Contravenção do art. 32 da LCP não foi revogada pelo art. 309 do código nacional de trânsito

1. A
contravenção do art. 32 da LCP, após a edição do novo Código Nacional de
Trânsito, tornou-se tema de relativa polêmica.  A discussão diz respeito à
sua vigência.

Em
dois julgamentos relativamente recentes, ambos por unanimidade, o Superior
Tribunal de Justiça admitiu a derrogação (art. 32:  “Dirigir,
sem a devida habilitação, veículo na via pública, ou embarcação a motor em
águas públicas”
) da primeira parte do dispositivo pelo art. 309 do
Código de Trânsito (Dirigir veículo automotor, em via pública, sem
a
devida permissão para dirigir ou habilitação ou, ainda, se
cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano
).

No
RHC nº 8.151-SP, 6ª Turma, Rel. Ministro Luiz Vicente
Cernicchiaro (DJU de 15.03.99, p. 290), destacou-se que “o Código de
Trânsito disciplinou às inteiras a matéria jurídica relativa ao trânsito de
veículos na via pública. Deu-se revogação orgânica. A lei posterior de modo
integral disciplinou o instituto considerado pela legislação revogada. A
contravenção foi substituída pelo crime, mesmo porque a doutrina moderna
repudia as infrações de perigo abstrato. A primeira deixou o rol das infrações
penais. A lei nova mais favorável é retroativa. A contravenção deixou de
existir por superveniência de lei que considerou crime o respectivo fato. A
conduta do art. 32 da LCP teve sua natureza transformada em espécie penal mais
grave. A contravenção deixou de existir; cedeu espaço ao crime. A lei penal
mais severa não alcança fatos anteriores”

No
RHC nº 8.182, também pela 6ª Turma, Rel. o Ministro
Fernando Gonçalves (DJU de 22.03.99, p. 256/7), foi estabelecido: “1º) simplesmente dirigir veículo automotor sem habilitação
configura mera infração administrativa (CT, art. 162, I) e não crime (CT, art.
309). O delito depende de o motorista dirigir de forma anormal; 2º) o art. 32
da LCP, que definia a direção sem habilitação, foi derrogado pelo art. 309 do
CT. O dispositivo subsiste somente em relação a “embarcações”; 3º) se
a direção normal sem habilitação ocorreu antes da vigência do CT deve ser declarada
extinta a punibilidade, a teor dos arts. 5º, XL, da
CF, e 2º, “caput” e 107, III, do CP (“abolitio
criminis”)
.

Na
ótica destes dois julgados, o novo tipo (art. 309 do CT) agregou um dado à
figura contravencional (dirigir veículo automotor em via pública, gerando
perigo de dano) que não consiste num mero detalhamento da descrição típica
anterior, mas em característica nova que no tipo antigo não está nem
necessária, nem lógica, nem implicitamente contida. Ao agregar o requisito
típico especializante, inaugurou uma nova relação
típica proibitiva, descriminante da relação anterior, porque o legislador
deliberou restringir o âmbito de incidência da punibilidade da conduta de
dirigir sem habilitação (No mesmo sentido doutrinam Damásio de Jesus, Crimes de
Trânsito, p. 187; Victor Eduardo Rios Gonçalves, A Derrogação da Contravenção
do Art. 32 da LCP, Boletim IBCCrim
nº 65, de abril de 1998, pág. 4, e Fernando Célio de
Britto Nogueira, O novo Código de Trânsito revogou ou não as contravenções dos arts. 32 e 34 da LCP ? – publicado na Internet).

2.
Não é esta, porém, a exegese que adotados. Por sinal, também há recentes
pronunciamentos do STJ em favor da tese que sustentamos: “RHC 8306-SP;
TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. DIRIGIR VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO. INFRAÇÃO DE MERA
CONDUTA. CONTRAVENÇÃO PENAL. ART. 32 DA LCP. ART. 309 DA LEI Nº 9.503/97. INFRAÇÃO DIVERSA. RECURSO DESPROVIDO. A
conduta de dirigir veículo sem habilitação, por se tratar de infração de mera
conduta, é suficiente para configurar a contravenção prevista no art. 32 da
LCP. O art. 309 do Código Nacional de Trânsito não derrogou o art. 32, tendo,
apenas, criado infração penal mais grave, na hipótese do condutor que, sem
habilitação, ainda tenha gerado perigo de dano (Unânime, Rel.
Min. Felix Fischer, 24.5.1999); “RHC 8.137-SP. ART. 32 DA LEI DAS
CONTRAVENÇÕES PENAIS. Direção de veículo sem habilitação é o
tanto quanto basta para a configuração do delito, não importando se a conduta
causa ou não perigo concreto, sendo suficiente o perigo abstrato”
(Quinta Turma, 16.03.1999 – no mesmo sentido: RHC 8.118-SP, Quinta Turma,
17.12.1998).

