Controvérsias em Torno da Ocupação, Enquanto Modo de Aquisição do Direito de Propriedade em Angola

José Guilherme João Muetunda – Jurista e Docente Universitário[1]. jmuetunda91@outlook.com

Resumo: A ocupação, a par da acessão, é um modo de aquisição do direito de propriedade, cuja aplicabilidade consiste na detenção de coisas móveis, entre as quais os animais, que nunca tiveram dono, ou foram abandonadas, perdidas ou escondidas pelos seus proprietários. Segundo a sistematização do Código Civil em vigor em Angola, o achamento é um caso especial de ocupação, dirigido a coisas móveis perdidas, mas há autores que o consideram figura dotada de autonomia, constituindo um modo de aquisição da propriedade diferente da ocupação.

Palavras-chave: propriedade, ocupação e achamento.

 

Abstract: occupation, along with accession, is a way of acquiring property rights, the applicability of which consists of holding movable things, including animals, which have never had an owner, or have been abandoned, lost or hidden by their owners. According to the systematization of the Civil Code in force in Angola, finding is a special case of occupation, aimed at lost movable things, but there are authors who consider it a figure endowed with autonomy, constituting a different way of acquiring property than occupation.

Keywords: property, occupation and finding.

 

Sumário: Considerações iniciais. 1. Generalidades. 2. Noção de ocupação. 3. Coisas susceptíveis de ocupação: noções e subclasses. 4. Pressupostos da ocupação. 5. Capacidade do ocupante e momento da aquisição da propriedade. 6. Casos especiais de ocupação. 6.1. Animais selvagens com guarida própria (artigo 1320.º). 6.2. Animais ferozes fugidos (artigo 1321.º). 6.3. Enxames de abelhas (artigo 1322.º). 6.4. Animais e coisas móveis perdidas (artigo 1323.º). 6.5. Tesouros (artigo 1324.º). 7. Ocupação em outras ordens da lusofonia. Considerações finais. Referências Bibliográficas.

 

Considerações iniciais

O termo ocupação tem significados variados, cada um com o contexto próprio. Existem culturas em que a escolha da rapariga que será esposa de certo sujeito é feita pelos seus pais, os quais, desde cedo, ocupam, para o efeito, uma recém-nascida, filha de uma família de índole irrepreensível.

Nas periferias de Luanda, geralmente naquelas regiões onde a malha rodoviária é de areia, é familiar ver crianças, muitas delas de barrigas cheias de fome, dispostas nas margens, gritando, por cada carro que passa, “este é meu” ou “esse já ocupei”. As rodas levantam a poeira que acaba acolhida às quantidades nas narinas da rapaziada, mas nada supera a alegria da ocupação platónica.

Há ainda quem diga, voltando à esfera passional, que não é bom namorar uma rapariga, por longos anos, sem cumprir o dever de apresentar-se aos pais da mesma. Com esta filosofia, muitos de nós já foram aconselhados a ocupar o terreno para não perderem a namorada para um outro galanteador. Ocupar o terreno, neste comenos, significa honrar a namorada pedindo-a aos seus pais.

E por falar em terrenos, à parte todas as ilegalidades que as construções anárquicas consustanciam, vezes sem conta ouvimos dizer, até da comunicação social, que populares ocuparam terrenos em determinada localidade, tendo construído casebres de chapa para garantir os direitos constituídos com o acto. A estes juntam-se aqueles que, depois de pacificada a nação angolana, fruto do Acordo de Paz de 4 de Abril, fizeram-se proprietários de muitas residências abandonadas pelos seus anteriores donos.

Em cada um dos paradigmas apresentados, o vocábulo ocupação está presente, mas, neste artigo, importa compreender a sua acepção jurídica, o que será feito com recusa de umas perspectivas doutrinárias e aceitação de outras. Por outras palavras, a nossa exposição visa levantar as posições antagónicas referentes à ocupação, principalmente no que tem a ver com o achamento, o que fazemos sempre em estreito contacto com o que o legislador privado comum estabelece sobre o modo aquisitivo do direito de propriedade em discussão.

Desenvolvido com a didáctica que se impõe, o presente exercício, exclusivamente bibliográfico, responde a necessidades de quem está interessado em saber o que é a ocupação, juridicamente, sobre que coisas incide e quais são os seus casos especiais, só para enunciar estas. Escrito com uma línguagem acessível à comunidade não jurídica, é, deveras, uma fonte de pesquisa para quaisquer interessados, desde os académicos aos profissionais.

