decisões. No que tange ao constitucionalismo, elaborou-se um documento formal escrito limitador e divisor do poder político, prevendo um sistema de freios e contrapesos entre os poderes, bem como consagrou direitos fundamentais para o indivíduo (Streck e Morais, 2010, p. 59).
Especificamente quanto à seara privada, o Direito torna-se disciplinado pelo Estado, por meio de codificação, uma vez que previsto e sistematizado pelo legislador, o que antes era relegado aos costumes, aos ensinamentos doutrinários ou ao direito canônico, no que concerne ao casamento, família, filiação e sucessões (Facchini Neto, 2003, p. 17). Outro viés que se verifica é que o Direito Privado se impregnou da ideologia burguesa dominante à época, de modo que refletiu os desejos desta classe sócio-econômica, regulando a sociedade civil, assim, sob os valores do liberalismo, delineados estes pela propriedade, como valor primordial, e a “liberdade contratual como instituto auxiliar para facilitar as transferências e a criação de riqueza” (Facchini Neto, 2003, p. 18). Explica Facchini Neto que o primado da segurança jurídica fez com que o direito privado se sobrepusesse ao público e a técnica legislativa era representada normativamente por regra jurídica, “contendo fattispecie completa (preceito e consequência jurídica)”, de modo que princípios expressos e cláusulas gerais eram rarefeitos e “parcimoniosos os conceitos indeterminados” (2003, p. 21).
2.3. Dimensão social: a segunda vertente
A história mostrou que não basta garantir formalmente a liberdade e a igualdade aos indivíduos se estes não dispõem de um mínimo existencial. A industrialização dos meios de produção acarretou graves problemas sociais, de modo que a mera previsão de liberdade e igualdade não eram suficientes para que os indivíduos fossem, de fato, livres e iguais (Sarlet, 2009, p. 47). O Estado Social de Direito ou Welfare State consagrou direitos de status positivo, ou seja, direitos a prestações por parte do Estado, de modo que os indivíduos possam “exigir determinada atuação do Estado no intuito de melhorar as condições de vida” (Dimoulis e Martins, 2007, p. 67).
Com a intenção de melhoria da vida dos indivíduos, inclusive quanto ao exercício do status negativus, isto é, para o exercício da liberdade, consagrado no Estado Liberal, mister que o cidadão tenha um mínimo pressuposto para tanto. O objetivo dos chamados “direitos sociais” consiste, assim, na “melhoria de vida de vastas categorias da população, mediante políticas públicas e medidas concretas de política social” (Dimoulis e Martins, 2007, p. 67). Desta forma, a também denominada segunda dimensão de direitos fundamentais (Bonavides, 2002, p. 521) não mais foi marcada por direitos de liberdade, mas sim, por direitos de igualdade, no sentido de que o Estado assegurasse a igualdade de oportunidade e de acesso. Enfatiza Sarlet (2009, p. 47), que “não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim, de liberdade por intermédio do Estado”.
Com o advento do paradigma social (Sarmento, 2006), no que tange ao direito privado, o denominado mundo da segurança que caracterizou a era das codificações e constituições liberais” (Facchini Neto, 2003, p. 21) e, que culminou na preponderância do direito privado sobre o público, houve inversão da relação, uma vez que o intervencionismo estatal regulou as condutas dos indivíduos e dos grupos, de modo a propiciar a igualdade substancial, o que acarretou na redução da liberdade econômica (Facchini Neto, 2003, p. 22). Mesmo no âmbito público houve delimitação do âmbito dos espaços dos poderes executivo e legislativo, por meio da sujeição de ambos à “legalidade constitucional”. Nos dizeres de Facchini Neto (2003, p. 22), “essa nova concepção tem um preciso sentido, qual seja, a da sujeição ao ordenamento jurídico de todos os poderes, públicos e privados e na sua limitação e funcionalização à tutela dos direitos fundamentais”.
A concretização de princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e da solidariedade social caracterizou a limitação do âmbito de atuação dos particulares. A autonomia da vontade é relativizada pela consagração da ética da solidariedade e da tutela da dignidade da pessoa humana (Facchini Neto, 2003, p. 23).
Outrossim, o Código Civil que era o ponto normativo de convergência do direito privado, que tinha a pretensão de proteger e disciplinar todas as suas relações, deixou de ser o eixo central para dar vazão à chamada “legislação extravagante”, que passou a ter a função de reger os programas constitucionais das incipientes constituições sociais (Facchini Neto, 2003, p. 23).
2.4. Dimensão da solidariedade e fraternidade: a terceira vertente
Obtempera Sarlet (2009, p. 53), “as diversas dimensões que marcam a evolução do processo de reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais revelam que estes constituem categoria materialmente aberta e imutável”. A terceira dimensão dos direitos fundamentais compreende, em um novo marco teórico, os direitos inerentes a todos, independentemente da condição social ou mesmo da nacionalidade do indivíduo. Não seriam nem direitos individuais nem direitos sociais ou coletivos e, sim, direitos conferidos a todos, ao que Sarlet chama de direitos de fraternidade ou de solidariedade.
Trata-se, conforme Bonavides (2002, p. 523), de direitos que tem como primeiro destinatário o gênero humano, “num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”. Trata-se, em uma primeira perspectiva, da compreensão atual dos direitos difusos ou de titularidade difusa (Sarlet, 2009, p. 48). Sarlet aduz como sendo consensualmente direitos de terceira dimensão o direito à paz, direito ao desenvolvimento, ao meio ambiente e à qualidade de vida, compreendido o meio ambiente cultural, à autodeterminação dos povos e o direito de comunicação (Sarlet, 2009, p. 48).
