Resumo: O presente trabalho versa a respeito da inviolabilidade domiciliar nos casos de flagrante de crime de diminuto potencial lesivo, ou seja, flagrante de crimes que lesam minimamente os bens jurídicos tutelados pelo direito penal. Tem por escopo apresentar ao leitor os aspectos gerais e jurídicos que envolvem o tema, abordando-o de forma clara e concisa. Trata-se de um estudo de suma importância tanto para a sociedade em geral quanto para os operadores do direito, uma vez que aborda o direito fundamental à intimidade, verdadeiro pressuposto à plena concretização da dignidade da pessoa humana, e tendo em vista a escassez de trabalhos acadêmicos que tratem do mesmo objeto.
Palavras-chave: domicílio; inviolabilidade; flagrante delito; potencial lesivo.
Segundo a doutrina moderna majoritária, os direitos fundamentais são classificados em dimensões (ou gerações), sendo direitos de primeira dimensão os direitos civis e políticos, compreendendo as liberdades clássicas, negativas ou formais e realçando o princípio da liberdade; direitos de segunda dimensão os direitos econômicos, sociais e culturais, que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas e acentuam o princípio da igualdade; e direitos de terceira dimensão aqueles que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, em consagração ao princípio da solidariedade.
A vida íntima da pessoa é, nesse plano, bem jurídico situado nos direitos de primeira geração, ao qual a Constituição Federal confere eficácia plena e aplicabilidade imediata, inserindo-o no significativo rol de direitos fundamentais. Estes, por sua vez, são entendidos como situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, liberdade e igualdade da pessoa humana.
Assim, contextualizada no seio dos demais direitos fundamentais do homem, a norma esculpida no art. 5º, inciso XI, da Constituição assegura ao homem o direito fundamental de gozar, ainda que sozinho, de lugar reservado única e exclusivamente à sua intimidade. É o lar recanto sagrado de descanso, lazer e de congregação ao seio familiar.
No entanto, se é certo que as normas constitucionais asseguram a inviolabilidade do domicílio do indivíduo, não é menos correto que criam hipóteses de flexibilização desse mesmo direito. Nesse sentido, o art. 5º da Lei Maior, em seu inciso XI, prescreve que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
Prezando-se pela interpretação literal do disposto na aludida norma constitucional, chega-se à conclusão de que a flagrância de qualquer delito ensejaria o sacrifício da inviolabilidade domiciliar. Seria lícito, portanto, invadir a casa de um indivíduo caso lá estivesse sendo praticado qualquer crime, independentemente de sua intensidade lesiva.
Por outro lado, adotando-se uma interpretação sistemática da Constituição e considerando que a inviolabilidade do domicílio é envergada exclusivamente para fazer cessar os danos ou riscos que o crime em curso oferece à coletividade – ou a sua vítima imediata –, e não por qualquer outro motivo, pode-se deduzir que nos casos em que o delito não seja dotado de considerável lesividade potencial, não seria coerente nem justificável o sacrifício da intimidade domiciliária, em face da patente desigualdade entre os valores sopesados.
É possível que se questione a verdadeira utilidade da discussão ora tratada, sob o argumento de que todo e qualquer delito, por natureza, tem por objeto bens jurídicos da maior importância, em obediência aos princípios da intervenção mínima, da lesividade e da fragmentariedade, norteadores do direito penal. A realidade brasileira, contudo, é bem outra. Marcado pelo atual estado de inflação legislativa, nosso ordenamento jurídico criminaliza diversas condutas que, em virtude de sua parca potencialidade lesiva, mereceriam tutela por outros ramos jurídicos, e não pelo direito penal.
São justamente esses crimes – os de reduzidíssima potencialidade ofensiva – que compõem o objeto do presente trabalho.
Pois bem, o potencial lesivo de uma infração é a sua capacidade abstrata de ofender a sociedade em seus valores penalmente tutelados. Quanto maior o potencial lesivo de um crime, maior poderá ser a sua eventual afronta aos bens jurídicos protegidos pela lei penal, preciosos para a coletividade.
Desse modo, o crime de homicídio, por exemplo, que atinge radicalmente o direito à vida, é dotado de capacidade lesiva muito superior à do delito de injúria, que tem por alvo a honra subjetiva do sujeito passivo.
