A teoria dos “Crimes do Colarinho Branco” é de uma categoria diferente das que buscam explicar a dogmática penal no Estado Democrático de Direito, que, como sabemos, está preocupada com a efetiva tutela dos bens jurídico-penais. A white-collar crime, como veremos doravante, levará em consideração a posição social do criminoso, ou seja, a função que ele desempenha na sociedade.
Os “Crimes do Colarinho Branco”, em que pese a nomenclatura atribuída, não podem ser enumerados num rol, simplesmente por não constituírem uma modalidade de crime, mas sim uma das teorias da Criminologia, que como todas as outras, buscou uma resposta para a pergunta: Por que cometemos crimes?
A origem da criminalidade, juntamente com a sua causa, nos remete à própria origem do homem. A Criminologia, por sua vez, durante séculos buscou respostas para tornar efetivas as tentativas de estabelecimento do controle social. Diversas foram as Escolas, teorias e teóricos que trabalharam em nome deste problema, o que dá a Criminologia uma importância especial para quem busca soluções para muitos problemas da contemporaneidade criminal.
Neste trabalho, não teremos espaço para análises verticais das teorias da Criminologia, pelo que nos dedicaremos a alguns conceitos relevantes e algumas soluções encontradas na Itália e nos Estados Unidos, apenas para demonstrar quão genial e revolucionária foi a Teoria dos Crimes do Colarinho Branco.
Antes de analisarmos as soluções, é importante o conhecimento de duas importantes classificações da Criminologia. Uma que a divide em monofactorial e multifactorial. Outra que a divide em endógena e hexógena.
A primeira trata da divisão das teorias em razão da quantidade de fatores ou causas da criminalidade, onde a monofactorial busca uma única causa que seja idônea para explicar o porquê da ocorrência de crimes. E a multifactorial, evidentemente, cuidará de explicar a criminalidade apontando os diversos fatores ou causas que ensejam a sua existência.
A segunda relaciona-se com o objeto das investigações. Não mais com o número de fatores, mas, onde encontrar esses fatores. A endógena busca encontrá-los através da análise das características físicas dos criminosos, enquanto que, a hexógena, analisa o criminoso a partir do ambiente em que ele vive. Também leve em consideração as características do criminoso, não as físicas, mas as suas reações de acordo com as influências do meio.
Na Itália, em 1876, o maior expoente da Escola Positivista, o médico Cesare Lombroso, lançou sua tese na obra L’Uomo Delinqüente. Criminólogo endógeno monofactorial que era, afirmou que a causa da ocorrência de crimes era determinado pelos chamados “estigmas atávicos” de alguns indivíduos. As pessoas cometiam crimes porque elas nasciam criminosas, eram “delinquentes natos”, e poderiam ser identificadas, por exemplo, pelas medidas cranianas ou traços fisionômicos. Aquele que tinha a testa proeminente e a cabeça fora dos padrões normais era tendente ao cometimento de crimes[1].
Alguns precedentes de Lombroso merecem ser lembrados como Juan Batista Della Porta que implantou o estudo da fisigonomia, e a própria frenologia que buscava conhecer o caráter do indivíduo através do estudo do formato da sua cabeça. Assim como outras práticas e nomes que merecem recordação, mas, se digredíssemos por completo na história, chegaríamos a Alcmeon de Crotona, que em VI a.c., iniciou o estudo do comportamento humano utilizando cabeças e cérebros dissecados, e obviamente, fugiríamos da questão que preside nosso estudo.
Acusando os juristas da época de obsoletos e cientificamente atrasados, sua tese foi ganhando força no âmbito da justiça penal ao ponto de se verificar registros de que em Nápoles, nesse período, o Marquês de Moscardi decidia alguns processos em última instância somente após avaliar a face e a cabeça do acusado.
Reviravoltas nos métodos, pressupostos teóricos e principalmente no objeto do estudo, fizeram com que os teóricos chegassem a várias causas que isolada ou cumulativamente explicariam a criminalidade. Até que se chegou a um denominador comum, o problema estava no grau de miserabilidade dos indivíduos.
Surgiram as teorias hexógenas que afirmavam que os fatores socioeconômicos como a miséria, a pobreza, e a refratariedade ao trabalho, eram fatores determinantes da criminalidade. E por muito tempo – inclusive com forte reflexo nos dias atuais – só se explicaram os crimes dos doentes, pobres, subculturados e mal sucedidos.
Até que, em 27 de dezembro 1939, o sociólogo americano, Edwin Sutherland, pela primeira vez, falou na teoria do White Collar Crimes na American Sociological Association que, apesar de só ter publicado sua obra completa (White Collar Crime – The Uncut Version) em 1983, o seu estudo desde o início influenciou uma série de pensamentos criminológicos.[2]
Ao contrário dos anteriores, Sutherland não visava uma simples compreensão etiológica da criminalidade, seu grande objetivo foi descortinar a desigualdade verificada na distribuição da justiça penal, provando a todos que, pessoas ricas e bem sucedidas também cometiam crimes, mas eram liberados pelo “filtro” existente no sistema de persecução penal.