Alguns autores falam em uma quarta ou até quinta dimensão de direitos fundamentais (Bonavides, 2002; Sarlet, 2009). Nesse sentido, há quem inclua o direito ao acesso à Internet como direito de quarta geração e o direito de não ser clonado (garantia contra manipulações genéticas) como direito de quinta geração. Entretanto, essa não é uma designação unânime. Importante salientar que “boa parte destes direitos em franco processo de reivindicação e desenvolvimento corresponde, na verdade, a facetas novas deduzidas do princípio da dignidade da pessoa humana” (Sarlet, 2009, p. 50). O ponto de consenso na doutrina consiste na formação das três dimensões de direitos fundamentais retro citadas.
2.5. Estado Constitucional democrático de direito e direitos fundamentais
Após a II Guerra Mundial, o Direito passou por várias transformações devido ao fato de ter sido utilizado como manobra legitimadora de atos autoritários.[3] O Constitucionalismo decorrente do pós-guerra mudou o paradigma do Estado, que deixou de ser “Legislativo”, para ser considerado “Estado Constitucional” (Oliveira, 2008, p. 17). Esta nova realidade Constitucional, adversa ao modelo totalitário, aproximou Direito e moral.
Não há espaço para digressões acerca da democracia. Ferrajoli enfatiza que consiste a democracia “unicamente em um método de formação das decisões coletivas”, de modo que estes métodos estabeleçam regras que consagrem a atribuição ao povo, consistente na maioria dos seus membros, do poder direto ou através de seus representantes (2003, p. 227). Entretanto, o caráter representativo do sistema político, “assegurado pelo sufrágio universal e pelo princípio da maioria, é somente um traço da democracia” (Ferrajoli, 2003, p. 230). Trata-se apenas da dimensão formal da democracia.
Menelick de Carvalho Netto, citado por José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, enaltece que:
“Com o final da Segunda Guerra Mundial, o modelo do Estado Social já começa a ser questionado, conjuntamente com os abusos perpetrados nos campos de concentração e com a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaqui, bem como pelo movimento hippie da década de 60. No entanto, é no início da década de 70 que a crise do paradigma do Estado Social manifesta-se com toda a sua dimensão. A própria crise econômica no bojo da qual ainda nos encontramos coloca em xeque a racionalidade objetivista dos tecnocratas e do planejamento econômico, bem como a oposição antitética entre a técnica e a política. O Estado interventor transforma-se em empresa acima de outras empresas. As sociedades hipercomplexas da era da informação pós-industrial comportam relações extremamente intrincadas e fluidas. Tem lugar aqui o advento dos direitos de 3ª geração, os chamados interesses ou direitos difusos, que compreendem os direitos ambientais, do consumidor e da criança, dentre outros. São direitos cujos titulares, na hipótese de dano, não podem ser nitidamente determinados. O Estado, quando não diretamente responsável pelo dano verificado foi, no mínimo, negligente no seu dever de fiscalização ou de atuação, criando uma situação difusa de risco para a sociedade. A relação entre o público e o privado é novamente colocada em xeque. Associações da sociedade civil passam a representar o interesse público contra o Estado privatizado ou omisso. Os direitos de 1ª e 2ª geração ganham novo significado. Os de 1ª são retomados como direitos (agora revestidos de uma conotação sobretudo processual) de participação no debate público, que informa e conforma a soberania democrática do novo paradigma, o do Estado Democrático de Direito e seu Direito participativo, pluralista e aberto” (Carvalho Netto, apud Baracho Júnior (2000, p. 100).
No modelo contemporâneo de democracia, tracejado por Constituições rígidas, para a configuração de validade formal e substancial das decisões políticas, especialmente as leis devem guardar coerência substancial com os direitos fundamentais, princípio da igualdade e manutenção da paz (Ferrajoli, 2003, p. 230). Ao discorrer sobre o Estado constitucional democrático, Canotilho (2002, p. 100) explica que Estado Constitucional é mais que Estado de Direito, em que se assenta na legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de formação das leis. Outra vertente consiste na “legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político” (Canotilho, 2002, p. 100).
A democracia e os direitos fundamentais são os “fundamentos de legitimidade e elementos estruturantes do Estado democrático de direito” (Binembojm, 2008, p. 49). Ainda, explica Binembojm:
“Assim, toda a discussão sobre o que é, para que serve e qual a origem da autoridade do Estado e do direito converge, na atualidade, para as relações entre a teoria dos direitos fundamentais e a teoria democrática.
A partir do que se convencionou chamar de virada kantiana, dá-se uma reaproximação entre ética e direito, com o ressurgimento da razão prática, da fundamentação moral dos direitos fundamentais e do debate sobre a teoria da justiça fundado no imperativo categórico, que deixa de ser simplesmente ético para se apresentar também como um imperativo categórico jurídico. A idéia de dignidade da pessoa humana, traduzida no postulado kantiano de que cada homem é um fim em si mesmo, eleva-se à condição de princípio jurídico, origem e fundamento de todos os direitos fundamentais. À centralidade moral da dignidade do homem, no plano dos valores, corresponde a centralidade jurídica dos direitos fundamentais, no plano do sistema normativo”. (Binembojm, 2008, p. 49-50).
