Resumo: Em vista dos frequentes debates que ocorrem hoje em torno do tema cotas raciais em universidades públicas, o presente artigo apresenta uma análise dos principais argumentos utilizados na petição inicial da ADPF 186, que busca declarar a inconstitucionalidade do sistema de cotas raciais adotado pela UnB. Além disso, utiliza-se a concepção de esfera pública desenvolvida por Habermas e pelo Pluralismo Jurídico para fundamentar a implementação do referido sistema enquanto política pública capaz de conceder, aos negros, subsídios para estes possam, além de alcançar progresso intelectual, sentir-se, de fato, sujeitos de direito. Isso só se dá quando o indivíduo vai além da condição de mero espectador do que ocorre na esfera pública, e passa a participar de forma efetiva e equiparada das deliberações de tal esfera. Este trabalho foi orientado pela Dra. Maria Sueli Rodrigues de Sousa.
Palavras-chave: Cotas raciais, ações afirmativas, esfera pública, igualdade material, ADPF 186.
As ações afirmativas raciais implementadas pelo poder público, por vezes, tem sido tema de debates que questionam, principalmente, sua real significação e sua constitucionalidade. De um lado, são entendidas pelos indivíduos por elas assistidos como formas de tornar a sociedade mais justa, visto que propiciam igualdade fática, e, de outro, são vistas por segmentos sociais contrários como meros atos de benevolência do governo, violadores de princípios constitucionais. É relevante enfatizar que tais políticas públicas encontram-se apoiadas numa interessante proposta de que diante das relações desiguais, às quais estão expostas as minorias, seja garantida a equiparação material (a equiparação material está sendo usada no sentido de igualdade de condições ou de oportunidades), abrindo, dessa forma, novos canais de participação dessas minorias na esfera pública com vistas a otimizar – ainda que a longo prazo – o exercício político dentro do regime democrático.
O presente artigo tem por objetivo mostrar que é possível o estabelecimento de ações afirmativas – mais precisamente de cotas raciais – em universidades públicas, como critérios de desigualdade que permitam a existência fática de igualdade. Essa defesa será feita tendo por base o pensamento de Habermas e a teoria do Pluralismo Jurídico, para se demonstrar que as referidas ações afirmativas, além de representarem reparações por discriminações passadas, devem ser vistas, principalmente, como medidas de ampliação da esfera pública política, destinadas a possibilitar uma maior e mais consciente participação dos indivíduos pertencentes a grupos discriminados, na dita esfera. Para tanto, será analisada a ADPF 186, proposta pelo Partido Político Democratas, no intuito de declarar inconstitucional o sistema de cotas raciais adotado pela UnB, desde 2004, que reserva 20% das suas vagas do vestibular para negros e pardos.
Enfatiza-se na petição inicial da ADPF que “não se objetiva discutir a constitucionalidade das ações afirmativas enquanto formas de inclusão das minorias”, mas, na visão do requerente, “busca-se discutir a respeito da constitucionalidade da instituição, no Brasil, de ações afirmativas baseadas no critério raça”.
Consta na ADPF 186 que, “no Brasil, ninguém é excluído pelo simples fato de ser negro, visto que a dificuldade de acesso à educação e às posições sociais elevadas decorre, sobretudo, da precária situação econômica, que termina por influir em uma qualificação profissional deficiente, independentemente da cor da pele”. Quanto a esse argumento, primeiro é preciso fazer referência ao fato de que falar que, no Brasil, ninguém é excluído pelo simples fato de ser negro, é um posicionamento um tanto quanto incoerente com a realidade brasileira de preconceito racial velado, corroborado por discursos hipócritas de que houve aqui, uma formação social intrínseca à miscigenação, que, por sua vez, proporciona boas relações étnico-raciais. Além disso, é relevante que se separe a questão racial da questão econômica, pois apesar da ligação que muitas vezes se dá entre ambas, é inegável o passado de segregação e de sofrimento – passado esse que perpassa a história dos negros no Brasil – sempre que se levava em consideração o critério cor da pele.