 

  1. Generalidades

O direito de propriedade é, por duas objectivas razões, o direito real máximo ou pleno. Em uma primeira vista, a maximez da referida figura jurídico-real consiste na reunião dos poderes de uso, fruição e disposição (artigo 1305.º do Código Civil[2]), o que significa que, em alusão ao princípio da elasticidade, todos outros direitos reais resultam da compressão do direito de propriedade.

O livro terceiro, segundo a sistematização do Código Civil angolano, herança do Estado português, é igualado a uma casa sem quintal, sendo que a porta de acesso ao interior é a mesma que, em sentido oposto, permite a comunicação com a via pública. Estamos, com esta analogia, a referir-nos ao facto do livro das coisas ser falto de uma parte geral, começando, desde logo, com o tratamento da posse (artigo 1251.º), o primeiro do catálogo.

A inexistência da parte geral justifica, como tece Oliveira (2018, p. 207), a “conversão do regime do direito de propriedade num repositório de disposições comuns aos vários tipos de direitos reais de gozo”, ilação a que se chega depois da interpretação do artigo 1315.º e do número 2 do artigo 1302.º, sendo esta a segunda razão da maximez do direito de propriedade.

Pelo papel que assume nas relações civilistas, o direito de propriedade vem amparado na Constituição da República de Angola nos termos dos artigos 14.º e 37.º, uma incontornável derivação da Declaração Universal dos Direitos Humanos que, consagrando-o no seu artigo 17.º, é relegado à categoria de direito que integra o círculo mínimo conferido à espécie humana.

Situado no Título II do livro III, das Coisas, entre os artigos 1302.º a 1438.º-A[3], o direito real maior pode ser constituído por “contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei”, conforme o artigo 1316.º, ponto de partida e chegada de todas as cogitações do presente artigo científico. Marginalizados todos os outros factos constitutivos, a nossa preferência recaiu sobre a ocupação por ser o facto constitutivo em torno do qual existe uma grande controvérsia doutrinária, a despeito de toda a sua historicidade.

E por falar em historicidade, a ocupação tinha a reputação de principal facto constitutivo do direito de propriedade, entre os originários, o que marcou, por muito tempo, o Direito romano. Por outras palavras, a detenção de uma coisa móvel que não tinha dono, acompanhada do animus domini, era o dominante modo de adquirir propriedade (OLIVEIRA, 2018, p. 230).

Parafraseando Vieira (2019, p. 638), abundava, à mercê do Direito romano, uma variedade de res nullius, com elevada expressão para os animais selvagens, os despojos de guerra e os produtos do mar, entre os quais chamamos as pérolas, conchas e pedras preciosas descobertas ao longo das margens.

 

  1. Noção de ocupação

O legislador privado comum não apresenta literalmente a noção de ocupação, talvez advertido pelo brocardo omnis definitio in iure civili periculosa est, mas a definição pode ser construída considerando a previsão do artigo 1318.º, cuja epígrafe é “coisas susceptíveis à ocupação”. No referido enunciado legal, depreende-se a ideia de que a ocupação é o modo de aquisição da propriedade por via da detenção de “animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários”, com a obediência que se deve ao princípio da legalidade, expressão máxima do princípio da tipicidade.

Duarte (2020, p. 58), numa aproximação puramente doutrinária, entende que “a ocupação consiste na apropriação de uma coisa sem dono ou, por outras palavras, na apreensão material de uma coisa sem dono com a intenção de a adquirir”. Esta definição merece, de nossa parte, uma inadiável observação, também reconhecida pelo próprio autor: a ocupação pode incidir também sobre coisas que têm proprietário, mas em situação de serem tidas como perdidas ou escondidas.

Ao estabelecer que “podem ser adquiridos por ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários”, o que nós consideramos ser uma definição indirecta, o legislador reserva o instituto da occupatio, como diziam os antigos romanos, aos animais e outras coisas móveis, afastando claramente as coisas imóveis.

No direito angolano, à semelhança dos ordenamentos que lhe são vizinhos, mormente pelo passado comum, como é o caso de Portugal e Moçambique, as coisas imóveis com proprietários desconhecidos consideram-se património do Estado (1345.º), o que justifica o seu afastamento do regime jurídico da ocupação.

 

  1. Coisas susceptíveis de ocupação: noções e subclasses

Não é nossa pretensão converter este artigo em teoria geral da ocupação, mas, movidos pelos melhores princípios da pedagogia, entendemos ser mister dedicar alguma atenção aos conceitos dominantes, o que fazemos com recurso ao estatuto jurídico das coisas, repositório da sua noção e classificação.