O tema Constituição e Democracia suscita vários debates e controvérsias. O que nos interessará, para fins do presente trabalho, é a relação entre Estado Constitucional Democrático e a posição dos direitos fundamentais. Como aduz Ferrajoli, os direitos fundamentais expressam a dimensão substancial da democracia. Estas considerações são extremamente importantes para a contextualização dos direitos fundamentais na perspectiva contemporânea, de modo a realçar uma das perspectivas do neoconstitucionalismo e da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Explica Binembojm que “há entre direitos fundamentais e democracia uma relação de interdependência ou reciprocidade” (2008, p. 50), ou, como já salientado alhures, há “intima e indissociável vinculação entre os direitos fundamentais e as noções de Constituição e Estado de Direito” (Sarlet, 2009, p. 58). Os direitos fundamentais são, neste diapasão, “conditio sine qua non do Estado constitucional democrático” (Sarlet, 2009, p. 59). Elucida Soares (2001, p. 305):
“A concepção dos direitos fundamentais no Estado democrático de direito caracteriza-se por dupla qualificação de tais direitos. Os direitos fundamentais são concebidos como direitos subjetivos de liberdade pertinentes ao titular perante o Estado e, simultaneamente, como normas objetivas de princípios – objektive grundsatznormen – e decisões axiológicas – wertentscheidugen – que possuem validade para todos os âmbitos jurídicos.”
Ao se conjugar direitos fundamentais e democracia, em uma relação de reciprocidade, surge o Estado democrático de direito, “estruturado como conjunto de instituições jurídico políticas erigidas sob o fundamento e para a finalidade de proteger e promover a dignidade da pessoa humana” (Binembojm, 2008, p. 50-51). Ainda, ensina Binembojm, com fundamento em Daniel Sarmento, que “o Estado e o direito tem a dignidade humana situada no seu epicentro axiológico, razão última de sua própria existência” (Binembojm, 2008, p. 51).
Assim sendo, a perspectiva atual do Estado é fundada no princípio da Constitucionalidade, em que a Magna Carta é a norma suprema do ordenamento, vinculando o legislador e as manifestações estatais aos preceitos constitucionais, “estabelecendo o princípio da reserva da constituição e revigorando a força normativa da constituição (Soares, 2001, p. 304). Ademais, como já ressaltado, a sistematização dos direitos fundamentais alçou os mesmos à dimensão substancial do texto constitucional
3. Neoconstitucionalismo: o ordenamento jurídico constitucionalizado
Salientou-se que o pós-guerra ensejou a releitura do Direito, que culminou na mudança dos padrões constitucionais, reaproximando Direito e moral. Os tempos atuais não mais comportam as digressões de outrora.[4] A história ensina que a evolução humana é pautada em eras.[5] O ponto atual tem como marco fundamental a informação e suas formas de manifestação: rapidez e novidade. O Direito não é alheio à realidade, e nem poderia ser. A dinâmica dos fatos dilui conceitos e concepções jurídicas solidificados outrora. Novos fenômenos e digressões tencionam para a releitura do direito: tensão de ruptura: romper com a ordem vigente.
Segundo Sarmento, o neoconstitucionalismo teve origem no pós-guerra. Houve a “percepção de que as maiorias políticas podem perpetrar ou acumpliciar-se com a barbárie, como ocorrera de forma exemplar no nazismo alemão, levou as novas constituições a criarem ou fortalecerem a jurisdição constitucional, instituindo mecanismos potentes de proteção dos direitos fundamentais mesmo em face do legislador (Sarmento, 2009, p. 14).
Importa salientar que a origem da expressão neoconstitucionalismo é realçada pela doutrina como o estágio evolutivo hodierno do constitucionalismo. Alguns autores salientam tratar-se do constitucionalismo contemporâneo (Barroso, 2009), que assume uma nova roupagem, acarretando mudanças estruturais na esfera normativa.
No neoconstitucionalismo ou constitucionalismo contemporâneo, os princípios jurídicos são valorizados, contendo força normativa e aplicabilidade plena na solução dos casos, notadamente os casos difíceis. Vale-se de métodos abertos para a solução dos casos, como a ponderação e as teorias da argumentação jurídica, como método de solução para os casos. Há a constitucionalização dos direitos, pela previsão de pontos centrais dos diversos ramos do direito na Magna Carta ou pela irradiação dos seus efeitos para os diversos ramos, uma vez que é a norma suprema do ordenamento e o ordenamento infra-constitucional deve guardar consonância com aquela. Outro aspecto importante consiste na aproximação entre Direito e moral, que são estudados como objetos compartilhados, o que culmina na abertura filosófica nos embates jurídicos (Sarmento, 2009, p. 9-10).
Guastini (2007, p. 271-293) elucida, de modo pormenorizado, que as condições para a constitucionalização do ordenamento são: (a) Previsão de uma Constituição Rígida; (b) Garantia jurisdicional da Constituição; (c) Força vinculante da Constituição; (d) Sobreinterpretação da Constituição; (e) Aplicação direta da Constituição; (f) Interpretação das leis conforme a Constituição; (g) Questões políticas sendo discutidas no âmbito judicial.