Outro argumento que os requerentes utilizam para reforçar sua ação é que “para a concretização das cotas raciais na UnB está-se promovendo verdadeiro massacre ao princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana”. Conforme é assegurado na Constituição de 1988, o Brasil constitui-se num Estado Democrático de Direito, e, para tanto, tem como uma de suas principais metas assegurar aos excluídos igualdade de condições em relação aos demais, promovendo assim inclusão social. A respeito disso, Habermas afirma que:
“As compensações do Estado do bem-estar social criam a igualdade de chances, as quais permitem fazer uso simétrico das competências de ação asseguradas; por isso, a compensação das perdas em situações de vida concretamente desiguais, e de posições de poder, serve à realização da igualdade de direito. Nesta medida, a dialética entre igualdade de direito e de fato transformou-se num dos motores do desenvolvimento do direito sem ressalvas do ponto de vista normativo”.[1]
Percebe-se que Habermas reconhece a diferença entre igualdade jurídica e igualdade fática, pois sendo a esfera pública espaço ilimitado de comunicação e deliberação, para que um indivíduo pertencente a uma minoria participe ativamente dos debates, é necessário que ele seja equiparado a todos os outros (igualdade fática ou material), para que assim possa estar apto a participar das discussões da esfera pública. É por meio dessa mesma esfera pública, da qual fala Habermas, que os novos movimentos sociais (feministas, homossexuais, negros, por exemplo), os quais emergem num período de crise do socialismo real, apresentam à sociedade a possibilidade de construção de novo paradigma de cultura política e de uma organização social emancipatória, tomando como exemplo os movimentos negros, estes passaram a demandar por maior igualdade de direitos, incluindo aí o acesso à educação, por mais políticas públicas e por um maior reconhecimento da cultura negra.
As palavras do ministro Joaquim Barbosa, portanto, podem dar o arremate necessário à compreensão da supracitada relação entre ações afirmativas e a busca por igualdade material:
“As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade”.[2]
A petição inicial aborda ainda que ao “pautar-se numa justiça compensatória, as políticas afirmativas para negros convertem-se em problema na medida em que responsabilizam, no presente, os brancos descendentes de pessoas que, no passado praticaram a escravidão”. Com relação à injustiça aparente que as ações afirmativas representam, merece destaque o que diz o ministro Joaquim Barbosa (2003, p.30) , quando este alerta para o fato de que as ações afirmativas para negros visam “não apenas coibir a discriminação do presente, mas, sobretudo, eliminar os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar”[3]. Sendo, dessa forma, necessário ponderar que essas políticas públicas funcionam como uma espécie de antídoto ao mal que é a exclusão racial na presente sociedade, sem, no entanto, esquecer o passado de escravidão, que em muito contribui para a realidade do negro hoje.
É inegável o caráter de justiça compensatória das ações afirmativas para negros, que se deve à necessidade de garantia de igualdade material àqueles que, devido ao seu passado histórico, se viram, na maioria das vezes, privados de desenvolver suas capacidades; porém, além disso, é preciso atentar para o caráter de justiça distributiva que também está ligado a tais ações afirmativas, o qual revela a preocupação de fazer com que essas políticas públicas possibilitem uma redistribuição das oportunidades, para assim viabilizar novas possibilidades aos negros.
O argumento de igualdade de oportunidades tem presença marcante no pensamento de John Rawls, e segundo o professor Eduardo Bittar, o referido autor considera ser “impossível erradicar a desigualdade entre as pessoas, o sistema institucional deve prever mecanismos suficientes para o equilíbrio das deficiências e desigualdades, de modo que estes se voltem em benefício da própria sociedade”[4] .Aspecto também abordado na petição está relacionado à tentativa de comparar o caso brasileiro a casos internacionais, como o de Ruanda e o dos Estados Unidos. O requerente vem, então, a afirmar que “em Ruanda a adoção de políticas de identificação racial por parte do Estado segregou um país misturado, ambíguo no seu sistema de classificação, propiciando uma guerra genocida”. Logo em seguida, é feito um breve histórico da relação entre negros e brancos, em território norte-americano, para, então, partir-se para uma comparação entre as relações raciais no Brasil e nos EUA, afirmando-se, que enquanto “no Brasil, a miscigenação foi algo natural, nos EUA a miscigenação foi combatida e o incentivo à segregação entre brancos e negros se deu de forma institucional”; além disso, “no Brasil, a abolição da escravatura decorreu da necessidade econômica urgente relativa à escassez da mão-de-obra, já nos EUA a abolição da escravidão foi marcada por guerra que resultou na morte de cerca de 600 mil pessoas”. O requerente conclui dizendo que “a ação afirmativa promove a racialização da sociedade”.