Adentrando imediatamente o sentido jurídico de coisa, cedemos lugar ao número 1 do artigo 202.º, no qual o legislador entendeu: “diz-se coisa tudo o que pode ser objecto de relação jurídica”. A definição acima tem merecido inúmeras críticas de jurisconsultos, pela abrangência ou amplitude que se outorga a coisas. Pinto (2005, p. 341) apedrejou, com judiciosidade, a proposição jurídica incompleta em causa referindo que “há entes susceptíveis de serem objecto de relações jurídicas que não são coisas em sentido jurídico”, sendo as prestações e as pessoas os exemplos mais próximos.

Atento à falta de rigor da norma ora aventada, Pinto (2005, p. 342), citado por Dono (2014, p. 104), sugere que as coisas sejam definidas, no sentido jurídico, “como os bens (ou os entes) de carácter estático, desprovidos de personalidade e não integradores do conteúdo destes, susceptíveis de constituírem objecto de relações jurídicas”. Ao considerar que as coisas têm carácter estático, o autor distingue-as claramente das prestações, evitando a inadequada extensão do legislador.

Seguindo no diapasão das coisas, importa agora a sua classificação, pese embora se reconheça que a multiplicidade existente não permite que sejam estabelecidas classes taxativas. Nesta ordem de ideias, a interpretação que se faz ao artigo 203.º, sob a epígrafe “classificação das coisas”, apesar da vastidão da lista trazida, deve ser tida por meramente exemplificativa, contanto que há classes que não foram registadas, como as coisas corpóreas e incorpóreas, resultantes do artigo 1302.º.

Entre os tipos previstos no artigo 203.º, principiam, e sobressaem, as coisas móveis e imóveis. Interessam-nos mais as coisas móveis, porém a sua dogmática impõe que se comece pelo seu antónimo, as coisas imóveis, isto porque o legislador chama por coisas móveis todas aquelas que não são imóveis, como resulta do número 1 do artigo 205.º.

À luz do artigo 204.º, são coisas imóveis: os prédios rústicos (parte delimitada do solo e construções nele feitas que não tenham autonomia económica) e urbanos (edifício implantado no solo, somando-se os terrenos que lhe sirvam de logradouro); as árvores, os arbustos e os frutos naturais (sempre que ligados ao solo); os direitos inerentes aos imóveis supracitados; as partes integrantes[4] dos prédios rústicos e urbanos

A enumeração que acabamos de avançar obedece ao numerus clausus, o que quer dizer que tudo o que não consta na lista em causa não configura coisa imóvel, sendo, por exclusão de partes, coisa móvel. Visto deste modo, e porque assim consta no artigo 1318.º, apenas as coisas não consignadas no artigo 204.º é que podem ser susceptíveis de ocupação. O excerto “animais e outras coisas móveis” concorda com a teoria de que os animais são uma subespécie de coisas móveis, as semoventes. Assim os consideramos, enquanto o estatuto jurídico dos animais não encontra catre entre nós.

Retoma-se que a ocupação, por imperativo do artigo 1318.º, tem por objectos animais e outras coisas móveis. Na primeira parte, acresce-se, no sentido cada vez mais restritivo, que os animais e as outras coisas móveis devem ser res nullius, que nunca tiveram donos. Esta primeira parte é, diga-se mesmo, a que faz comunidade ou regra. Em segundo lugar, não incidindo sobre res nullius, a ocupação deve estar voltada a coisas móveis abandonadas, perdidas ou escondidas pelos respectivos proprietários.

Ainda em gesto de fundamentação teórica, aproveitando-nos dos estudos de Soares, Crispim, Fernandes e Alves (2022, p. 230), “as coisas abandonadas são aquelas cujo titular as excluiu da sua esfera jurídica”, prossupondo renúncia do direito de propriedade que incide sobre elas. As coisas em estado de abandono, enquanto não forem apropriadas por outros titulares, são tidas como res nullius, à semelhança daquelas que nunca tiveram proprietários, como bem assevera Oliveira (2018, p. 230).

Continuando na seara de Soares, Crispim, Fernandes e Alves (2022, p. 232), entende-se por coisas perdidas todas aqueles que estão em um lugar que o proprietário ignora ou desconhece. Vale, para as coisas esquecidas, o mesmo tratamento que se dá às coisas perdidas, salvo se, apesar de não fazer conta delas, continuarem em seu poder. Por fim, coisas escondidas são aquelas que são colocadas longe do alcance das pessoas, seja voluntariamente ou por causas fortuitas.