3.1. Previsão de uma Constituição Rígida
A questão primaz acerca da análise de um ordenamento constitucionalizado consiste na verificação da existência de uma Carta Constitucional escrita, dotada de mecanismos rígidos quanto ao poder de reforma, de modo que seja protegida quando confrontada com a legislação ordinária (Figueroa, 2009, p. 458). Em outras palavras, a rigidez constitucional significa a blindagem normativa se defrontada com as leis ordinárias, de modo que não pode haver derrogação, modificação ou ab-rogação, a não ser se houver procedimento especial para tanto (Guastini, 2007, p. 273). Outro fator que decorre da adoção de uma Constituição Rígida consiste na previsão escalonada do ordenamento jurídico, isto é, a previsão de níveis hierárquicos entre as normas, de modo que a Constituição seja galgada ao patamar superior (Guastini, 2007, p. 273).
3.2. Garantia jurisdicional da Constituição
A par do caráter declaratório de direitos fundamentais, um ordenamento constitucionalizado deve prever um sistema de garantias. A Magna Carta deve ser dotada de mecanismos de controle de conformidade constitucional das leis (Guastini, 2007, p 274; Figueroa, 2009, p. 458).
3.3. Força vinculante da Constituição
No Estado Constitucionalizado a Constituição é considerada como “verdadeira norma jurídica e não como simples declaração programática” (Figueroa, 2009, p. 459). Guastini salienta que o “primeiro aspecto do processo de constitucionalização consiste na compreensão de que a Constituição é um conjunto de normas vinculantes” (2007, p. 275). As normas constitucionais, sem exceção, independentemente do conteúdo ou estrutura, são dotadas de aplicabilidade e obrigam seus destinatários, não sendo simples programas políticos ou relação de recomendações aos poderes (Carbonell, 2009, p. 203) e aos particulares.
3.4. Sobreinterpretação da Constituição
Os interpretes, sejam quais forem (juízes, órgãos estatais ou juristas), não podem valer-se da interpretação literal da Constituição, mas sim da interpretação extensiva da mesma, uma vez que a magna carta é finita, não abarcando todos os aspectos da vida política e social, mas sim uma parte dela (Carbonell, 2009, p. 204; Guastini, 2007, p. 276). Guastini considera que a Constituição não pode ser passível de lacunas, de modo que se houver “falhas normativas”, deve-se valer da sobreinterpretacao do texto maior, de modo a evitar lacunas, construindo normas implícitas para suprir as omissões (2007, p. 276). Ainda, aponta Guastini (2007, p. 276) que:
“A sobre-interpretação da Constituição apresenta dois aspectos: (i) a recusa da interpretação literal e do conexo argumento a contrario senso, que geralmente trazem a lume lacunas (embora o argumento a contrario senso também possa ser usado para preenchê-las); e (ii) a construção de normas implícitas, idôneas para completar lacunas enquanto não sejam evitáveis.
A sobre-interpretação permite extrair do texto constitucional normas idôneas para disciplinar qualquer aspecto da vida social e política. Quando a Constituição é sobre-interpretada não restam espaços vazios de – ou seja, “livres” do – Direito Constitucional: toda decisão legislativa é pré-disciplinada (talvez também minuciosamente disciplinada) por uma ou outra norma constitucional. Não existem leis que possam escapar do controle de legitimidade constitucional.”
3.5. Aplicação direta da Constituição
A quinta condição acerca da constitucionalização do direito para Guastini reside no reconhecimento de que a Constituição é norma regente das relações privadas, não sendo apenas dirigido às autoridades públicas e ao Estado (Carbonell, 2009, p. 205). Todas as relações sociais são abarcadas pela Constituição (Figueroa, 2009, p. 459).
3.6. Interpretação das leis conforme a Constituição
Para Guastini, a “interpretação das leis conforme a Constituição” consiste em um método de interpretação da lei e não da Constituição (Carbonell, 2009, p. 205). Uma perspectiva interessante é a de não tratar apenas do binômio constitucionalidade ou inconstitucionalidade das normas, sendo possível o uso de sentenças intermediárias, interpretativas ou manipulativas, que podem ser redutoras, aditivas ou substantivas (Guastini, 2007; Figueroa, 2009, p. 459).
3.7. Questões políticas sendo discutidas no âmbito judicial
Tendo em vista o patente cunho moral e político dos princípios constitucionais, a Constituição disciplina as relações políticas, uma vez que a regência das relações de poder do Estado é minuciosamente tratada na Carta Maior (Figueroa, 2009, p. 459). Outro aspecto relevante consiste, no caso brasileiro, no que a doutrina processualista enuncia de princípio da universalidade de jurisdição, esculpido no artigo 5º XXXV que diz que “a lei não excluirá da apreciação do Judiciário, lesão ou ameaça a Direito”. A chamada judicialização da política, consiste, portanto, na apreciação, pelo Poder Judiciário, do cumprimento dos direitos e deveres constitucionais por via do direito de ação.
Uma parcela da doutrina diz ser o deslocamento do poder, que antes estava nas mãos do Executivo e do Legislativo, para o Judiciário. O ponto central das chamadas “political questions” consiste na disciplina jurídico-política no texto maior, bem como a incumbência atribuída ao Poder Judiciário de “examinar a argumentação política que está subjacente às normas jurídicas” (Figueroa, 2009, p. 459).
Acerca do Neoconstitucionalismo, sintetiza Luis Roberto Barroso (2007, p. 216) que:
“O neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito.”