A ADPF critica o fato de se ter importado o modelo norte-americano de ações afirmativas, em vista da diferença de realidade histórica entre EUA e Brasil. Sendo, porém, evidente a importação da política de cotas raciais, é indispensável enfatizar que tal ação afirmativa é aplicada conforme a realidade brasileira, e que pressupõe uma maior participação dos negros na sociedade e nas deliberações que acontecem no meio social, mostrando novas possibilidades a quem sempre esteve à margem. Além disso, há indícios de que o próprio movimento negro reivindicava políticas educacionais específicas (entre 1948 e 1950) mesmo antes das ações afirmativas serem implantadas em universidades americanas, conforme encontra-se registrado num jornal da época[5]
“sejam admitidos estudantes negros, como pensionistas do Estado em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundário e superior do país, inclusive nos estabelecimentos militares”[6]
Outro argumento central na ADPF 186 para negar a aplicabilidade das cotas raciais é o que trata da inconsistência biológica do conceito de raças. O texto traz dados de pesquisas científicas para afirmar a contrariedade da implementação de um programa de reserva de vagas em universidades para membros de determinadas “raças”, uma vez que a inexistência de raças já teria sido comprovada cientificamente, através da análise genética. Além disso, o texto afirma que devido à miscigenação não seria possível determinar quem é negro no país, o que impossibilitaria a definição dos potenciais beneficiários pelo sistema de cotas e implicaria o seu aborto. Para dar força ao argumento foi utilizado o trabalho realizado por Sérgio Pena, geneticista que questionou as estatísticas fornecidas pelo IBGE em 2000 sobre a composição étnica do país. De acordo com o IBGE os brancos seriam 54% da população, dado que segundo Pena mudaria totalmente caso fosse feita uma análise de DNA, capaz de revelar a “pertença racial real dos brasileiros, invalidando assim a autoidentificação capturada pela pesquisa do IBGE”.[7]
“O trabalho realizado por Pena questionou as estatísticas sobre a composição étnica do País. Isto porque, de acordo com os dados apresentados pelo IBGE no ano de 2000, os brancos seriam 54% da população, mas, à luz das conclusões de Pena, esse número seria uma imprecisão, porque muitos dos que se declararam brancos, migrariam para a categoria de mestiços, se o DNA fosse decodificado. Do universo de supostos brancos brasileiros, aproximadamente 28 milhões portam herança genética indígena e 24 milhões carregam DNA de negros. Portanto, apenas 34 milhões de brasileiros seriam, de fato, brancos puros, segundo padrões genéticos, o que corresponderia a apenas 20% da população brasileira, pelo Censo de 2000.” (ADPF 186. p. 30-31)
No trecho da ADPF transcrito acima é possível perceber ainda a existência de uma contradição com relação ao que a parte requerente havia afirmado anteriormente. Em um primeiro momento nega a existência de raças e posteriormente afirma que Pena foi capaz de identificar “brancos puros” na população brasileira e que a autodeclaração dos brasileiros durante o recenseamento não remete de fato a suas reais ascendências. Portanto, na ânsia de usar o cientificismo como favorável à declaração de inconstitucionalidade do sistema de cotas raciais a parte requerente fragiliza ainda mais a própria argumentação. O já debilitado argumento pode ser descartado quando se entende que o conceito de “pertença racial” utilizado tanto pelo IBGE quanto pelas cotas raciais tem um sentido sociológico, ou seja, a não existência de raças – mesmo estando cientificamente comprovada – não implica no desuso desta categoria na hierarquização e distribuição de oportunidades na vida social. Isso significa que a existência da noção de raça no plano sociológico, faz dela categoria suficiente e válida na interpretação de práticas sociais.[8]
“O que os autores da ação não percebem é que o conceito de pertença racial utilizado pelo IBGE – e pelas ações afirmativas raciais – difere profundamente daquele problematizado por Pena e pelos geneticistas. Assim como as categorias do IBGE, a defesa de ações afirmativas raciais não está de modo algum atrelada a uma visão biológica do conceito de raça. Em ambos os casos, falam-se de cor ou raça como identidades atribuídas por processos sociais que, por seu turno, geram desigualdades sociais específicas. Noutros termos, as ações afirmativas raciais partem da constatação de que indivíduos que se percebem como pardos ou pretos tendem a ter chances de mobilidade social inferiores àqueles que se autodenominam brancos, assertiva sem qualquer conotação genética”.[9]
Admitir a inexistência dessa categoria no âmbito sociológico traz risco para a efetivação de todas as políticas públicas com vistas a inibir práticas racistas e suas consequências, porquanto nega formalmente a existência de tais práticas – facilmente identificáveis materialmente. Deste modo, quando é negada a ocorrência sociológica de diferenciação racial para a aplicação de cotas raciais universitárias torna-se incoerente afirma-la na “tipificação do racismo” – o que seria impensável visto que impossibilitaria ações de repressão contra manifestações de preconceito racial.