 

  1. Pressupostos da ocupação

Com toda a franqueza, nos instantes anteriores já esboçamos algumas linhas sobre os pressupostos ou requisitos do instituto em abordagem, mas, por ter sido de forma ocasional e, por conseguinte, salteada, não pretere a reapreciação em subsecção própria, com maior delimitação e profundidade, como fazemos a seguir.

Vieira (2019, p. 638) infere que antigamente, para lançar mãos à ocupação, a coisa, materialmente apreendida, tinha que ser res nullius e o agente movido pelo animus de adquirir a propriedade sobre a referida coisa. Para esclarecer, era exigida uma tríade de requisitos, a saber: que a coisa fosse sem dono; que houvesse apreensão material; que existisse intenção de adquirir a propriedade relativa à coisa.

Hodiernamente, como afirma o autor citado no parágrafo anterior, recusa-se a junção do elemento psicológico, fundamentando tal posição com a ideia de que o artigo 1318.º, analisado literalmente, em nada remete à intenção de adquirir a propriedade. Nós, ao contrário, entendemos que o animus domini continua actual e localizável na norma citada, uma vez que não nos parece justificável a verificação do corpus desacompanhado do animus, principalmente quando a ocupação incide sobre res nullius.

Entendemos que a apreensão material de uma coisa móvel sem dono não é concebível sem a presença da intenção do detentor fazer-se proprietário, valendo-nos a doutrina timorense de Soares, Crispim, Fernandes e Alves (2022, p. 230). Afinal, se não importa fazer-se proprietário, a ocupação em si perde logicidade.

Oliveira (2018, p. 231) afirma que o Código Civil, de ius condito, não acolheu o requisito psicológico, “uma vez que não contém qualquer referência, directa ou indirecta, à intenção do ocupante”. É verídico que a interpretação jurídica deve ter por base o elemento literal, mas entendemos que a teleologia da ocupação não permite que se recuse o pressuposto cognitivo.

Em suma, é possível concatenar, no artigo 1318.º, uma tríade de requisitos, os quais são: que a coisa movel seja sem dono, abandonada, perdida ou escondida; que haja apreensão material; que exista a intenção de adquirir a propriedade.

 

  1. Capacidade do ocupante e momento da aquisição da propriedade

Com uma só chamada ou subsecção, queremos responder a duas interrogações indispensáveis neste estudo sobre a ocupação, as quais são: quem pode adquirir por ocupação e em que momento a propriedade considera-se constituída?

Para a primeira interrogação, quem pode ser ocupante, vale-nos a ideia de que a medida é a capacidade de gozo, uma vez que, em relação à posse, o artigo 1266.º estabelece que, relativamente às coisas susceptíveis de ocupação, até aqueles que não têm o uso da razão, os incapazes tecnicamente, podem adquirir. Em síntese, todos podem adquirir a propriedade por via da ocupação.

A propriedade adquirida por ocupação é originária. Dito doutro modo, não traz à conversa o princípio da transmissibilidade, uma vez que a constituição do direito opera ex novo. O que interessa saber, e esta é a segunda interrogação, é o momento em que a aquisição tem lugar. À luz da alínea d) do artigo 1317.º, o momento da aquisição pela ocupação, a par da acessão, é o da verificação dos factos respectivos.

Entendendo que a porção “factos respectivos” surge em relação aos factos que dão corpo à ocupação e àqueles que materializam a acessão, a interpretação óbvia da norma em causa é a que indica, para a ocupação, a apreensão material da coisa como o momento da aquisição do direito de propriedade.

O que deve ser observado é que nem sempre a aquisição é imediata. Sempre que a ocupação incide sobre res nullius, a aquisição é imediata, havendo completa concordância com o momento da detenção da coisa. Apesar da ocupação de coisas que têm dono, como é o caso do achamento e descoberta de tesouros, impor ao ocupante algumas diligências em prol dos direitos do primitivo dono, a aquisição do direito de propriedade reporta-se sempre ao momento da apreensão material da coisa. É até um vislumbre da característica da prevalência ou preferência.