4. A constitucionalização dos direitos e o direito civil
4.1 contexto da Constitucionalização
4.1.1. Irradiação das normas constitucionais
Salientou-se acima a relação entre constitucionalismo, democracia e direitos fundamentais, bem como as características do momento atual do constitucionalismo, que prevê a Constituição como norma, disciplinada rigidamente, dotada de força normativa, vinculante a todos. Há a previsão da garantia jurisdicional da Constituição, e o reconhecimento de sobreinterpretação da mesma, com a previsão de interpretação extensiva e admissão de princípios implícitos. Outrossim, sendo o epicentro do ordenamento, suas normas são dotadas de aplicação direta, influindo, por conseguinte, as relações políticas e privadas, assim como na leitura das leis, que devem ser interpretadas conforme a Constituição (Guastini, 2007).
A idéia de supremacia das normas constitucionais faz com que todo o ordenamento infraconstitucional guarde compatibilidade com a norma maior. Ao se falar em constitucionalização do direito, Virgílio Afonso da Silva salienta que “a idéia mestra é a irradiação dos efeitos das normas (ou valores) constitucionais aos outros ramos do direito (2005, p. 39).
Barroso (2009, p. 354) enfatiza que o ponto inicial da constitucionalização do direito deu-se na Alemanha, quando da interpretação do caso Lüth. O Tribunal Constitucional Alemão “assentou que os direitos fundamentais, além de sua dimensão subjetiva de proteção de situações individuais, desempenham outra função: a de instituir uma ordem objetiva de valores”. Vieira de Andrade, ao falar da re-subjetivação das dimensões objetivas, a eficácia irradiante das normas constitucionais, configurou o “alargamento das dimensões objetivas dos direitos fundamentais, isto é, da sua eficácia enquanto fins ou valores comunitários” (2001, p. 149).
Se o sistema consagra direitos e valores, toda a sociedade deve tomar proveito dos seus efeitos, condicionando toda a interpretação dos ramos do Direito, seja público ou privado, vinculando os poderes estatais (Barroso, 2009, p. 355).
4.1.2. O caso Lüth
O caso Lüth (Dimoulis e Martins, 2007, p. 263-278) foi o marco inicial para a análise da constitucionalização do direito. No caso concreto, um cineasta fez um filme e um jornalista propagou uma grande campanha de boicote, dizendo que o cineasta era nazista. Entretanto, o filme em si nada falava acerca do nazismo, consistindo em uma comédia romântica. O boicote era em razão do cineasta e de seu pretenso passado e não quanto ao filme. A represália surtiu efeito e o filme fracassou, resultando em prejuízo ao cineasta que investiu na produção. Em razão disso, o cineasta ingressou com um pedido de indenização, com base em uma norma do Código Civil Alemão (BGB), a qual prevê que todo aquele que causa dano ao outrem tem o dever de indenizar.
O cineasta logrou êxito nas instancias originárias, mas a corte constitucional reverteu o julgamento, uma vez que entendeu que as normas do ordenamento devem ser interpretadas à luz dos valores propostos pelos direitos fundamentais. Assim, em que pese o dispositivo do BGB determinando a indenização, este deveria ser interpretado de acordo com o direito fundamental de liberdade de expressão.
Essa decisão é um dos casos mais influentes do direito constitucional. A partir dela, surgiu toda a construção da constituição como pauta de valores e da eficácia irradiante dos direitos fundamentais ou drittwirkung, que pode ser traduzida como eficácia perante terceiros (Vieira de Andrade, 2001; Sarlet, 2009). A partir de então, surgiu na doutrina a discussão acerca da eficácia das normas de direito fundamental, que será abordada no momento próprio.
Na tradução de Virgílio Afonso da Silva (2005, p. 42), assim se pronunciou o Tribunal Constitucional Alemão:
“A Constituição, que não pretende ser uma ordenação axiologicamente neutra, funda, no título dos direitos fundamentais, uma ordem objetiva de valores, por meio da qual se expressa um (…) fortalecimento da validade (…) dos direitos fundamentais. Esse sistema de valores, que tem seu ponto central no livre desenvolvimento da personalidade e na dignidade humana no seio da comunidade social, deve valer como decisão fundamental para todos os ramos do direito; legislação, administração e jurisprudência recebem dele diretrizes e impulsos.”
4.1.3 Formas de constitucionalização
Virgílio Afonso da Silva aduz que a constitucionalização do direito pode ocorrer por formas diversas e pode ser “levada a cabo por diversos atores” (2005, p. 38). Cita a posição de Gunnar Folke Schuppert e Cristian Bumke, para quem a constitucionalização pode ocorrer por cinco formas:
“(1) Reforma legislativa; (2) desenvolvimento jurídico por meio da criação de novos direitos individuais e de minorias; (3) mudança de paradigma nos demais ramos do direito; (4) irradiação do direito constitucional – efeitos nas relações privadas e deveres de proteção; (5) irradiação do direito constitucional – constitucionalização do direito por meio da jurisdição ordinária” (2005, p. 39).
Silva explica que nem todos os pontos enaltecidos por Schuppert e Bumke interessam para a cenário brasileiro, enfatizando, como importante para o nosso contexto os seguintes pontos (2005, p. 39). Reforma legislativa, por meio do qual operam-se reformas na legislação de modo a adaptá-la à Carta Maior, mas que este é um processo lento, que depende de uma série de fatores, como a mentalidade da sociedade ou a recusa em reconhecer a mudança de paradigma por parte do Judiciário (2005, p. 41). Outro ponto salientado consiste na irradiação do direito constitucional aos demais ramos do direito, que nada mais é do que a “solidificação da submissão desses ramos aos ditames constitucionais” (Silva, 2005, p. 41). A consagração de um sistema de valores no âmbito do Tribunal Constitucional Alemão, por meio de reiteradas decisões, conferiu solidificação da supremacia das normas constitucionais frente às de direito privado (Silva, 2005, p. 42-43).