As infrações de maior potencial lesivo merecem reprimendas mais rígidas por parte do Estado, por serem mais reprováveis, por afetarem valiosíssimos bens expressamente protegidos pela lei criminal. É por isso que o critério utilizado pelo legislador para aferir a capacidade ofensiva de determinada infração é justamente a pena abstratamente a ela cominada.
Nesse diapasão, têm-se: a) as infrações de menor potencial ofensivo (todas as contravenções e os delitos cuja pena máxima não excede de dois anos), que são conhecidas e julgadas pelos Juizados Especiais Criminais, segundo os parâmetros consensuais de justiça (transação penal, por exemplo); b) as infrações de médio potencial ofensivo (crimes cuja pena mínima não excede de um ano), que admitem a suspensão condicional do processo em seu limiar (suspende-se o processo e o acusado, querendo, entra imediatamente em regime de prova); e c) as demais infrações (crimes de maior gravidade, crimes hediondos etc.), que, por sua vez, seguem o processo tradicional (o devido processo penal clássico), hoje regido pelo Código de Processo Penal.
Dito isso, o que poderia se entender por “crimes de diminuto potencial ofensivo”? Ora, são delitos que ofendam minimamente a sociedade, seus valores penalmente tutelados. São potencialmente lesivos, mas em grau muito suave, ferindo, muitas vezes, bens jurídicos de cunho exclusivamente particular. Vejamos, por exemplo, o delito previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/2006, in verbis:
“Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. […]”
O crime em comento sequer é punível mediante pena privativa de liberdade, o que demonstra o seu mínimo grau de ofensividade. Houve até mesmo quem sustentasse que, com o advento da nova lei de drogas, a infração teria deixado de ser enquadrada como delito, mas esse posicionamento foi prontamente refutado pelo Supremo Tribunal Federal (QO em RE n. 430.105-9/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 27/04/2007).
Diante de tão reduzida potencialidade lesiva, não nos parece proporcional, tampouco razoável, que se flexione o direito à inviolabilidade de domicílio a pretexto de se fazer cessar a prática do crime tipificado no art. 28 da Lei n. 11.343/2006. Ora, se a inviolabilidade domiciliar enverga-se exclusivamente porque se presume que o delito em flagrância oferece riscos significativos à coletividade – ou à sua vítima imediata –, não nos parece que a norma constitucional albergue a truculência do Estado diante de infração que, a concluir pelas sanções abstratamente cominadas, não representa maior periculosidade social.
Além do crime tratado acima, outros delitos poderiam também ser enquadrados no mesmo raciocínio aqui esposado. São infrações que, embora indesejáveis e maléficas à sociedade, apresentam mínimo grau de lesividade, alvejando, no mais das vezes, interesses nitidamente particulares.
Vejamos, por exemplo, os crimes contra a honra. Apesar de sua considerável importância para o ser humano, a honra de determinado sujeito não pode ser compreendida como interesse primordial de toda a coletividade. É, em verdade, caracterizada por seu conteúdo notadamente singular, íntimo.
Assim, não seria plausível imaginar que em face de acalorada discussão doméstica, na qual um dos contendores esteja injuriando o outro, seja violado o asilo residencial palco da controvérsia para fazer cessar a prática da injúria. Ora, conforme já dito, os crimes contra a honra ofendem valores precipuamente privados, não sendo razoável, em princípio, invadir a privacidade domiciliar para impedir o prosseguimento desses delitos.
Dessa forma, somente quando o bem jurídico ofendido pelo crime em curso preponderar sobre o direito à intimidade doméstica, a depender das peculiaridades do caso concreto, será lícita a violação de domicílio. É, assim, necessário que sejam casuisticamente confrontados os valores em questão, de maneira a aferir o real alcance do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar, evitando-se, dessa maneira, invasões ilegais, desarrazoadas.
Diante do exposto, vemos que a inviolabilidade domiciliar é regra a ser seguida, conforme preceitua a Constituição Federal, somente excepcionada por exigência do interesse público, nas estritas hipóteses previstas na própria norma constitucional. Nos casos de flagrante delito, apenas a prática de crimes que ofendam valores de maior calibre do que a própria intimidade domiciliar justificarão o seu envergamento.
Servidor do Ministério Público Federal. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba, Campus João Pessoa. Pós-graduando em Direito do Estado pela Faculdade de Tecnologia e Ciências de Salvador/BA
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