“Toda diretriz política que pretende atacar o racismo e seus efeitos tem que considerar este conceito sociológico de raça, como, aliás, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu quando julgou o gaúcho Siegfried Ellwanger pela acusação de divulgar livros de conteúdo antissemita. À época, o advogado de Ellwanger alegou que o réu não poderia ser processado pelo crime de racismo porque os judeus, alvos do preconceito contido nas publicações, não conformavam uma “raça”. Muito acertadamente, a Suprema Corte entendeu que aceitar essa interpretação implicaria reconhecer a inexistência de qualquer prática racista. Ora, se o crime de racismo só se aplicasse quando o alvo da discriminação pertencesse a uma “raça”, no sentido biológico, não haveria racismo passível de enquadramento jurídico, posto que raças genéticas não existem. O então ministro Maurício Corrêa identificou essa falácia, afirmando que se “a genética baniu de vez o conceito tradicional de raça, a divisão dos seres humanos em raças decorre de um processo político-social originado da intolerância dos homens”. Assim, se a raça como construção social deve ser considerada quando da tipificação do racismo, ela também deve ser considerada quando estão em pauta medidas reparatórias que visam a combater esse mal.”[10]
A contra argumentação feita a partir da petição inicial da ADPR 186 procura mostrar quão frágeis são os argumentos utilizados para requerer a avaliação do sistema de cotas raciais como inconstitucional. Essa fragilidade reside principalmente na utilização de comparações inapropriadas com outros países e no menosprezo da situação material de desigualdade, comprovada estatisticamente, e de preconceito racial vivenciado concretamente. Além disso, a argumentação em prol de ações afirmativas, como essa, ganha ainda mais força quando incorpora o sentido de medida de ampliação da esfera pública política, destinada a abrir canais de participação para indivíduos pertencentes a grupos discriminados, ou seja, quando começa a ser entendida como medida compensatória de parcialidade capaz de tornar concreta a democracia. Para que esse novo sentido seja assimilado é necessária a utilização de referenciais teóricos como o fornecido por Habermas e pelo pluralismo jurídico.
As ações afirmativas de forma geral – incluindo as cotas raciais universitárias – podem ser analisadas sob a ótica habermasiana de esfera pública. A noção de espaço público de Habermas encontra-se atrelada à existência de interações e relações comunicativas entre os sujeitos de direito. O espaço público funciona como meio para que os grupos mais conscientes e organizados problematizem as inquietudes sociais e procurem formular estratégias para o seu funcionamento. Esse processo de problematização de questões controversas possibilita a vocalização dos interesses das diversas populações, o que contribui para a formação discursiva da vontade política. Vale ressaltar que, para Habermas, esse debate público não deve restringir-se ao âmbito estatal, ao contrário, deve existir principalmente fora dele. Essa deliberação pública realizada fora do âmbito estatal legitimaria a ação política. A existência de tal espaço, potencialmente, daria condições para que todo indivíduo ou grupo envolvido tivesse o poder de opinar e ser ouvido antes da tomada de decisão.[11]
A ocorrência de ações civis públicas – como a que está por acontecer sobre as cotas raciais universitárias – encaixa-se na, anteriormente citada, concepção de esfera pública como base potencial para a discussão de temas de relevância coletiva. A utilização do espaço público com essa finalidade implicaria a modificação do modelo de Administração Pública brasileira, concebida como atividade meramente institucional e de competência exclusiva do Estado enquanto administrador. Essa mudança, além de contribuir para o aumento da eficiência social jurídico-administrativa em questões práticas, garantiria a efetiva prática de valores democráticos e pluralistas fundamentais da sociedade brasileira, assegurados formalmente.