No que tange aos atores do processo de constitucionalização do ordenamento, identificam-se: (a) o legislador, que tem a missão de moldar o ordenamento infraconstitucional aos ditames constitucionais; (b) o judiciário, por meio da aplicação, interpretação e controle dos atos que abarquem direitos fundamentais (Silva, 2005, p. 44); (c) a doutrina, com a construção de teorias que podem variar, conforme o ramo do direito. Acerca deste ultimo aspecto, salienta Silva (2005, p. 45):
“No âmbito da doutrina jurídica há um embate que tende a não existir para os outros atores da constitucionalização do direito, que é a luta pela preservação da autonomia de cada disciplina. Nesse sentido, mesmo que a tradição civilista não fosse uma tradição consolidada há tanto tempo, ainda assim poderia haver a tendência refratária mencionada [ao processo de constitucionalização do direito], já que uma constitucionalização do direito civil pode não somente implicar uma mudança de paradigma, uma mudança de racionalidade, mas também uma submissão metodológica do direito civil ao direito constitucional. Este é o centro do embate, não um mero problema de tradição versus não tradição.”
Outro ponto de vista enaltecido por Virgílio Afonso da Silva (2005), Luis Roberto Barroso (2009) e Gustavo Binembojm (2008) consiste na constitucionalização do direito segundo Louis Favoreu, mais consentâneo com a realidade brasileira. Para este autor francês há três tipos de constitucionalização. O primeiro deles consiste na chamada constitucionalização-juridicização, que seria a juridicização da Magna Carta (Silva, 2005, p. 48). Outro enfoque é o da elevação da Constituição, ou seja, o que antes era tema relegado ao plano infraconstitucional passou a ser tratado no âmbito da Lei Maior, havendo “um movimento ascendente de repartição material” (Silva, 2005, p. 47).
Estes dois primeiros aspectos são mais consentâneos ao ordenamento francês (Silva, 2005, p. 47). O mais importante é o terceiro aspecto, a que Favoreu chama de constitucionalização-transformação, que consiste na marca universalizante da constitucionalização, fenômeno este que abrangeu vários países (Silva, 2005, p. 48) e, que consiste na previsão constitucional de direitos e liberdades, que se infiltra nos diversos campos do direito, fazendo operar, tendo em vista a supremacia da constituição, a transformação dos ramos do direito (Silva, 2005, p. 48).
De fato, ao se reconhecer a força normativa da constituição, ou seja, a constituição é o ápice do ordenamento e suas normas são dotadas de força cogente, ela irradiará efeitos para todo o ordenamento. Outrossim, antes, as constituições tratavam de direitos individuais e políticos, normatizados sinteticamente. Hodiernamente, salienta Binembojm (2008, p. 63):
“Já no constitucionalismo contemporâneo, que se edifica a partir do advento do Estado Social, e que tem como marcos iniciais as Constituições do México, de 1917, e de Weimar, de 1919, as leis fundamentais passas a imiscuir-se em novas áreas, não só instituindo direitos de caráter prestacional, que reclamam atuações positivas dos poderes públicos e não mais meras abstenções, como também disciplinando assuntos sobre os quais elas antes silenciavam, como ordem econômica, relações familiares, cultura, etc. Neste contexto, as constituições deixam de ser vistas apenas como leis básicas do Estado, circunscritas à temática do direito público, convertendo-se em estatuto fundamental do Estado e da sociedade. O novo papel das Constituições alimenta a crise da vetusta dicotomia direito público versus direito privado, na medida em que implica na submissão de todos os campos da ordem jurídica aos ditames e valores do documento magno.”
Binembojm (p. 65) explica que a constitucionalização não se trata de disciplinar, na seara constitucional, pontos que antes eram objeto da legislação ordinária. Significa a leitura (interpretação e aplicação) infraconstitucional à luz do texto constitucional, “que deve tornar-se uma verdadeira bússola, a guiar o intérprete no equacionamento de qualquer questão jurídica”. Este fenômeno, realçado por Binembojm como sendo concepção neconstitucionalista, implica na releitura dos conceitos e disciplinas, a partir da perspectiva constitucional, operando-se a devida filtragem constitucional do direito.
Luis Roberto Barroso aduz que a constitucionalização do Direito consiste no “efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa por todo o sistema jurídico” (2007, p. 217-218). Ainda, salienta que “os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional” (p. 218), que vincula os poderes tradicionalmente constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário), bem como os particulares, nas suas relações interprivadas.
4.2 O fenômeno no Brasil
A Constituição do Brasil de 1988, a par de simbolizar a transição de um regime autoritário para a consagração do Estado Democrático de Direito, previu no seu corpo inúmeras normas de diversos ramos do direito, ao que Eduardo Ribeiro Moreira chama de “a invasão da Constituição” (Moreira, 2008). O texto final da Carta de Outubro (Bulos, 2009) conferiu trato constitucional para todos os ramos do Direito, em maior ou menor medida (Barroso, 2009, p. 360).