 

  1. Casos especiais de ocupação

Temos vindo a defender a ideia de que a ocupação incide sobre coisas móveis que não têm proprietários, ou, quando têm, estão na qualidade de coisas abandonadas, perdidas ou escondidas. Dessa premissa resta óbvia a amplitude da ocupação, cujo regime está situado entre os artigos 1318.º e 1324.º. Afastados os casos de caça e pesca, que em conformidade com o artigo 1319.º são regulados por legislação especial, segue o tratamento dos casos consignados pelo legislador civilista comum:

 

6.1.     Animais selvagens com guarida própria (artigo 1320.º)

Para início de exposição, sublinhe-se que este caso é referente aos animais selvagens que, por acção humana, habitem em determinado local devidamente preparado, com as mais variadas matérias, para os albergar. Para quem já visitou um zoológico, por exemplo, deve estar a estabelecer as conexões de que precisa para compreender o nosso enunciado.

Percebe-se, no número 1, tal como também sugere Vieira (2019, p. 640.º), que havendo emigração espontânea da guarida do proprietário a que pertenciam, habitando uma outra guarida de dono diverso, este passa a ser proprietário, sempre que haja impossibilidade de serem individualmente reconhecidos pelo proprietário inicial. Sendo possível o reconhecimento singularizado, o antigo dono pode recuperá-los, uma vez que o faça sem prejudicar o pretenso novo proprietário.

A título de exemplo, suponha-se que Manuela tenha uma guarida elefantina localizada a metros da guarida de Joana, também de elefantes. Com a expontaneidade que se impõe, um elefante, avaliado em 500,000,00 (quinhentos mil Kwanzas) desabita a guarida da primeira e aloja-se na guarida da segunda, confundindo-se com as encontradas. Assim configurada a hipótese, Manuela perde o seu elefante para Joana. Não se confundindo, o que significa que ela consegue reconhecer o seu elefante no novo universo, pode recuperá-lo sem ofender a propriedade de Joana.

Nos casos em que a emigração tem por base uma fraude ou artifício do titular da guarida em que se alojaram, este tem a obrigação de entregar os animais ao proprietário da guarida de origem, ou, não sendo exequível esta solução, pagar uma indemnização cujo montante é o triplo do valor dos animais em causa. Portanto, o número 2 aduz uma excepção ao número 1.

Retomando o exemplo do elefante de Manuela, a deslocar-se para a guarida de Joana por fraude imputada à segunda, esta fica obrigada a devolvê-lo, ou, não sendo possível a restituição in natura, pagar o montante indemnizatório de 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil Kwanzas), que é o valor do elefante multiplicado por três.

 

6.2.     Animais ferozes fugidos (artigo 1321.º)

Diferente da norma anterior, exclusivamente voltada aos animais selvagens, estamos agora diante da ocupação de animais ferozes, os quais podem ser domésticos ou selvagens. O que se tem de regime é que, quando animais ferozes e maléficos evadem das clausuras dos seus donos, podem ser livremente destruídos ou ocupados por quaisquer pessoas que os encontrem.

Numa ou noutra acepção, entendemos que a razão é a perigosidade que resulta do facto de um animal sanguinário estar à solta. Neste sentido, Soares, Crispim, Fernandes e Alves (2022, p. 232) advertem que o regime aplicável aos animais ferozes só se admite se a ferocidade for comprovadamente efectiva, sendo inegável que venham a “fazer mal às pessoas, o que pode não suceder se estiver acorrentado ou sujeito a açaimes, por exemplo”.

 

6.3.     Enxames de abelhas (artigo 1322.º)

Como uma clara manifestação do direito de sequela, característico dos direitos reais, o proprietário de um exame tem o direito de perseguir e capturá-lo em prédio pertecente a outra pessoa, cabendo-lhe responder pelos danos resultantes do exercício do direito referido (número 1).

Se a perseguição não for imediata, ou se decorrerem quarenta e oito horas (dois dias) sem que o enxame tenha sido capturado, o proprietário do prédio em que se alojarem faz-se proprietário do mesmo por via da figura que é nosso objecto de estudo. Ademais, preenchido o requisito temporal atrás apresentado, não se apropriando do enxame, o proprietário do prédio em que se encontre pode consentir que seja ocupado por terceiros, ao que Vieira (2019, p. 641) reage tratando como excepção à regra presente no artigo 1318.º.

 

6.4.     Animais e coisas móveis perdidas (artigo 1323.º)

Para os casos de ocupação de animais e outras coisas perdidas, a doutrina tem por tradição atribuir o nome de achamento. Em torno do achamento, porém, há uma controvérsia muito grande, havendo duas correntes doutrinárias: por um lado os que defendem que o achamento é uma figura autónoma, portanto diferente da ocupação; os que perfilham a tese de que o achamento é uma espécie de ocupação.