Ainda relacionando o pensamento de Habermas com a adoção de ações afirmativas é preciso ressaltar a importante ligação que o referido autor enxerga entre autonomia pública e privada. Segundo Habermas, a autonomia pública não pode ser concebida de forma dissociada da privada; não se constituem como conceitos excludentes e sim como partes do mesmo todo, vez que os direitos individuais e coletivos são cooriginários e equiprimordiais. O que precisa ficar claro é que, para Habermas, o bom funcionamento de uma depende do exercício satisfatório da outra.
“as autonomias privada e pública requerem uma à outra. Os dois conceitos são interdependentes; eles estão relacionados um ao outro por implicação material. Os cidadãos podem fazer um uso apropriado de sua autonomia pública, como algo garantido através de direitos políticos, só se eles forem suficientemente independentes em virtude de uma autonomia privada igualmente protegida em sua conduta de vida.”[12]
Enquanto na autonomia privada o indivíduo vai procurar problematizar suas questões individuais para que as mesmas sejam levadas à deliberação na esfera pública, a autonomia pública cuidará de analisar essas questões privadas, coletivamente, para que então possam ser tomadas as decisões. A liberdade individual proveniente da autonomia privada é o que propicia que o indivíduo possa participar, ou não, das deliberações da esfera pública.
A discussão antes referida faz notar que os movimentos negros ao organizarem e problematizarem suas questões passaram a reivindicar participação no processo de elaboração e revisão dos seus direitos, dentro da esfera pública, aliando assim autonomia pública e autonomia privada. Nesse contexto as ações afirmativas, cotas raciais, por exemplo, aparecem como instrumentos capazes de abrir novos caminhos de participação, tornando audíveis as questões propostas pelos grupos identitários, ou seja, fazendo da esfera pública um espaço onde os indivíduos se vejam como sujeitos de direito conscientes de seu papel na articulação de pautas públicas, para que, assim, ocorra de fato o exercício político.
Sendo também utilizado no presente artigo como referencial teórico para se analisar a adoção de cotas raciais em universidades públicas, o Pluralismo Jurídico surgiu como forma de resolver problemas para os quais o monismo estatal mostrava-se insuficiente, revelando que a legislação estatal positivada não é a única nem a principal fonte jurídica do ordenamento. A questão central suscitada pelo Pluralismo é sobre a possibilidade e legitimidade do Estado em legislar para populações e grupos tão plurais, garantindo-lhes direitos, materialmente. Segundo Wolkmer, para que isso seja viável é necessário que o Estado deixe de ser entendido como espaço único de deliberação política. É nessa perspectiva que o Pluralismo se aproxima da concepção de esfera pública observada anteriormente em Habermas.
“O primeiro momento será reconhecer a desigualdade dos desiguais, e a partir daí possibilitar o reconhecimento pleno já não do desigual senão do distinto portador da justiça enquanto outro. Ora, o espaço do pluralismo jurídico é onde nasce a juridicidade alternativa. O Estado não é o lugar único do poder político, tampouco a fonte exclusiva da produção do Direito. O pluralismo jurídico expressa um choque de normatividades, cabendo aos pobres, como novos sujeitos históricos, lutar para “fazer prevalecer seu Direito”.”[13]
Ações como a ADPF 186, que pretendem declarar a inconstitucionalidade de leis que regulamentam os direitos de minorias, são postas em cheque quando contrapostas ao entendimento do ordenamento com base no Pluralismo Jurídico. O entendimento aqui mencionado é aquele no qual o Pluralismo é visto como uma interpretação diferenciada da letra da lei, capaz de garantir a proteção dos direitos de grupos identitários sem que haja modificação na legislação – processo que seria lento e custoso. Por esse método é feita uma interpretação inclusiva, ou seja, que atribui ao texto legal nova significação, além da que era feita anteriormente, com vistas a afirmar que já há dentro do ordenamento direitos assegurados às minorias. Ao contrário, quando o Pluralismo é entendido como negação da ordem estatal, o que se dá é a fragilização dos grupos oprimidos, pois conquistar a positivação de novos direitos exige um processo muito mais complexo de mobilização social.