A par da supremacia formal das normas no seio constitucional, a supremacia material não ocorreu imediatamente. Apenas nos últimos cinco ou dez anos que a superioridade axiológica da Magna Carta efetivamente passou a produzir, ainda que potencialmente, os seus efeitos, por meio da abertura jurídica do sistema e pela força normativa dos seus princípios reitores (Barroso, 2009, p. 362).
4.3 Constitucionalização das normas de cunho privado: A previsão de normas infraconstitucionais no corpo Constitucional
Com a constitucionalização do direito civil operou-se a invasão da constituição na esfera privada das relações, irradiando para o direito civil os valores transcendentes do texto constitucional, tais como a previsão da função social, não só da propriedade, mas também do contrato e família, interferindo na autonomia privada, construindo uma nova ordem jurídica, consentânea com os fundamentos e objetivos fundamentais da Constituição (Barroso, 2009, p. 368. Tepedino, 2009, p. 4).
Um dos valores fundamentais da República consiste no princípio da igualdade, que foi consagrado sob o prisma material, irradiando efeitos nas relações privadas em que reconheceu o consumidor como parte vulnerável, necessitando de proteção especial, bem como conferiu trato igualitário aos cônjuges e à filiação, extirpando de vez as discriminações sofridas em tempos não tão distantes. Ainda, verifica-se como consectário dos princípios da solidariedade e justiça, a emergência do princípio da boa-fé objetiva, função social e equilíbrio contratual (Barroso, 2009, p. 368; Chamone, 2006).
Ainda, no que toca ao direito de família, verificou-se a consagração da concepção plural de família, abarcando o casamento, a união estável, as famílias monoparentais e a união homoafetiva. A norma maior tratou de institutos fundamentais inerentes ao direito civil clássico, mas com a irradiação de seus valores maiores, como a solidariedade social, justiça distributiva, isonomia e, principalmente, a dignidade da pessoa humana.
Jorge Mosset Iturraspe salientou, conforme Gustavo Tepedino, que a Constituição Brasileira “produziu o que hoje se chama a constitucionalização do Direito Civil. Incorporou à carta fundamental direitos da personalidade, direitos humanos, direitos do homem ou cidadão, avançando no processo de dignificação da pessoa humana” (2009, p. 4).[6]
Os valores constitucionais prescritos pelo constituinte de 1988 são conformadores do ordenamento jurídico, como ressalta Maria Celina Bodin de Moraes (2003, p. 107), que aduz:
“Tais valores, extraídos da cultura, isto é, da consciência social, do ideal ético, da noção de justiça presentes na sociedade, são, portanto, os valores através dos quais aquela comunidade se organizou e se organiza. É nesse sentido que se deve entender o real e mais profundo significado, marcadamente axiológico, da chamada constitucionalização do direito civil.”
Os institutos do direito privado, como propriedade, empresa, família e relações contratuais “tornam-se institutos funcionalizados à realização dos valores constitucionais, em especial da dignidade da pessoa humana, não mais havendo setores imunes a tal incidência axiológica” (Tepedino, 2009, p. 5-6). Por meio do princípio da dignidade da pessoa humana, conferiu-se a incidência da técnica das relações jurídicas existenciais aos institutos civilísticos acima descritos, mormente no trato jurídico-econômico, fazendo com que a lesão a direitos seja lida sob o prisma preventivo (prevenção de danos), procedendo a reformulação da responsabilidade civil (Tepedino, 2009, p. 14).[7]
Não é objeto do presente trabalho traçar detalhes acerca da irradiação das normas constitucionais, mormente os direitos fundamentais nas relações privadas. O presente trabalho busca apenas traçar um diagnóstico acerca da constitucionalização do direito civil.
O que nos interessa, para fins desta singela pesquisa, é fixar os dados em que se baseia a determinação da constitucionalização do direito. Para tanto, abordar-se a repercussão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, também denominada eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
5. A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais
5.1. Introdução
A decisão do caso Lüth foi pioneira em analisar o seguinte aspecto: é possível invocar diretamente os direitos fundamentais a partir da CF ou é possível invocá-los como exigências para o legislador? Em outras palavras: a eficácia dos direitos fundamentais é imediata (a partir da CF) ou mediata (a partir da lei que obriga o legislador)? Se adotarmos essa segunda idéia, caso não haja lei, não se poderá invocar o cumprimento direto do direito fundamental, mas se pode exigir que o legislador o garanta (Sarlet, 2009).
5.2. Considerações acerca da eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações privadas
Tradicionalmente, a análise dos direitos fundamentais nas suas diversas dimensões consistiu na fixação de direitos dos indivíduos frente ao Estado, dada à desigualdade entre as partes. Quando se abordaram as diversas dimensões de direitos, em uma primeira perspectiva, a histórica, tratou-se da dimensão vertical dos direitos fundamentais, frente aos abusos e omissões estatais.
A questão que se coloca acerca do presente tema consiste em indagar se os particulares estariam vinculados aos direitos fundamentais. A doutrina e a jurisprudência chamam de dimensão horizontal dos direitos fundamentais ou eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, tendo em vista que não apenas o Estado é detentor de poder e passível de cometer abusos e agressões aos direitos fundamentais, mas também os particulares em situações de desigualdade. Os entes privados também cometem abusos e como a constituição é dotada de força normativa, as relações “horizontais” igualmente estão vinculadas aos direitos fundamentais constitucionalmente previstos.
Deveras, a globalização fez com que níveis de desigualdade se acentuassem, fazendo com que o potencial violador dos direitos fundamentais ganhasse maior realce (Sarmento, 2006).