A primeira corrente, entre nós assinada por Oliveira (2018, p. 235) e Vieira (2019, p. 643), apresenta como nota que distingue o achamento da ocupação a razão daquela incidir sobre coisas móveis perdidas, portanto com dono, quando à ocupação estão reservadas as res nullius. Digna de adopção? Deixemos a resposta para depois de expusermos a segunda teoria.

Duarte (2020, p. 60), ao admitir que o artigo 1318.º inclui nas coisas susceptíveis de ocupação, além das res nullius e res derelicta, as coisas móveis perdidas ou escondidas, coloca-se em defesa da segunda corrente, a que trata o achamento como expressão ou hipónimo da ocupação. A este juntam-se Soares, Crispim, Fernandes e Alves (2022, pp. 232-234), em concordância com o regime jurídico da ocupação consagrado pelo legislador privado comum moçambicano e, coincidentemente, angolano.

Somos de opinião que a segunda corrente é a mais judiciosa, por estar em conformidade com o artigo 1318.º, que coloca, entre as coisas móveis sujeitas à ocupação, as que não têm dono, primeiro, admitindo, também, as que, embora tenham donos, estão em situação de abandono, perda ou escondimento. Para melhor esclarecer as percepções, segue, ipsis verbis, o texto legal: “podem ser adquiridos por ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições dos artigos seguintes”.

Uma outra razão para fundamentar a nossa preferência consiste no seguinte: quisesse o legislador conferir autonomia ao achamento, trazê-lo-ia, na sistematização do Código Civil, numa secção própria, retirando-o da Secção II do capítulo referente aos modos de aquisição do direito de propriedade, o que também teria imposto a sua constância na lista brindada pelos artigos 1316.º e 1317.º. Aliás, não se admite que o achamento venha ser acolhido pelo numerus apertus constante na parte final do primeiro artigo supracitado, “demais modos previstos na lei”, uma vez que quem faz o mais faz o menos.

A primeira corrente é de inegável incongruência. Não se percebe, por exemplo, qual deve ter sido a motivação de certos autores que, embora sejam defensores da autonomia do achamento, literalmente afirmam que é um facto aquisitivo da propriedade às expensas da ocupação na sistemática do Código Civil (OLIVEIRA, 2018, p. 236).

Agora que está denunciado o nosso partido, a nossa corrente, é oportuno adentrarmos o regime jurídico da ocupação na perspectiva de achamento, explicando, desde logo, o número 1 do artigo 1323.º, segundo o qual quem encontra animal ou outra coisa móvel perdida, não ignorando o titular do direito de propriedade, tem a obrigação de restitui-lo ao dono, ou endereçar-lhe aviso do achado. Desconhecendo o proprietário, o achador deve tomar as diligências de anunciar o achado pelos meios convenientes e usuais, sempre tendo em conta o valor da coisa achada e as possibilidades da localidade, ou ainda emitir um aviso às autoridades.

Cumpridas as diligências impostas pelo número 1 do artigo em meditação e não tendo lugar a reclamação da coisa pelo respectivo proprietário dentro do prazo de um ano, a coisa perdida passa a ser propriedade do achador, estipula o número 2.

Na eventualidade do proprietário responder ao aviso ou ao anúncio dentro do prazo estabelecido, o que lhe dá o direito à restituição da coisa antes perdida, este tem o dever de indemnizar o achador pelos prejuízos havidos e pelas despesas realizadas com o fito de materializar o suum cuique tribuere. Além do direito à indemnização, impõe o número 3 que o achador tem também o direito de ser premiado pelo proprietário, considerando o valor da coisa móvel achada, segundo os cálculos adiante:

  • Até ao valor de mil kwanzas, 10%;
  • Sobre o excedente de mil kwanzas até cinco mil kwanzas, 5%;
  • Sobre o restante, 2,5%.

É muito comum, entre nós, os achadores entregarem os achados às autoridades, a Polícia Nacional em especial, o que não tem acolhimento legal, já que o direito de retenção é conferido àquele que achou a coisa, como garantia da satisfação dos seus direitos por parte do proprietário inicial, aparecendo, ou, se o achado não for reclamado, fazer-se proprietário. Sói dizer-se que o achado não é roubado, máxima que encontra respaldo legal nesta abordagem. Logo, à Polícia Nacional basta um aviso, não a traditio. Ademais, havendo perda ou deterioração da coisa achada, enquanto estiver retida pelo achador, este não responde por tais prejuízos, salvo se tiver agido com dolo ou culpa grave (numero 3).