Os novos movimentos sociais, que surgem no decorrer da década de 70, 80 e 90, apresentam-se como sujeitos coletivos que expõem como principais pautas a identidade e a autonomia. A noção de identidade deve ser compreendida como um processo de ruptura que permite que movimentos sociais se tornem sujeitos de sua própria história[14]. Já a autonomia, significa que os sujeitos sociais são responsáveis por suas próprias ações, na medida em que elas decorrem de suas aspirações, de seus interesses e de suas experiências [15].
Os vários movimentos negros, enquanto novos movimentos sociais, passaram a trazer à esfera pública a denúncia de discriminação racial, bem como se engajaram em diversas discussões no âmbito do legislativo, executivo e nas próprias universidades. Além disso, passaram a repudiar a neutralidade do Estado frente às questões raciais, advinda da ideia de miscigenação, em defesa de igualdade de oportunidades de acesso ao ensino superior.
De acordo com o que é proposto pelo Pluralismo, as cotas raciais podem ser adequadas de modo que se satisfaça o princípio constitucional da igualdade. Isso é feito na medida em que, conforme afirmado outrora, busca-se fazer uma interpretação inclusiva da Constituição (visando também os direitos das minorias), vendo que as cotas raciais visam combater as desigualdades materiais, as quais se apresentam como verdadeiros empecilhos à ocorrência de um debate público democrático e justo. As cotas raciais em universidades públicas, portanto, possibilitam ao negro a oportunidade de capacitação, inclusive para que, no futuro, esse indivíduo possa participar de forma ativa e consciente das deliberações públicas.
Apesar de aparentemente não se encontrar vínculos entre o pensamento de Habermas e a teoria do Pluralismo Jurídico, percebe-se que alguns pontos de conexão podem surgir quando as teorias são aplicadas ao caso concreto. Ao se fazer a análise dos argumentos contidos na petição da ADPF 186 – que questiona a constitucionalidade da implementação de cotas raciais na UnB – logo emerge, facilmente, dois aspectos comuns a Habermas e ao Pluralismo Jurídico, quais sejam, a esfera pública e a igualdade material.
Enquanto Habermas afirma ser a esfera pública um centro potencial de comunicação pública, onde são debatidos temas relevantes que surgem tanto das esferas privadas quanto das esferas da sociedade civil, os novos movimentos sociais (e aí estão inclusos os movimentos negros) recorrem a essa esfera pública, descrita por Habermas, para apresentar suas novas demandas. E no que diz respeito à igualdade material, de acordo com o pensamento habermasiano, ela é indispensável como forma de equiparar as oportunidades dos indivíduos pertencentes a grupos minoritários dentro da sociedade, fazendo com que estes possam participar das deliberações políticas e problematizar suas próprias questões de forma equilibrada com relação aos demais. O Pluralismo Jurídico, por sua vez, afirma ser necessário que o Estado deixe de ser visto como espaço único de deliberação política. É nessa perspectiva que o Pluralismo se aproxima da concepção de esfera pública observada anteriormente em Habermas. Encontra-se também ligado à igualdade material, na medida em que defende a mobilização dos grupos sociais, os quais devem reivindicar políticas públicas de equiparação.
Em suma, diante do exposto pôde-se compreender a estreita ligação entre cotas raciais, Pluralismo Jurídico e o pensamento de Habermas. Esse vínculo legitima a constitucionalidade das cotas raciais, à proporção que intérprete entenda como uma das principais funções da Constituição a garantia do aumento da complexidade social, reconhecendo as diversidades existentes (o que pode ser comprovado nos artigos 215 e 216 da CF/88).
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