O
art. 309 do Código de Trânsito, expressamente revogou o art. 32 da Lei das Contravenções ? Não. Se expressamente não o revogou,
ainda assim o teria implicitamente revogado em face da incompatibilidade entre
os dois dispositivos ?  Não.

3. A
revogação de uma lei decorre da expressa revogação que outra lhe faz
(ab-rogação expressa), ou quando com a nova lei se mostre antagônica, gerando
incompatibilidade (ab-rogação tácita ou implícita), e o art. 309 do Código de
Trânsito não expressou revogado o art. 32 da Lei das Contravenções nem existe
incompatibilidade entre os dois dispositivos.

Se
conflito houver entre ambos, não será um conflito real nem aplicabilidade terão
as regras que regem a aplicação da lei penal no tempo, tal como feito pelos
dois julgados do STJ. Será um conflito aparente, não um conflito
efetivo, real, pois os dispositivos mantém, entre si, uma relação de especialidade
e subsidiariedade que lhes permite uma
co-vigência, em uma situação de contempo-raneidade.

O
conflito é aparente quando ao mesmo fato parecem
enquadráveis duas ou mais normas incriminadoras. A conduta, que é única, parece
subsumir-se em mais de um tipo penal, havendo, aparentemente, frente a único
fato, uma pluralidade de normas contemporâneas  identificando-o
como criminoso.

O
conflito aparente envolve questão de subsunção e não de sucessão de normas
penais no tempo. É aparente, e não real, porque determinados princípios
(especialidade,  subsidiarie-dade e consunção), subjacentes ao ordenamento jurídico
e relacionados à hierarquia das normas, não permitem a efetiva
colisão. 

Pelo
princípio da especialidade, o aparente conflito é solucionado
pela incidência da norma especial. Há relação de especialidade sempre que um
tipo, cotejado com outro, contiver seus elementos, com o acréscimo de
caracteres que o especializam. Especial é o tipo que reúne as elementares do
outro, com os acréscimos que o singulariza, estabelecendo-se uma continuidade
normativo-típica. O outro, é o tipo geral. Entre o geral e o especial há uma
correlação, de modo que a realização do especial também é realização do tipo
geral, prevalecendo, em termos de incidência sobre o fato (questão de
subsunção), o especial sobre o geral, em nome do non
bis in idem
, inclusive porque lex
specialis derogat legi generali

Portanto, o conflito não é real, mas aparente, pois não há pluralidade
de normas contemporâneas
identificando o mesmo fato como
criminoso.

Pelo
princípio da subsidiariedade, corolário do princípio
da especialidade, a norma geral é subsidiária da especial, funcionando como um soldado
de reserva
, na expressão de Nelson Hungria, incidindo apenas quando a
norma especial for excluída. Há, entre as normas que aparentemente conflitam,
relação de titularidade
e suplência, primariedade e subsidiariedade.
Subsidiária é a norma suplente, que descreve infração menos grave. Titular é a
norma principal, que descreve infração mais grave. A subsidiária está embutida
dentro da norma primária.

4.
Aplicáveis os dois princípios à espécie, verifica-se o conflito aparente. A
contravenção do art. 32, na parte relativa à condução de veículo em via
pública, só tem incidência, e aí funciona como soldado de reserva, quando o
crime do art. 309 do Código de Trânsito, cuja descrição típica a abarca, não
tiver enquadramento pela ausência fática do elemento que o especializa:
inocorrência da elementar gerando perigo de dano. Quando o fato
da realidade, além de corresponder à descrição típica da contravenção (dirigir
veículo em via pública sem habilitação
), apresentar o elemento especializante descrito pelo tipo do crime (gerando
perigo de dano
), apenas este incidirá, na condição de tipo
primário.    