 

6.5.     Tesouros (artigo 1324.º)

A descoberta de tesouros é a matéria com que o Código Civil encerra a ocupação, tratando-a em três numeros cujos moldes são expostos nesta subsecção do nosso trabalho. Antes de mais, reputamos fundamental referir que são tesouros, para efeitos de ocupação, as “coisas móveis com considerável valor que tenham sido escondidas pelo seu dono”, como sugere Oliveira (2018, p. 238).

Porém, a parte final da citação anterior, embora concorde com a parte final do artigo 1318.º, por fazer descambar no entendimento de que a coisa valiosa deve ter sido, necessariamente, escondida ou enterrada pelo proprietário, merece uma douta reapreciação, sendo que a melhor solução é a que considera que os tesouros podem resultar do escondimento ou enterramento por factos involuntários (naufrágios, derrocadas, inundações, avulsões, etc), aproveitando-nos do contributo de Soares, Crispim, Fernandes e Alves (2022, pp. 234, 235).

O número 1 do artigo relativo aos tesouros tem a seguinte previsão: “Se aquele que descobrir coisa móvel de algum valor, escondida ou enterrada, não puder determinar quem é o dono dela, torna-se proprietário de metade do achado; a outra metade pertence ao proprietário da coisa móvel ou imóvel onde o tesouro estava escondido ou enterrado”.

Pergunta-se, por ocasião da norma transcrita, que solução deve ser dada aos casos em que o achador é proprietário da coisa móvel ou imóvel onde o achado estava escondido ou enterrado? Sem a mínima hesitação, concordamos com Duarte (2020, p. 61), pois entende que o achador faz sua a totalidade da coisa achada de valor significativo. A ordem civil comum brasileira, antecipando aqui a subsecção do Direito comparado, no quesito em causa, estabelece, nos termos do artigo 1.265.º, que “o tesouro pertencerá por inteiro ao proprietário do prédio, se for achado por ele, ou em pesquisa que ordenou, ou por terceiro não autorizado”.

No segundo número da norma rainha da descoberta de tesouros, já voltando à ordem angolana, ao achador de tesouros são atribuídos os deveres do achador comum, previstos no número 1 do artigo 1323.º, salvo quando haja evidências de que o escondimento ou enterramento do tesouro teve lugar há mais de duas décadas.

Se o tesouro foi escondido ou enterrado há menos de 20 anos e o achador não cumprir o disposto no número 2 do artigo 1324.º, que remete de forma explícita para o número 1 do artigo 1323.º, ou apropriar-se total ou parcialmente do achado sabendo a quem pertence, perde para o Estado todos direitos que teria. O mesmo coloca-se ao achador que oculta o paradeiro do tesouro do legítimo proprietário.

 

  1. Ocupação em outras ordens da lusofonia

Em gesto de Direito comparado, esta subsecção do presente exercício científico visita algumas ordens da lusofonia para compreender os vectores atribuídos à ocupação, périplo que não é holístico por conta das nossas limitações, mas que busca, em cada latitude, entenda-se continente, em que a expressão portuguesa está presente, uma nótula.

A primeira pousada é Portugal, onde não se acha diferenças com a ordem angolana, contanto que, estabelecendo a ocupação entre os artigos 1318.º a 1324.º, mantém-se fiel ao regime que Angola adoptou em 1975, aquando da sua independência. De pormenor, refere-se apenas a grafia das percentagens do prémio[5] previsto no número 3 do artigo 1323.º, quanto ao achamento, em extensão, diferente de Angola que as tem em compreensão.

Regime completamente igual têm as ordens timorense (os artigos 1239.º a 1244.º do Código Civil são dedicados à ocupação) e moçambicana, nesta última com os artigos a corresponder com os estabelecidos no Código Civil português. Uma excepção, nos casos específicos, a ordem de Timor-Leste não faz qualquer alusão ao caso do artigo 1322.º, sob a epígrafe “enxames de abelhas”. Será pela inegável redundância?

O Código Civil brasileiro, no que toca à ocupação, afigura-se singular na lusofonia. Ao estabelecer, por via do artigo 1.263.º, que “quem se assenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei”, amplia a incidência do instituto às coisas além das móveis. A despeito desta ampliação, o legislador civil brasileiro não admite ocupação de coisas perdidas nem de coisas enterradas, o que traduz uma restrição em relação à ordem angolana.