O americano, portanto, após analisar 70 das maiores empresas norte americanas e chegar a conclusão de que o fator econômico jamais poderia servir como única causa idônea para explicar a criminalidade, arruinou com uma idéia construída com base em séculos de pesquisas. Ora, se os poderosos delinquiam, a situação financeira da pessoa não era o que a levava a delinquir.
Mesmo que essa idéia de “poderosos no crime” só tenha sido divulgada no século XX, é cediço que em todo o decorrer da história os poderosos cometeram crimes e curiosamente, o primeiro processo penal conhecido foi de um crime do colarinho branco. Autos em folhas de papiro encontradas por arqueólogos relatam que, no Egito do Rei Ramsés, sacerdotes confessaram ter profanado a sepultura do Rei Sebekemsaf.
Crime do Colarinho Branco, portanto, de acordo com o conceito de Sutherland, é toda conduta criminosa cometida no âmbito da sua profissão por uma pessoa de respeitabilidade e elevado estatuto social.
Mas, como não poderia deixar de ser, a teoria dos White-Collar Crimes sofreu vários questionamentos. O primeiro foi: Se a situação econômica não é a causa da origem da criminalidade, qual seria então?
Mesmo sem ser seu foco principal, o americano, que não poderia deixar essa pergunta sem resposta, afirmou que a delinquência como um todo pode ser explicada pela “Teoria da Associação Diferencial”, que nada mais era que uma teoria de “aprendizagem”, onde o criminoso seria aquele indivíduo que tivesse acesso a um grande número de definições favoráveis ao cometimento do crime, assim como a motivação e o conhecimento do seu modus operandi.
Mas essa teoria logo foi posta em cheque quando se afirmou que ela apenas explicava a iniciação da pessoa no crime, não explicava a existência prévia de tais delitos. Ora, se a pessoa teve definições favoráveis à prática de determinada conduta, é porque alguém já a cometera antes.
Foi quando o teórico se socorreu da Teoria da “Desorganização social” também chamada de “Organização Social Diferenciada”, que apesar de pouco divulgada, foi o que sustentou o seu pensamento. Ele afirmou que o industrialismo teria criado uma organização social mais complexa e diferenciada, o que prejudicou a manutenção do controle dos comportamentos individuais.
No Brasil, por exemplo, o reconhecimento de que se vive num país corrupto sem soluções à vista, gera a neutralização de culpa aos que optam por ignorar o sistema de arrecadação de tributos, sob a forte alegação de que certamente esta verba terá um destino diverso ao esperado pelo povo.
A partir, daí, como diria Sutherland, quem tiver mais definições favoráveis à repetição deste fato, tenderá ao seu cometimento.
Questionou-se também o fato de pessoas que vivem em comunidades desorganizadas e que possuem definições favoráveis à prática de crimes, mas que optam por não praticá-las. Lombroso diria que é porque ele não tem um “cabeção”, mas o americano reagiu alegando que além do excesso de definições favoráveis, o crime pressupõe concomitantemente a inexistência de definições desfavoráveis combinado com uma boa oportunidade para cometê-lo.
A professora de Coimbra, Cláudia Maria Cruz dos Santos, defende que esta aporia poderia ser solucionada com o resgate de alguns conceitos do interacionismo simbólico, demonstrando que cada um de nós constrói seu ego comportamental (self) a partir da interação com os outros, ou seja, é possível que indivíduos diferentes cheguem a interpretações distintas de situações idênticas, mesmo diante de um comportamento precedente.[3]
Outra crítica recebida, dessa vez com mais contundência, foi quanto a subjetividade do conceito proposto pelo americano, que não levou em consideração o fato criminoso, mas apenas o sujeito do crime, gerando propostas que pugnavam pela inversão do objeto da investigação, pois, se assim continuasse, condutas materialmente idênticas seriam desprezados pelo simples fato de não terem sido praticado pela elite.
Afirmou-se que os “crimes” eram do colarinho branco, e não os “criminosos”, pelo que a análise deveria ter como objeto as especifidades do próprio fato criminoso e não somente do autor das infrações. Atribuindo essa objetividade material ao conceito de white-collar crime, logicamente, ele sofreu uma considerável expansão. Foi quando surgiu a idéia dos blue-collar crimes.
Se o primeiro se referia estilo da vestimenta do poderoso (paletó, gravata e camisa com o colarinho branco), o segundo buscou inspiração nos “macacões” azuis utilizados pelos operários, para estender a persecução penal também aos empregados que cometiam crimes abusando da confiança que tinham, v.g., em grande empresas.
Um exemplo dessa preocupação foi o relatado pelo professor alemão Klaus Tiedeman, quando lembrou um dos primeiros casos de manipulação de sistema de computadores que chegou ao conhecimento do judiciário da Alemanha Federal, onde o autor era funcionário público e desviou cerca de 10.000 marcos que seriam destinadas a ajudas familiares, em benefício próprio e de sua família.[4]
Não há como discordar que essa ampliação do conceito colabora com o fortalecimento dos mecanismos de combate a essa espécie de crimes, mas tal expansão não se coaduna com os interesses do idealizador da teoria.