Sobre
a matéria, merece ser transcrito o ponto de vista de Fernando de Almeida
Pedroso:

“O
crime descrito no artigo 309 da recente Lei nº
9.503/97, que instituiu o novo Código de Trânsito Brasileiro, contém elemento especializante em relação à contravenção penal do artigo 32
da respectiva Lei, motivo pelo qual não foi a prática contravencional
implicitamente revogada – por incompatibilidade – pelo novo preceito incriminador . Isso porque o delito epigrafado não se
contenta com a simples direção inabilitada de veículo na via pública para a sua
subsunção típica, como sucede na prática contravencional (de simples perigo
abstrato), exigindo, em acréscimo à simples contravenção, a ocorrência do
perigo de dano como condição objetiva de punibilidade. Não se trata de
resultado naturalístico ou tipológico do crime, posto que se o surgimento do
perigo de dano ou o próprio dano estiverem embutidos na direção de vontade do
agente, outra poderá ser a figura penal (cf. nosso “Direito Penal – Parte
Geral – Estrutura do Crime”, nº 5.4). É, pois,
delito de mera conduta, subordinada sua punição, porém, objetivamente, ao
acontecimento que a lei assinalou.

“Sendo o crime tipo especial
em relação à prática contravencional, pela inserção da apontada condição
objetiva de punibilidade, desponta igualmente relevante, entre as disposições
legais em apreço, o princípio da subsidia-riedade,
agregado à contravenção. A
subsidiariedade
consec-tário e corolário da especialidade,
pressupondo, para a sua aplicação, uma relação de geral e especial entre tipos.
Este é o enunciado do princípio: lex primaria derogat legi subsidiariae.
Vale dizer: a enunciação do princípio, literalmente, tem o mesmo significado,
com outras
palavras, que o princípio da especialidade, aduzindo
que o preceito de lei principal (tipo especial) prevalece sobre o que lhe é
subsidiário e supletivo (tipo geral).

“A
importância do princípio de que ora se cuida desponta da sua colocação inversa.
Dessa forma, sempre que um tipo especial não puder, por um motivo qualquer,
abrigar tipicamente o episódio que se analisa e examina,
o tipo geral, subsidiária e supletivamente, como reserva do tipo especial (já
que este contém todos os seus elementos), outorgará guarida típica ao fato. Se
o fato concreto não contiver todos os elementos especializantes
exigidos pelo tipo especial, não será pois terá sua tipificação projetada e
transferida para o tipo geral, que, então, o compreenderá.

“A
subsidiariedade, preleciona WESSELS, reivin-dica a tipicidade para o caso em que uma outra norma
já não intervenha (“Direito Penal”, Parte
Geral, tradução de Juarez Tavares, 1976, pg. 180).

“Por conseguinte, quem dirige automóvel na via
pública sem a devida habilitação, sem criar ou gerar situação concreta de
perigo, não comete o crime descrito no artigo 309 da Lei nº
9.503/97, à falta da necessária condição objetiva de punibilidade exigida, mas
a prática contravencional – subsidiária – prevista no artigo 32 da respectiva
lei, não revogada, portanto, à falta de incompatibilidade contextual, pelo
novel diploma”
Revista da Associação do
Ministério Público de São Paulo, nº 24).

5. Finalmente, tal como muito bem registrado em
aresto da Décima Sexta Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo,
Apelação 1.101.147/6, não é lícito concluir que um novo Código de Trânsito, com
a perspectiva de tratar mais rigorosamente aqueles que colocam em risco a
segurança no trânsito, revogue outras legislações repressivas e, ainda, não
compreenda outras normas penais relativas a estas condutas.
A Conclusão é inequívoca. Se o bem jurídico a ser protegido é o mesmo, a
segurança no trânsito, estas outras condutas perigosas que podem, inclusive
concretamente, colocar em risco a incolumidade pública, continuam
na contravenção da direção perigosa, ainda que dela não tenha cuidado o novo
Código.


Informações Sobre o Autor

Carlos Otaviano Brenner de Moraes

Procurador de Justiça no Rio Grande do Sul
Professor de Direito Penal na Escola da Ajuris, ESMP/RS e da PUC/RS


Equipe Âmbito Jurídico

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