A expressão “para logo”, presente no artigo em causa do Código Civil brasileiro, denuncia que a constituição do direito de propriedade é imediata, sendo dispensadas quaisquer diligências e isso explica-se pelo facto da ocupação incidir exclusivamente sobre res nullius ou res derelicta. Esta última, já que o abandono é modo de extinção da propriedade, acaba sendo equivalente à primeira.

Uma outra especialidade do Brasil é que o achamento de tesouros é, de ius condito, um modo autónomo de aquisição do direito de propriedade, estando previsto em secção própria (Secção III, Capítulo III, sobre a aquisição da propriedade móvel), antecedida pela secção da ocupação.

 

Considerações finais

Ao concluir, queremos consolidar a ideia de que o nosso legislador privado comum define, como coisas susceptíveis à ocupação, os animais e outras coisas móveis, afastando as coisas imóveis do regime da figura estudada. A ser assim, o paradigma por nós apresentado na introdução, relativo às construções anárquicas em terrenos ocupados por populares, não tem qualquer acolhimento se tivermos em conta a acepção jurídica deste instituto.

Para o Direito angolano, não basta que o objecto da ocupação seja coisa móvel, pois adiciona-se a necessidade desta não ter dono, ou, quando tem proprietário, esteja em situação de perda ou escondimento, o que permite estabelecer uma ocupação regra (sobre res nullius e res derelicta) e excepcional (sobre coisas perdidas ou escondidas).

Por ser de eficácia imediata, não há tratamento pormenorizado sobre a ocupação quando esta incide sobre coisa que nunca teve proprietário, ou, tendo tido, são reputados como direitos renunciados. Os casos que preenchem as páginas do Código Civil dizem respeito à ocupação de coisas que podem ser reclamadas pelos proprietários primitivos, sendo aqui onde são inseridos os casos especiais sobre a ocupação de animais, o achamento e a descoberta de tesouros.

Em relação ao achamento, uma acirrada discussão é ocasionada pela doutrina, colocando alguns autores entre os defensores da sua autonomia face à ocupação, ao contrário de outros que, em concordância com o legislador, encontram no achamento uma expressão da ocupação.

Definitivamente, não há razões para controvérsias, se considerarmos o ius condito que literalmente trata o achamento e a descoberta de tesouros como casos especiais da ocupação, enquanto modo de aquisição do direito de propriedade. Desta feita, a admissibilidade da corrente que autonomiza o achamento, na ordem civil angolana, deve estar atrelada à necessidade de reforma legislativa, sendo, assim, uma questão de ius condendum.

Ita ius est.

 

Referências Bibliográficas

DONO, J. S. (2014). Teoria Geral do Direito Civil. Lobito: Escolar Editora.

 

DUARTE, R. P. (2020). Curso de Direitos Reais. Cascais: Principia.

 

OLIVEIRA, J. D. (2018). Manual de Direitos Reais. Luanda: Imprensa Nacional E.P.

 

PINTO, M. (2005). Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra: Almedina.

 

SOARES, A., CRISPIM, J., FERNANDES, L., & ALVES, T. (2022). Lições de Direitos Reais: Timor-Leste (2.ª ed.). Porto: Universidade do Porto.

 

VIEIRA, J. A. (2019). Direitos Reais de Angola (3.ª ed.). Lisboa: Petrony Editora.

 

[1] Licenciado em Direito, ramo Jurídico-Económico (2018), e Mestrando em Economia, Ordenamento do Território e Desenvolvimento Regional, Universidade Metodista de Angola. Com pós-graduação em Agregação Pedagógica certificada pelo Instituto Superior de Ciências da Educação, Luanda, actualmente ministra, entre outras, a cadeira de Direitos Reais na sua casa de formação e no Instituto Superior de Angola, ISA.

[2] Todos os artigos citados sem referência do diploma legal pertencem ao Código Civil angolano.

[3] O artigo 1438.º-A foi introduzido pela Lei n.º 9/11 de 16 de Fevereiro, Lei de Alteração do Código Civil, ampliando o regime da propriedade horizontal, com as necessárias adaptações, a conjunto de edifícios contíguos, funcionalmente ligados entre si pela existência de partes comuns, como são os condomínios.

[4] Consideram-se partes integrantes aquelas que estão materialmente ligadas ao prédio com carácter de permanência.

[5] Ver a parte final da subsecção 6.4.

Âmbito Jurídico

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