Nos Estados Unidos não há a eficácia horizontal. A chamada doutrina do state action[8] ou negativista não admite a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, uma vez que prepondera, na concepção, o paradigma liberal, limitador das ações estatais (state actions), de modo que não se admite referida eficácia (Sarmento, 2006, p. 189). A crítica que poder-se-ia fazer a tal postura consiste em ignorar o poder privado, o que pode fazer com que efeitos nefastos ocorram. A questão que se coloca acerca dos direitos fundamentais e da sua eficácia horizontal consiste na conexão com a concepção material da desigualdade entre os indivíduos.
O legislador constituinte não previu expressamente a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais tal como feito pelo constituinte português, que a previu explicitamente no art. 18 da Constituição de 1976.[9]
5.2.1 Eficácia indireta dos direitos fundamentais
A doutrina especializada enaltece que no direito alemão prevalece a tese da eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas, compreendida como sendo a concretização daqueles pelos poderes constituídos: Legislativo, Executivo ou Jurisdicional. Tal interpretação é decorrente do texto da Lei Fundamental Alemã, que diz no seu artigo 3º que: “Os direitos fundamentais vinculam o poder legislativo, o executivo e o judiciário como direito aplicável diretamente” (Canaris, 2006, p. 22-24). Outrossim, no caso Lüth, o debate consistiu acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações particulares, em que se entendeu que os direitos fundamentais são indiretamente aplicáveis às relações particulares, o que não impede isto que venha a ser feito por meio da tutela jurisdicional, face à omissão legislativa.
5.2.2 Eficácia direta dos direitos fundamentais
No âmbito da eficácia direta (imediata) dos direitos fundamentais, o critério consiste na “ponderação entre os princípios constitucionais da livre iniciativa e da autonomia da vontade, de um lado, e o direito fundamental em jogo, do outro lado” (Barroso, 2007, p. 234). No que tange à aplicabilidade direta dos direitos fundamentais, salienta Barroso (2007, p. 234):
“O ponto de vista da aplicabilidade direta e imediata afigura-se mais adequado para a realidade brasileira e tem prevalecido na doutrina. Na ponderação a ser empreendida, como na ponderação em geral, deverão ser levados em conta os elementos do caso concreto. Para esta específica ponderação entre autonomia da vontade versus outro direito fundamental em questão, merecem relevo os seguintes fatores: a) a igualdade ou desigualdade material entre as partes (e.g., se uma multinacional renuncia contratualmente a um direito, tal situação é diversa daquela em que um trabalhador humilde faça o mesmo); b) a manifesta injustiça ou falta de razoabilidade do critério (e.g., escola que não admite filhos de pais divorciados); c) preferência para valores existenciais sobre os patrimoniais; d) risco para a dignidade da pessoa humana (e.g., ninguém pode se sujeitar a sanções corporais).”
Portanto, a autonomia da vontade deve correlacionar-se com os direitos fundamentais dos indivíduos, mormente em situações de desigualdade material, dando-se especial preponderância para o resguardo da dignidade da pessoa humana, a qual “impõe limites e atuações positivas ao Estado, expressando-se em diferentes dimensões” (Barroso, 2007, p. 232). No que tange ao direito privado, opera-se a despatrimonialização e repersonalização do direito civil (Tepedino, 2004; Sarmento, 2006; Barroso, 2007, p. 233). Há “ênfase em valores existenciais e do espírito, bem como no reconhecimento dos direitos da personalidade, tanto em sua dimensão física quanto psíquica” (Barroso, 2007, p. 233).
Conclusão
O assunto não se esgota no presente trabalho. Buscou-se, com base em fundamentos históricos, a evolução das dimensões dos direitos fundamentais e suas múltiplas perspectivas no âmbito do constitucionalismo moderno.
Buscou-se tratar dos direitos fundamentais no estado atual do constitucionalismo, que consagra a constitucionalização do ordenamento, elevando ao patamar constitucional matérias que antes eram tratadas em âmbito infraconstitucional. Com a reaproximação do Direito e da Moral, mormente pela consagração nos textos constitucionais dos direitos humanos, conferiu-se dimensão ética às normas constitucionais, consagrando carga axiológica transcendental.
Ao ser concebida como norma superior do ordenamento, a Constituição irradia efeitos perante todo o ordenamento jurídico, fazendo com que o mesmo seja reestruturado face aos valores albergados no texto constitucional.
A doutrina salienta que inúmeros são os fatores que permeiam um ordenamento constitucionalizado. Para fins do presente trabalho, realçou-se a importância da força normativa da Constituição, bem como a eficácia das normas de direitos fundamentais na em todas as relações sociais, com ênfase nas relações privadas.
De fato, se a Magna Carta é epicentro do ordenamento, as suas normas (princípios e regras), portadoras de valores superiores, devem nortear todo o ordenamento jurídico.
A consagração da dignidade da pessoa humana, solidariedade, igualdade e justiça são nortes balizadores das relações privadas, fazendo com que sua carga axiológica irradie efeitos para todo o direito civil, de modo a conferir uma feição existencialista às suas normas infraconstitucionais. Muito ainda tem a ser feito, o que se buscou foi elencar alguns traços caracterizadores da relação entre Constituição, Estado, direitos fundamentais e relações privadas.
Advogado militante. Professor de Direito Processual e Direitos Fundamentais na Universidade Presidente Antonio Carlos – Unipac-Uberaba. Mestrando em Direito Público Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
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