Sua preocupação maior era com o tratamento desigual dispensado pelo estado quando se deparava com condutas idênticas, mas que apenas punia as praticadas por criminosos comuns, enquanto que as praticadas por poderosos eram excluídas de sua apreciação.
Sua pesquisa, essencialmente empírica, teve um objetivo específico: mostrar que o sistema penal é desigual. Para isso teve que provar que nem só os pobres e muito menos aquele com patologias endógenas, cometem crimes, e que estas não eram causas suficientes para explicar a criminalidade. Mas, não se pode permitir a ampliação do conceito proposto sob pena de se descaracterizar a própria teleologia da pesquisa.
Não se discute, portanto, se um pobre pode praticar um crime de rico, mas como o Estado reage ante esta mudança na autoria da infração penal.
Demonstrada a desigualdade – com merecida irresignação – o americano iniciou uma busca pela interrupção da impunidade dos poderosos. E hoje, 70 anos depois dessa louvável iniciativa, percebe-se que nosso sistema continua tal qual no inicio do século passado.
Sutherland, em certos pontos, sufocado pelo desequilíbrio e indignado com o massacre sofrido pelos desprestigiados, acaba por pedir punição a todo custo, chegando até sugerir que a desigualdade deveria ser inversa, mais pena para os ricos, menos para os pobres, pois, de acordo com seu entendimento, o grande mal da sociedade era o comportamento desajustado dos poderosos.
No último ponto até lhe damos razão, mas se o direito penal é estigmatizante e dessocializador para os pobres, também o é para os poderosos. O Direito penal é a mais forte arma de controle, logo, não se pode prezar pelo seu endurecimento, mas, simplesmente pela sua democratização proporcional ao fato, e o que é principal, independente do status social do criminoso.
Vimos que condutas criminosas foram praticadas por poderosos no decorrer de toda a história, e as mais diversas foram as formas de punição, mas, foi após a pesquisa de Sutherland que tivemos noção do quanto o Estado é seletivo quando se fala em justiça penal.
Para mantermos a cientificidade deste trabalho, e não incorrermos no lastimável erro de agredir ou caluniar integrantes das nossas três esferas de poder optamos por não mencionar casos concretos onde poderosos estiveram no “banco dos réus” do nosso sistema, muito menos relembrar “de que lado a corda estourou.”
Peculiaridades dos crimes do colarinho branco, como a difusidade de vítimas, dificuldade de demonstrar a materialidade, a permanência e habitualidade, são apresentadas como algumas das causas da impunidade nos dias de hoje. Afirma-se que o Estado não tem preparação técnica para coibir essas práticas.
Afirmar que há “homogeneidade cultural” entre o criminoso do colarinho branco e os agentes do Estado, ou que estes se identificam com aqueles, é ofender os delegados, membros do Ministério Público e magistrados, que ainda estão preocupados com a correta aplicação da lei penal.
Falar que a mídia não dá a mesma visibilidade para os crimes do colarinho branco, que a dedicada aos crimes “comuns” é um tanto quanto controvertido. A mídia – e aqui falo das grandes empresas de manipulação da informação – é uma máquina movida a poder econômico e poder político, mas que hoje se encontra “fatiada” em vários grupos. Se o fato criminoso não interessar a nenhum grupo (econômica ou politicamente), certamente ele não será divulgado. Mas se interessar à algum, ele será cinematograficamente exposto, até que se obtenha o resultado pretendido, manipular!
Vimos que em determinado momento tentou-se ampliar o conceito proposto por Sutherland. Ampliar com o único objetivo de retirar os poderosos do foco, da mira dos justiceiros. E é isso que ocorre hoje, mesmo que de forma inconsciente. Aceitamos a idéia de que “tudo acaba em pizza” – ou numa dancinha debochada – e voltamos novamente a mira da justiça para os socialmente desprestigiados.
Coincidentemente, a teoria foi criada logo após uma crise econômica (grande depressão de 1929), e hoje, em meio a outra crise, o problema da desigualdade continua a mesma. E se lá a culpa foi atribuída aos “quebrados” que não podiam consumir, aqui, os responsáveis foram os empolgados beneficiários do subprime, enquanto que os grandes empresários e instituições financeiras continuaram da mesma forma, assistindo o espetáculo.
De nada adianta um sistema que busca diminuir o preconceito e a desigualdade social apenas para que se diga, com respeito às vítimas do sistema, que no nosso Estado Democrático de direito, “a prisão é para afrodescendentes, meretrizes e desafortunados”, sem que se proporcione aos poderosos, ao menos alguns meses de estadia no nosso “aprazível” sistema carcerário quando merecerem.
Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires; Mestrando em Direito na Sociedade da Informação pela FMU/SP; Especialista em Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito/SP; Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Gama Filho/RJ; Professor Assistente de Direito Penal Econômico na UniFMU; Advogado Criminal.
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